Juliana Luiz, gerente Projetos de Instituto Escolhas, afirma que o Recife produz 700 toneladas de alimentos/ano. Ela fala de como essa atividade é invisibilizada e do estudo que mostra os gargalos e o potencial da cidade, e também do Rio de Janeiro e Curitiba, de ampliar essa produção.
Poucos recifenses sabem que agricultores familiares produzem em pleno Recife 700 toneladas de alimentos/ano. Na cidade existem 242 estabelecimentos que cultivam hortaliças como quiabo, milho e alface. Esses dados constam no último Censo Agropecuário, mas estão invisibilizados. Reverter essa invisibilidade da agricultura praticada nos centros urbanos e aumentar as áreas produtivas são objetivos perseguidos pelo Instituto Escolhas. Essa seria uma estratégia para promoção da segurança alimentar nas cidades e para torná-las mais resilientes às mudanças climáticas.
A organização acaba de lançar o estudo Como o Governo Federal pode apoiar os municípios no fomento à produção local de alimentos?. A pesquisa traz dados sobre a produção de alimentos no Recife, em Curitiba e no Rio de Janeiro, os gargalos que enfrentam para consolidar a atividade, além de uma proposta para elevar a produção de hortaliças nas três cidades e recomendações para a União. Foi desenvolvida em parceria com as prefeituras dos três municípios e com a Cátedra Josué de Castro do Nupens/USP. Nesta entrevista a Cláudia Santos, a gerente de Projetos do Instituto Escolhas, Juliana Luiz, fala do estudo, dos benefícios e desafios para a produção de alimentos nos espaços urbanos e elogiou a iniciativa da Prefeitura do Recife de criar a Secretaria de Agricultura Urbana dentro da Secretaria de Planejamento Urbano.
Antes de falar do estudo, gostaria que a senhora explicasse os benefícios da agricultura urbana e periurbana.
Agricultura urbana e periurbana podem parecer uma novidade, mas não são. A produção perto das cidades é histórica. Elas foram constituídas ao redor do cultivo de alimentos. Mas as longas cadeias de produção fizeram com que esses alimentos ficassem cada vez mais distantes dos consumidores. Só que agora, as cidades estão cada vez maiores, com mais pessoas e esse alimento está cada vez mais distante, mais caro, pouco variado, que é a chamada monotonia alimentar.
Quando olhamos para a produção perto das cidades, falamos, sobretudo, de horticultura. O último Censo Agropecuário, de 2017, mostra que no Recife existem 242 estabelecimentos agropecuários, mais de 50% deles tem até 20 hectares, um número considerado dentro do módulo rural em que se enquadra um agricultor familiar. Mais de 50% são considerados com parentesco, ou seja, mais uma vez estamos falando de agricultores familiares. Eles existem na cidade, mas são invisibilizados. No Censo, existe ainda uma categoria que são produtores de horticultura, quase 80% deles são agricultores familiares que produzem muito pouco no Recife, mais ou menos 700 toneladas por ano. A maior parte, quiabo, milho verde e alface.
Um movimento positivo da Prefeitura do Recife começou em 2021, quando criou uma secretaria para olhar a agricultura urbana porque ela se confunde, tanto com agricultores familiares – que são esses números que informei – mas há, também, agricultores comunitários que, não necessariamente, têm um vínculo familiar mas produzem dentro da cidade.
Quanto aos benefícios, estamos falando de uma produção próxima do consumidor, de um aumento da disponibilidade de legumes e verduras. O Nordeste consome apenas 31% do recomendado de frutas, legumes e verduras, só não é pior do que o Norte. Na nossa pesquisa ouvimos muitos agricultores, produtores e grupos comunitários que produzem em cidades satélites à capital, então há essa interação com outras cidades, o que é extremamente benéfico. Outro benefício é conter os choques de abastecimento. Vimos isso acontecer na pandemia, quando a circulação dessa produção mais distante começou a ser afetada. A greve dos caminhoneiros foi um outro exemplo. Quando se produz perto, esses riscos são reduzidos.
