Impulsionados pela Fenearte e, em muitos casos, com apoio de entidades e políticas públicas, os pequenos empreendedores do setor consegue gerar e promover o desenvolvimento de suas comunidades
*Por Rafael Dantas
O barro se transforma em cerâmica, os fios de lã viram tapetes e a madeira ganha formas nas mãos dos artesãos. Essas e tantas outras tipologias, como a pedra e até mesmo a sucata, representam a união de inspiração, talento e saberes que há tempos moldam a identidade cultural de Pernambuco. Esse legado, somado ao empreendedorismo e à profissionalização, também impulsiona negócios e desenvolvimento. A combinação tem levado pequenos artesãos, associações e pequenas empresas a ultrapassarem fronteiras, exportando suas criações da Região Metropolitana e do interior para o Brasil e o mundo.
A Fenearte, que reúne centenas de artesãos pernambucanos, dos mais diversos municípios, é a principal passarela de todo esse trabalho que coloca lado a lado mestres consagrados e novas gerações de artistas e empreendedores. Apesar da importância da feira, que movimentou R$ 108 milhões no ano passado, a vitalidade desse segmento vai muito além dos 12 dias do evento. Gera emprego, renda e muita cultura ao longo dos 12 meses do ano.
“As pessoas cada vez mais veem o artesanato como trabalho e fonte de renda principal, não secundária. As pessoas valorizam, reconhecem o valor agregado dessa atividade. Além disso, o artesanato pernambucano está bem-posicionado no Brasil e no exterior, o que atesta a nossa biodiversidade, cultura e identidade”, afirmou Camila Bandeira, diretora de Promoção da Economia Criativa da Adepe (Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco).

"As pessoas cada vez mais veem o artesanato como trabalho e fonte de renda principal, não secundária, e reconhecem o valor agregado dessa atividade. O artesanato pernambucano está bemposicionado no Brasil e no exterior, o que atesta a nossa biodiversidade, cultura e identidade." Camila Bandeira
Pernambuco tem 16.339 artesãos ativos pelo Sicab (Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro), deste mês. Como a atividade é muito informal e em muitas comunidades uma pessoa é cadastrada para fazer a comercialização de um produto construído coletivamente, o número de profissionais que vive da atividade é muito maior.
A pesquisa Diagnóstico do Artesanato Brasileiro e Planejamento Estratégico, coordenada pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2021, apontou que 18% do total de pessoas ocupadas no País em atividades artístico-culturais, são do artesanato. Entre 2012 e 2021, houve um crescimento de 26% do número de profissionais no setor.

Marcos de Sertânia tornou sua arte conhecida e a cidade se firmou como celeiro de talentos. Trabalham com o mestre de 15 e 20 pessoas e outros seis coletivos surgiram na região. Ele montou um local para ateliê e exposição, que vai ganhar um café, e espera torná-lo um ponto turístico.
Um dos nomes que simboliza bem a transformação do fazer manual em atividade econômica é Marcos de Sertânia. A mais de 300 quilômetros do Recife, o município sertanejo se firmou como um celeiro de talentos. Só no ateliê do mestre, entre 15 e 20 pessoas estão envolvidas na produção. Marcos destaca ainda que outros seis coletivos surgiram na região, consolidando o nome da cidade no cenário da cultura popular pernambucana.
“A gente fortaleceu isso no interior. Pegamos dinheiro de fora para injetar na economia da nossa cidade. O maior empreendedorismo para a gente foi esse”, celebra o mestre. Marcos, inclusive, construiu um novo espaço para ateliê e exposição, que ainda vai ganhar um café. A expectativa é que se consolide como um atrativo turístico de Sertânia.
Há 38 anos na atividade, Marcos construiu seu talento com o aprendizado vindo de feira em feira. Suas esculturas de animais de membros longos conquistaram espaço em galerias, coleções particulares e eventos culturais. O cachorro – peça mais vendida do ateliê – lembra, por coincidência, a personagem Baleia, da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Curiosamente, Marcos só conheceu a história depois de já representar, por instinto e inspiração no Sertão, a figura que se tornaria a marca do seu trabalho.
COMUNIDADES DO ARTESANATO
Por trás dos mestres, não é incomum existirem verdadeiras comunidades de artesãos. Inclusive, diferentes gerações vivendo do artesanato. Esse é o caso do Sítio Rodrigues, que fica em Belo Jardim. “Lá é um berço de artistas. É uma comunidade com mais ou menos 200 habitantes, mas tem três mestras: Cida Lima, Neguinha e Nanai e a minha mãe, que infelizmente faleceu. Fora elas, tem uma grande parte da população que também trabalha com barro”, conta Carol, que veio para a Fenearte ao lado da irmã Pepinha, trazer o DNA de Luiza do Tatus, que morreu em 2023.
Carol brinca com o barro desde criança. Na adolescência passou a fazer suas próprias peças em forma de onças. Com a despedida da matriarca, ela reproduz as peças de Luiza dos Tatus, mas também tem obras de sua inspiração à venda. A irmã é mais recente na atividade, tendo a experiência de contribuir no acabamento das peças, e fez a sua primeira participação na Fenearte neste ano.

