A Casa de Pai Adão, Opeatanã. – Revista Algomais – a revista de Pernambuco
Cultura bem temperada

Cultura bem temperada

Raul Lody

A Casa de Pai Adão, Opeatanã.

Uma homenagem ao babalorixá Manoel Costa 

O Sítio, terreiro Obá Ogunté, é um conjunto de construções e de espaços sagrados destinados ao culto dos orixás, seguindo o modelo litúrgico Nagô, genericamente conhecido com Iorubá, mantendo um elenco de divindades que são perpetuadas pela ortodoxia dos rituais, onde se destaca, entre as muitas cerimônias, o chamado Presente de Iemanjá ou Panela de Iemanjá.  O terreiro é consagrado a Iemanjá, divindade das águas do mar.  Une-se, assim, a realidade da cidade do Recife, entrecortada de rios e com um litoral atlântico, com o patronato de Iemanjá.  As águas compartilham o cotidiano do recifense, e Iemanjá também está presente nesse cotidiano indivisível do sagrado e do profano.

O terreiro é o local das reuniões, e onde são reativados os laços de parentesco de santo, os laços de parentesco consanguíneo, e também são mantidos todos os elos necessários ao culto dos orixás; suas liturgias, suas festas, comidas, danças; música vocal, música instrumental, indumentárias, vocabulários; posturas hierárquicas, sistemas de poder, processos adivinhatórios, medicina, ludicidade; enfim, é o local onde a memória afro-brasileira é aquecida através dos rituais, que podem ser diários e cíclicos.

O terreiro é ainda espaço físico destinado á guarda das crianças e dos idosos. Percebe-se uma organização assistencialista latente no próprio sistema de poder do terreiro.  Tudo gira em torno da hierarquia.  Os mais velhos que sabedores de rituais, e conhecedores das histórias, são muito respeitados; por sua vez, as crianças são encaminhadas aos saberes da música, dança, brinquedos, histórias, tendo sempre a referência básica _ o orixá _ seu domínio, seu patronato, sua ação direta na vida do homem.

O espaço público _ salão _ barracão de festas, obedece ao rigor da arquitetura original, o mesmo acontecendo com os compartimentos germinados ao barracão, como a cozinha, a sala de visita e quartos.  Também há a capela, aos moldes católicos, e o peji, o local mais sagrado dos compartimentos, completam  o conjunto de habitações do terreiro.  Algumas casas de taipa existem afastadas do núcleo religioso, são moradias das pessoas do próprio terreiro.

Nesse amplo conjunto de espaços sagrados, destaca-se a fitolatria como outro significativo momento religioso do culto aos orixás.  Aí se vê a gameleira ou o pé de Iroko.  Iroko _ divindade que habita o tempo_ é o próprio tempo meteorológico e cronológico, é o senhor da gameleira, árvore de grande respeito por parte dos adeptos do terreiro.  

A gameleira é uma árvore sagrada e rara.  No Recife, é este o único terreiro que possui e que mantém os preceitos rituais do culto ao orixá Iroko.  Ainda no campo da fitolatria, observa-se no terreiro as ervas litúrgicas, plantadas em jardim especial, contendo as principais folhas dos rituais, aquelas usadas nos amassi; nos abôs, nos banhos, nos sacudimentos; nas feituras de Iaôs, também para os remédios mais simples e para os adornos do peji e do barracão de festas.

Dessa maneira, cada elemento dos rituais tem um significado prescrito, há um conhecimento especial da comida, da música, das folhas, das passagens da iniciação; e para cada controle há um nível de conhecimento, há um cargo específico, determinado no complexo da hierarquia sociorreligiosa.  Esses cargos têm iniciações específicas e são ocupados por pessoas escolhidas pelos orixás, e que também por vínculo familiar têm uma tradição da ocupação de determinados cargos no terreiro.  Isso é comum com os ogãs, músicos, com os Olossães, sacerdotes de Ossãe_ divindade das ervas litúrgicas e medicinais.

O terreiro é organizado para o culto dos diversos orixás, cada um deles com aspecto próprio, estabelecendo seus gostos e preferências por cores, materiais, formas, músicas, danças, alimentos.