Outro ponto positivo é o uso de áreas abandonadas consideradas como perigosas na cidade, como terrenos baldios usados como lixões que ficam improdutivos porque sofreram despejo inapropriado de resíduos. Mas ao recuperar a qualidade do solo para a produção, geram o benefício de aumentar a infiltração do solo, evitando outro problema nas cidades que são os alagamentos.
E, óbvio, existem dois grandes benefícios associados aos efeitos das mudanças climáticas: quanto mais áreas verdes, menor é o calor que sentimos, além disso, teremos mais alimentos disponíveis. Estamos falando de um país que passa fome, dos 33 milhões que estão nessa situação, 27 milhões estão nas cidades. Então ter mais alimentos próximos das pessoas que passam fome também é uma estratégia de política pública.
Qual a proposta do estudo do Instituto Escolhas e por que o Recife foi uma das cidades analisadas?
O Escolhas trabalha com o tema da produção local de alimentos há vários anos. Começamos em 2019, falando sobre a produção metropolitana de São Paulo, depois fomos para o Norte, para olhar a produção em Belém e, aí, demos um novo passo, que é olhar a produção em três cidades em diferentes regiões do País para sugerir propostas ao Governo Federal. Curitiba, Rio de Janeiro e Recife foram escolhidas porque possuem políticas públicas voltadas para o tema. O Recife tem a Secretaria de Agricultura Urbana dentro da Secretaria de Planejamento Urbano.
Embora a agricultura urbana esteja institucionalizada nessas cidades, há inúmeros desafios. O orçamento dessas políticas públicas é sempre muito baixo e elas são vistas como projetos pilotos ou pontuais, dialogam pouco com o planejamento urbano. Poderíamos olhar para os estados mas eles têm muitas áreas rurais e o desafio dessa produção local de alimentos são das cidades que é onde as pessoas moram e consomem. Também é onde as regras do planejamento urbano são aplicadas, como o plano diretor, o zoneamento, a lei de uso do solo, isso tudo é competência da cidade.
Não é à toa que o pontapé inicial para esse debate sobre produção de alimentos e resiliência dos centros urbanos veio com o Pacto de Milão, que é um acordo internacional que várias cidades, o Recife inclusive, assinaram, com o compromisso de fomentar e melhorar a produção, o acesso e o consumo de alimentos saudáveis.
Como vocês fizeram o estudo?
Como eu disse, a agricultura urbana é uma prática ainda muito invisível e quando é invisível, não é fomentada nem apoiada pelo poder público. Então, a primeira ação foi identificar o que já existe, o que foi feito de duas maneiras, tanto com dados do Censo Agropecuário, quanto por imagens de satélite. Percorremos lote por lote, bairro por bairro, dessas cidades para identificar áreas que visualmente pareciam com produção agrícola e consideramos espaços com mais ou menos mil metros quadrados.
Nesse mapeamento identificamos mais de 100 hectares no Recife produzindo alimentos. Essa área não necessariamente foi identificada pelo Censo por causa da tal invisibilidade. Não existe uma categoria de agricultura urbana no Censo, dentro das políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ela está sendo introduzida agora.
Vou te dar um exemplo do desafio: um agricultor urbano do Recife tenta adquirir crédito rural. Ele é agricultor familiar, a mão de obra dele é familiar, o tamanho de sua produção é condizente com o módulo rural que permite receber esse recurso, mas o crédito não é concedido porque ele está em área urbana. Esse foi um movimento que São Paulo aprendeu e revisou o seu plano diretor para trazer de volta o zoneamento rural para dentro da cidade.