O Sítio Rodrigues, em Belo Jardim, é um berço de artistas. Entre as mestras mais conhecidas está Luiza dos Tatus, falecida em 2023, mas cujo talento foi passado para suas filhas Carol (esquerda), e Pepinha (direita), ao centro o pai delas, João José de Cazuza.
Com foco na produção do ateliê, sobra pouco tempo para se capacitar como empreendedora. Mas Carol afirma que algumas formações foram oferecidas no município. Apesar dos obstáculos, como a baixa remuneração e a dificuldade para escoar a produção, a família resistiu. Com a Fenearte um novo horizonte começou a se desenhar. “A partir da Fenearte passou a abrir as janelas para nosso trabalho. As pessoas começaram a valorizar mais e as peças passaram a ter um valor diferenciado”.
Entre fios e inspirações, uma cidade pernambucana que gira em torno da tapeçaria é Lagoa do Carro. Quem passeia pelas inúmeras ruas da Fenearte vai encontrar sete estantes com as mestras. Isabel Gonçalves, há 44 anos na atividade e presidente fundadora da Associação das Tapeceiras, relembra que o artesanato moldou gerações. “Lá é o mais tradicional. Já chegamos a ter uma média de duas mil mulheres produzindo tapete." Segundo ela, a associação fomenta diretamente a produção de 80 artesãs, mas a atividade envolve mais de 200 tapeceiras na cidade, mantendo viva uma herança que mistura saberes portugueses com traços marcantes da cultura local, como o maracatu e os azulejos da Zona da Mata.

Isabel Gonçalves (à direita com a artesã Eliane Santos), presidente da Associação das Tapeceiras, em Lagoa do Carro, mantém a tradição dessa arte, mas é aberta a inovações, como a comercialização online, iniciada na pandemia e que hoje é uma estratégia consolidada.
A tapeçaria é mais do que um ofício em Lagoa do Carmo. É identidade. A produção, feita com técnica manual, representa uma arte passada entre gerações, alimentada por referências visuais e simbólicas da região. “A gente fortalece a fauna, a flora, os pescadores, os trabalhadores rurais. Tem alma, tem sentimento, tem paixão”, emociona-se Isabel. Essa alma é o que diferencia, segundo ela, o artesanato de outras formas de empreendedorismo.
Apesar do forte vínculo com a tradição, Isabel demonstra visão contemporânea sobre os rumos da associação. Eleita novamente presidente em 2025, aposta na construção de um portfólio profissional para ampliar a presença digital e alcançar novos mercados. A comercialização online, impulsionada na pandemia, é agora uma estratégia consolidada para manter a tapeçaria circulando entre feiras, centros de artesanato e compradores diretos. “A gente precisa ter uma apresentação melhor. Estamos investindo nessa questão da imagem.”
A experiência de associativismo de Lagoa do Carro ainda é minoritária no segmento. Segundo o diagnóstico da UFMG, apenas 3% dos artesãos no País atuam em associações. A informalidade também é prevalente de acordo com o estudo. Apesar da importância em relação à geração de oportunidades, o rendimento médio dos artesãos no País é de apenas um salário mínimo mensal, segundo a pesquisa da universidade mineira. Uma atividade predominantemente exercida por mulheres, pretos e pardos.
O PODER DA INOVAÇÃO
O artesanato pernambucano é um destaque nacional, além de o Estado abrigar a maior feira da América Latina. Mesmo assim, há mais caminhos a serem percorridos para gerar mais renda e fortalecer a atividade que contribui para sustentabilidade cultural e ambiental no Estado. Camila Bandeira considera que a Fenearte e o Centro do Artesanato contribuíram bastante para essa consolidação. Para o futuro, ela considera que “talvez precise um trabalho voltado para inovação. Não é fazer uma interferência na criação, mas agregar com um olhar mais voltado para o mercado, respeitando a história e a trajetória daquele artesão”.