Os objetos rituais carregam a marca dos orixás, e, para atender ao elenco de objetos que compõem a cultura material dos terreiros, existem aquelas pessoas que se dedicam ao artesanato de ferramentas de santo, objetos de assentamento.  Confecção de ilus, instrumentos musicais. Costureiras que fazem as roupas dos santos, enfim, uma equipe artífices, conhecedores dos rigores e gostos dos orixás, suas marcas visuais, texturas preferidas, objetos necessários.  Aí se notam alguns artesãos-sacerdotes, visto o alto significado dos objetos para a religião, sua ocupação nos pejis, sua sacralidade por meio de rituais específicos.

O sincretismo religioso afrocatólico é outro aspecto decisivo na organização modelar de terreiro.  O santo católico e sua ligação com o deus africano é íntima no processo desaculturação da mitologia africana, no caso, a Iorubá.  Assume, então, o santo católico lugar comum do orixá, e, em muitos casos, no pensamento religioso dos terreiros, é indispensável o santo do orixá.

     São muitas as comidas que formam os cardápios dos orixás. São comidas especialmente preparadas pela iabassê, mulher iniciada, preparada para alimentar os deuses e a comunidade do terreiro.

    Cada ingrediente, tempero, quantidade, técnica culinária, e estética do prato, tem um significado, e assume um valor na liturgia da alimentação. É tradição nos terreiros comer bem, e muito, pois a fartura das comidas é uma marca do sentido de que a natureza é capaz de prover e de nutrir os homens. Nutrir também os orixás com os seus pratos especiais.

Sem dúvida, há uma comunicação intensa entre as cozinhas dos terreiros e as cozinhas das casas; entre os cardápios do cotidiano e o cardápio das festas.

Nesses muitos e variados cardápios estão as comidas de dendê, o uso de temperos tradicionais africanos como o atá ou ataré que é a pimenta da costa; os frutos, obi e orobô; e as favas lelecum e bejerecum; o quiabo e o inhame, também africanos.

Produtos nativos, da terra, como o milho, a mandioca, o feijão; carnes de diferentes animais; e produtos do mar, especialmente o camarão; unem-se aos temperos para formar comidas saborosas, pois a maioria das comidas dos orixás são as mesmas partilhadas pelos homens.

Exemplo de comida ritual que pertence ao orixá Xangô é o begueri, prato feito à base de quiabo, camarões secos, azeite de dendê, carne de boi e muita pimenta.  Este prato é servido numa gamela redonda de madeira.

Gilberto Freyre se lembra de Adão, Pai Adão, conhecido no Xangô de Pernambuco como Opêatanan, e também Oxirê Obá, e com o cargo de Alapinim, e que teve os seus ensinamentos em Lagos, Nigéria, em 1906, terra dos Iorubá. Tornou-se lá o grande sacerdote e conhecedor das tradições e dos saberes que identificam os territórios do Xangô pernambucano, e que se espalharam pela sociedade afrodescendente.  

“Adão: o grande babalorixá do Fundão, subárea do Recife (…) na qual viveu Adão, de volta da África, a vida inteira, sem mudar sequer de casa – nem de casa nem de profissão – ao contrário de borboleteantes ioiôs brancos que em tantas casas residiram na mesma época.  Conheci de perto o velho babalorixá de quem fui, repito, amigo íntimo. Mais de uma vez almocei à sua mesa de sacerdote que tinha a dignidade de um bispo. Quis escrever-lhe a biografia de perfeito afro-brasileiro. Sua morte impediu a realização, ou tentativa de realização, da biografia planejada; e para a qual cheguei a tomar notas como que taquigráficas de conversas. Seria ela trabalho de caráter menos histórico-social que psicossocial, embora igualmente sociológico nas suas pretensões. Seria menos histórico-social e mais antropológico-social por ter de basear-se principalmente em documentos pessoais orais, colhidos da boca do próprio biografado e de seus filhos, parentes, amigos, colaboradores, inimigos, rivais. (…)”. (Freyre, Gilberto. Pessoas, coisas & animais.  Editora O Globo, 1981:44-47).

     Notadamente no Terreiro Obá Ogunté, Nossa Senhora da Conceição é Iemanjá, passando a ser unificadamente uma divindade sincrética, a Nossa Senhora, a mãe, Iemanjá a mãe mítica da qual nasceram todos os orixás, após o incesto de Orungã, o ar, seu filho.  