A segunda etapa da pesquisa foi encontrar espaços para aumentar essa produção de 700 toneladas de hortaliças que o Censo mapeou. Mais uma vez analisamos em imagens de satélite as áreas que consideradas ociosas ou subutilizadas de mil metros quadrados. Encontramos no Recife mais de 400 hectares nessa condição.
Não sabemos de quem são essas áreas, se são públicas, privadas, se estão em disputa judicial ou embargadas. Justamente por não saber, a terceira etapa da pesquisa foi fazer a simulação de usar apenas 5% dessas áreas, um percentual que nos permite trabalhar porque podem ser áreas públicas. Um dos exemplos interessantes diz respeito a Curitiba. A cidade publicou uma lei determinando que mesmo o terreno sendo privado, ele pode ser cedido provisoriamente para a agricultura urbana. Isso é uma estratégia de utilização de um espaço vazio.
Bem, usando 5% desses espaços, que representam 20 hectares (mais ou menos 20 quarteirões), eles podem produzir 1.303 toneladas de alimentos por ano. Ou seja, vamos dobrar as 700 toneladas que o Censo mapeou. Trata-se de uma estratégia de segurança alimentar, mas também de saúde. É bastante reconhecido cientificamente que o consumo diário recomendado de legumes, verduras e frutas é de 400 gramas por pessoa, para reduzir os riscos das doenças crônicas não transmissíveis – diabetes, doenças cardíacas etc. Essa ampliação representa atender cerca de 70 mil pessoas com hortaliças e 18% dos inscritos no CadÚnico, que é o cadastro para receber as políticas públicas de assistência social.
Entregamos para as prefeituras o estudo com as áreas que identificamos e dissemos: “vocês podem fazer uma triangulação de informação e ver qual desses terrenos são públicos e que poderiam ser investidos”. Também identificamos quais desses terrenos estão alinhados com a nossa estratégia de resiliência climática, de segurança alimentar, nos bairros que estão em maior vulnerabilidade social.
Qual o custo dessa proposta?
Para conhecer o custo-benefício, aplicamos o aumento dessa produção ao longo de sete anos. Por quê? Porque o Brasil se comprometeu até 2030 sair do mapa da fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), ao qual regressamos em 2016. Simulamos uma produção em uma área de mil metros quadrados para 15 cultivos mais recorrentemente vistos nas três cidades e projetamos quanto que o cultivo nessa área produziria. Vimos que a produção anual é de 6 toneladas por ano.
Se essa produção fosse totalmente vendida, ela faria R$ 41 mil ao ano. Mas, na nossa proposta, essas pessoas receberão uma bolsa, vão vender 50% do que produzirem e doar os outros 50% para a comunidade ou famílias pré-selecionadas. É uma estratégia de saúde pública e de assistência social. Na nossa conta, incluímos o custo da implementação: preparar o terreno, comprar as ferramentas, os equipamentos de segurança individual, as mudas, ou seja, adquirir toda a estrutura para aquela produção começar. Existe ainda o custo da manutenção, quanto que ano a ano precisa ser reposto ou recomprado para aquela produção continuar.
Se você contabilizar o custo da implantação, a manutenção, o pagamento de bolsas e as vendas, no final de sete anos, teremos um saldo positivo em que, a cada R$ 1 investido, o retorno é de R$ 1,52 para as bolsas. Para a produção comunitária, o custo-benefício é ainda melhor: R$ 3,17. Acho interessante falar sobre o pagamento das bolsas porque a agricultura urbana atinge a dupla crise: a da fome e pobreza e a da crise climática. Ela gera a produção de alimentos mas, também, a renda. No caso do Recife, o pagamento dos bolsistas geraria renda para 404 pessoas.
É mais do que doar alimentos, é produzir um ciclo virtuoso de políticas públicas que atrelam a produção de horticultura com a doação, com o fomento à economia circular porque é um produto que é vendido próximo onde essas pessoas produzem. Normalmente elas têm uma banquinha na frente da própria horta. Nas experiências que tivemos ao entrevistar as pessoas, muitos saem da política pública e se transformam em agricultores e passam a produzir de forma independente. Curitiba tem uma estratégia de fomentar e implementar uma horta no primeiro ano e depois torná-la independente nos anos seguintes, justamente para aumentar o número de implantação de novas hortas.