"Quando a gente traz informações de gestão e de inovação, certamente esse trabalho vai alcançar novos mercados. Vemos como o design transforma o artesanato. O artesão tem a peça, a criação que deu certo, mas ela pode ser evoluída a outras possibilidades." Verônica Ribeiro
A empreitada pelos meios digitais mencionada por Isabel e o investimento em atividades relacionadas, como a nova estrutura do ateliê de Marcos de Sertânia, são dois exemplos de inovação para fortalecer o artesanato. Porém, é principalmente no diálogo com o design e na escuta dos consumidores que a atividade abre novos mercados.
“Quando a gente traz informações de gestão e de inovação, certamente esse trabalho vai alcançar novos mercados. Vemos como o design transforma o artesanato. O artesão tem a peça, a criação que deu certo, mas ela pode ser evoluída a outras possibilidades. O design traz informações para que o artesão floresça”, afirma Verônica Ribeiro, gestora de Turismo e Economia Criativa do Sebrae Pernambuco.
Quem inovou ao cruzar os caminhos do artesanato com a moda foi Denis Borges. Natural de Bezerros, ele carrega no sangue a tradição da xilogravura: é neto de Nena Borges – a mulher mais antiga na atividade em Pernambuco – e de Amaro Francisco, irmão de Jota Borges. Com formação em moda e tendo o ofício de artesão por vocação, Denis levou para a Fenearte o seu slogan: Xilogravura Que Veste.

Neto de Nena Borges – a mulher mais antiga na xilogravura em Pernambuco – e de Amaro Francisco, irmão de Jota Borges, Denis Borges tem formação em moda e passou a desenvolver estampas autorais para roupas a partir de desenhos feitos em madeira, utilizando a técnica tradicional. Denis Borges
Durante a pandemia, em 2020, ele decidiu unir sua bagagem acadêmica à herança familiar. Passou a desenvolver estampas autorais a partir de desenhos feitos em madeira, utilizando a técnica tradicional como ponto de partida para peças únicas que dialogam com a cultura nordestina. Algumas estampas nascem de narrativas próprias; outras utilizam elementos das obras de seu avô, como os papangus e os retirantes.
“A minha roupa só vai dar continuidade se eu tiver madeira”, afirma Denis, ressaltando que a arte gráfica é a base de tudo. Suas criações – camisas, blusas, tops e bermudas– são talhadas na madeira antes de ganharem vida em tecidos. Apesar da proximidade do polo têxtil, é no Recife que está o público interessado em moda autoral e onde ele comercializa a maior parte da produção, em lojas colaborativas. O designer tem planos de abrir um espaço onde possa integrar os trabalhos de outros membros da família, mantendo viva, na madeira e no tecido, a tradição que o formou.
A inovação está no radar mesmo dos artesãos já consolidados no setor. Mestres que têm um público de colecionadores e buscam trazer novidades. As tapeceiras de Lagoa do Carro, por exemplo, mesmo sendo conhecidas por suas estampas mais tradicionais, têm investido em temas da cultura regional. “Já desbravamos muito na cultura popular. Eu faço maracatus, uma colega está lançando desenhos de negritude também. Temos gente retratando a fauna, a flora, o pescador e o trabalhador rural”, conta Isabel Gonçalves.
Marcos de Sertânia criou uma carranca da sua principal peça. “Uma cobrança infinita para quem é cantor é sempre ter uma composição nova. Para o artesão, é criar uma peça nova. Sempre tive vontade de fazer uma carranca, mas minha região não tem nada a ver com o Rio São Francisco. Aí estou fazendo as carrancas relacionadas à Baleia. Eu coloquei o nome de Baleia Carrancuda. É um experimento”, conta o artesão e empreendedor.
FORMAÇÃO PARA EMPREENDER
Muitos artesãos aprendem a empreender “apanhando”. Processos de tentativa e erro, escutas diretas dos compradores. Mas há caminhos formativos também por instituições públicas para fomentar a atividade. Mano de Baé, de Tracunhaém, por exemplo, passou pelo PAB (Programa do Artesanato Brasileiro).