A presença unificadora da maternidade caracteriza a santa e o orixá.   Os domínios das águas, fonte da vida, fertilidade, tonificam a personalidade do novo personagem sincrético, havendo necessidade de revitalização dos rituais através dos cultos públicos às águas.  Assim, é um constante voltar aos rios e ás praias, é a íntima ligação vida e culto.  É decisivamente o santo católico e o orixá, juntos, se apresentando como única divindade.  Dessa maneira, 8 de dezembro é a festa de Iemanjá, dia de Nossa Senhora da Conceição.  Culminam aí as comemorações com a festa pública no terreiro, quando é organizado o presente, a panela de Iemanjá; contendo perfumes, comidas, espelhos, fitas, sabonetes e muitas flores; o cortejo ritual sai do terreiro, indo até um local determinado para a entrega do presente nas águas.

Todos os pais e mães-de-santo antigos do Recife afirmam que o costume de oferecer a panela de Iemanjá foi iniciado por Pai Adão, Terreiro Obá Ogunté, daí seguindo todos os terreiros filiados nas gerações de filhos-de-santo que, após os períodos de iniciação, têm aptidão para abrir sua casa, ou seja, o novo terreiro; no entanto, os vínculos com a matriz são eternos.

Dessa forma, no Recife, o Terreiro Obá Ogunté é o primeiro a fazer o seu presente, panela de Iemanjá, o que é seguido por ordem hierárquica dos terreiros filiados; não havendo coincidência de datas, há uma preparação de calendário: primeiro, o Sítio, depois, os terreiros filiados mais antigos, e assim sucessivamente.

Além das práticas públicas, como a panela de Iemanjá, destacam-se os rituais privados, onde tomam parte os iniciados e os convidados de total confiança da casa; dessa forma, são mantidos os preceitos fundamentais, ou seja, são reativados os elos dos orixás com os iniciados e com o próprio terreiro.   Os atos do ossé, limpeza, os sacrifícios de animais, as comidas; os preceitos sexuais, as abstinências de alimentos e bebidas, o uso de roupas brancas às sextas-feiras, condicionam os comportamentos e os rigores do culto ortodoxo e da consciência dos significados de cada ato, de cada gesto, de cada postura diante do orixá; num verdadeiro estabelecimento de linguagens próprias, em que o deus tutelar patrocina os rituais no terreiro, estendendo-se na própria vida, nas relações sociais comuns e no cotidiano das pessoas.

Tombamento

O Terreiro Obá Ogunté seita africana Obá Omim, popularmente conhecido como o Sítio do Pai Adão é a primeira Comunidade/Terreiro tombada no Brasil a nível estadual e isso ocorreu pelo Governo do Estado de Pernambuco por meio do Decreto 10.712 de 5 de setembro de 1985. É a primeira Comunidade/Terreiro do Xangô, sistema etno-cultural de matriz africana a ser tombado enquanto Patrimônio Cultural.

  Declaro estar honrado em ter solicitado este tombamento e de ter instruído o processo com  conteúdos  sócio-culturais e antropológicos sobre o Xangô de Pernambuco.

Caso anterior se deu com o Terreiro de Candomblé da Casa Branca, Ilê Iá Nassô, Salvador / Bahia (1981, IPHAN Nacional).

O Terreiro Obá Ogunté segue o modelo chamado Nação Nagô-Egbá, preservando memórias e identidades desse grupo Egbá ou Ebá, procedente da Nigéria, África Ocidental.

O Sítio é reconhecido no Recife, Pernambuco, e na região como uma casa-matriz, de onde nasceram muitas outras casas de Xangô, preservando importantes referências e patrimônios afrodescendentes.

Na Comunidade-terreiro há um forte sentimento e desejo de manter, de comunicar e socializar suas histórias enquanto importante lugar no Recife, de onde tantas outras manifestações culturais como: Coco; Acorda Povo; Maracatu Elefante e Leão Coroado, têm suas mais profundas relações sociais e religiosas.

*RAUL LODY é antropólogo

Deixe seu comentário

+ Confira

Assine nossa Newsletter

No ononno ono ononononono ononono onononononononononnon