Mas os desafios são enormes. O estudo mostra como o Governo Federal pode apoiar as cidades na produção local de alimentos. Os municípios já fazem muita coisa por conta própria. A União tem um papel imprescindível que é olhar de cima para baixo. Ao invés de olhar as ações que acontecem no varejo pode, no atacado, tocar algumas atividades que são gargalos crônicos em todas as cidades.
Quais são esses gargalos e como o Governo Federal pode contribuir para superá-los?
A questão do uso de áreas que são consideradas conflituosas, como as de proteção ambiental. Os sistemas agroflorestais são exemplos de aliar a produção de alimentos com a preservação do meio ambiente e até ampliar áreas verdes na cidade. Mas se não há uma orientação de cima para baixo, de como isso é possível, há uma resistência muito grande de usar essas áreas para esses fins.
Também é preciso mobilizar a sociedade e disponibilizar recursos não só para produzir novas hortas mas, também, para auxiliar os municípios que precisam de capacitação até para pleitear mais recursos, sejam internacionais, de bancos de desenvolvimento ou do Governo Federal. Se abre um edital, muitas cidades não conseguem captar esse dinheiro porque não têm uma equipe nem dedicada a isso, nem com capacidade de enfrentar a burocracia. São exigências difíceis de serem cumpridas.
Foi por essa razão que olhamos de cima para baixo mas, para ter esse olhar, precisávamos entender os problemas de baixo para cima, conhecer as cidades com seus desafios, suas complexidades, o que ajudou a montar esse grande compilado de recomendações que o Governo Federal tem aceitado, ouvido, abraçado. Estamos em diálogo com os ministérios e esse também é um diferencial: o programa foi assinado por quatro ministérios.
Você está se referindo ao Programa Nacional de Agricultura Urbana?
Sim. Quando a agricultura urbana surgiu no Governo Federal, era só uma portaria dentro do Ministério do Desenvolvimento Social. Agora virou um decreto assinado por quatro ministérios: do Meio Ambiente, do Desenvolvimento Social, do Desenvolvimento Agrário e o do Trabalho e Emprego. O que traz essa nova tônica de associar a produção de alimentos com a geração de emprego e renda, o que já é um passo interessante.
Temos dialogado com esses ministérios, apresentando o resultado dos estudos, ajudando a fazer a associação entre os desafios locais que poderiam ser endereçados de cima para baixo. Esses ministérios têm como ajudar a resolver alguns desses problemas no atacado, essa é a razão do nosso diálogo constante: provocá-los a estimular o fomento à agricultura urbana como uma estratégia de combate à fome e à pobreza, de resiliência climática das cidades e de geração de emprego e renda.
Também estamos falando que o Governo Federal deve dialogar mais com os Estados que são importantes porque ali entram as regiões metropolitanas e onde estão as secretarias de Agricultura. Quando o Governo Federal traciona essa agenda, temos mais chances de fazê-la desenvolver. Há um interesse altíssimo da sociedade civil de se articular cada vez mais para esse tema. Um dos pontos positivos depois que publicamos o estudo foi que o Recife começou a debater com sua sociedade civil uma política municipal de agricultura urbana e periurbana que não existe, é uma política pública, mas não uma lei municipal. Então, trazer o debate à tona é fazer com que ele avance.
Há uma expectativa positiva porque quando o programa foi publicado, todos os ministérios estavam trabalhando com o orçamento do governo anterior, logo, não tinham muitos recursos. Esperamos que haja mais orçamento desses ministérios para que a agenda da agricultura urbana, conforme as recomendações apresentadas pelo estudo, possam, de fato, avançar.