Mano de Baé, de Tracunhaém, percebeu que não bastava apenas dominar a técnica das peças em barro: era preciso também entender como transformar sua arte em um negócio sustentável. O ponto de virada foi a sua participação no programa PAB Pernambuco, em 2019.
O artesão iniciou seu caminho no artesanato ainda criança, ao lado do pai, mestre Baé. A relação com o barro começou como uma brincadeira de infância, mas logo se transformou em ofício. Com o tempo, Mano percebeu que não bastava apenas dominar a técnica: era preciso também entender como transformar sua arte em um negócio sustentável. Os pontos de virada foi a sua participação no PAB Pernambuco, em 2019, que ele considera uma escola de empreendedorismo para os artesãos.
“O PAB foi onde eu me emancipei, quando senti a magia do empreendedorismo. Ali eu entendi que dava para desbravar meu negócio”, lembra. A partir dessa experiência, passou a enxergar suas peças como obras com valor artístico e comercial. Comprou seu próprio estande, conquistou espaço na Alameda dos Mestres e teve contato com o Sebrae e o Centro de Artesanato de Pernambuco, que o ajudaram a estruturar melhor sua produção e ampliar o alcance do seu trabalho.
Hoje, Mano é procurado por arquitetos, designers e curadores, e já teve uma de suas obras exibida na novela Lei do Amor, em 2016. Seu público começou na Fenearte mas se expandiu com exposições e galerias em outras cidades. Para ele, iniciativas que unem arte e capacitação empreendedora são fundamentais para que mais artesãos possam viver da própria criação.
Em Pernambuco, uma novidade recente foi o PE Artesão, um programa do Sebrae em Pernambuco voltado à profissionalização dos artesãos. Por meio das Jornadas Criativas, duplas de designers atuaram com grupos de artesãos em todas as unidades regionais da instituição, desenvolvendo novos produtos com apelo de mercado, sem perder a identidade cultural. Foram oferecidas capacitações em precificação, processos produtivos, inovação, marketing digital, acesso ao crédito e gestão financeira, pontos que frequentemente representam desafios para quem transforma a arte em negócio.

De acordo com Verônica Ribeiro, quase 150 artesãos já foram atendidos pelo PE Artesão. O programa também contribuiu para que muitos produtos se destacassem na Fenearte, tanto pela qualidade estética quanto pelo potencial comercial. "A gente precisa preparar o artesão para ser empreendedor, não necessariamente um empresário top, mas alguém que tenha o mínimo de discernimento para gerir o próprio negócio."
Com raízes profundas na cultura popular e olhos no futuro, o artesanato pernambucano mostra que tradição e inovação não são caminhos opostos. Pelas mãos e pela criatividade dos artesãos, essas trilhas se cruzam no cotidiano de quem vive da criação manual. As histórias de Marcos, Carol, Pepinha, Isabel, Denis e Mano revelam que, além de talento, é preciso apoio técnico, acesso a mercados e políticas públicas consistentes. Fortalecer essas pontes é garantir que o barro, o tecido, a madeira e os fios continuem moldando não só obras de arte, mas também projetos de vida e desenvolvimento.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)