Novo livro do autor pernambucano retrata fissuras emocionais e sociais do Recife contemporâneo e já recebeu elogios de grandes nomes da literatura brasileira
O escritor pernambucano Ney Anderson apresenta ao público Apocalipse Todo Dia (Editora Patuá), uma antologia de contos curtos que mergulha nas tensões invisíveis — e sempre à espreita — da vida urbana. Ambientada principalmente em um Recife caótico, solar e brutal, a obra revela personagens marcados por traumas, fé, desejo e violência cotidiana. Após o lançamento na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o autor prepara sessão especial em Olinda, na Casa Estação da Luz, amanhã, dia 29 de agosto, às 19h.
Com apresentação de Marcelino Freire, que define os textos como “contos curtinhos repletos de assassinatos, almas penadas e vizinhos suspeitos”, o livro reafirma a força literária de Anderson. O autor radicaliza o estilo que já havia mostrado em O Espetáculo da Ausência, também da Patuá, apostando em narrativas enxutas, tensas e carregadas de silêncios. “Tudo é matar ou morrer”, resume Freire. “Ney pinta e borda. Sem dó. Com graça (e desgraça).”

A recepção crítica confirma o impacto da obra. Para Ana Paula Maia, trata-se de “um memorial para se lembrar de que o amor é eterno”. Raimundo Carrero enxerga “um amadurecimento radical de estilo”, enquanto Paulo Scott considera o livro “uma obra que merece ser relida, aplaudida, que nos prende e pede revisitas”. Santiago Nazarian destaca o humor ácido do autor; Marcela Dantés vê “uma notável coleção de personagens com aquilo que têm de mais humano”; já Tito Leite afirma que Anderson “abre os pulmões de uma Recife, e quem respira são os leitores”.
Mais do que cenário, Recife é quase um personagem da coletânea, com suas ruas históricas, casarões em ruínas e dramas urbanos. Mas os contos ultrapassam fronteiras e poderiam se passar em qualquer capital brasileira. Violento, intenso e visceral, Apocalipse Todo Dia é um retrato fragmentado do presente — uma arqueologia emocional que expõe as contradições do nosso cotidiano.
CONFIRA ABAIXO NOSSA CONVERSA COM O AUTOR
“A literatura é a arte do incômodo”

O que te inspirou a escrever “Apocalipse todo dia”?
O meu trabalho é muito focado na observação diária do cotidiano. Gosto de anotar ideias, frases, situações que eu vejo no dia a dia, diálogos etc. Mas sempre com a cabeça do autor. O que me interessa é tentar captar algo ficcional por trás das coisas reais. Explico. Eu não copio a realidade e transponho para os meus contos. Não. Não sou um cronista no termo técnico da palavra. Ou um repórter escrevendo matérias. É outro universo. Quando eu observo alguma situação interessante, tento fabular algo maior, um drama, uma história que sirva à literatura. Algo que não existe nessa “realidade” que observo. Isso a partir das coisas mais simples, do corriqueiro, do que ninguém parece ver. Eu gosto de determinados climas e sensações. Agora, a minha criação não é cem por cento assim. Necessariamente, sinto a necessidade de estar sempre escrevendo, criando, pensando, tentando resolver questões. E vem tudo junto. “Apocalipse Todo Dia” nasceu dessa forma. Eu quis escrever um livro com contos curtos e cortantes, alguns chocantes. Não apenas para assustar ou causar repulsa, mas para fazer o leitor sair do lugar comum, tirá-lo da zona de conforto. Nesse sentido, Apocalipse Todo Dia é feito dos assombros cotidianos. Muito deles podem até passar despercebidos, pois quase sempre a urgência dos dias é tão frenética, que parece nos envolver numa espécie de armadura. A impressão é que ninguém se choca com mais nada, tudo caminha com uma certa normalidade, mesmo quando alguma coisa grotesca acontece. O exemplo clássico é a morte de alguém num estabelecimento, onde as pessoas nem ligam e seguem a soa rotina com tranquilidade, quase passando por cima do corpo da pessoa estendida esperando o carro do IML.
Quando está no seu momento criativo ou na edição do material, você pensa nos efeitos que ele vai ter nos leitores?
O primeiro leitor que tento agradar sou eu mesmo. Se não prestar para mim, não vai prestar para mais ninguém. Eu sou a primeira pessoa que precisa ficar satisfeita com o texto que acabou de ser escrito. Embora, para o texto ficar pronto mesmo, demora bastante. Às vezes dias, semanas, meses e até anos. Pode ser o menor dos contos. Agora, eu sempre faço um exercício após a conclusão. Ler determinado texto para pessoas com gostos variados. Faço isso para ver a reação delas. Dos leitores/ouvintes beta. Se a pessoa ouve e não esboça nenhuma reação, o objetivo não foi atingido. Agora, se eu conseguir incomodá-los de alguma forma, aí, sim, consegui o que queria. Não um incômodo gratuito, mas aquele que faz o leitor parar para refletir sobre tantas camadas que existem nas entrelinhas dos contos. O sorriso nervoso. A literatura é a arte do incômodo. Não um simples passatempo. No entanto, mesmo com certos temas aparentemente pesados, existe um “divertimento” na leitura. Pois o leitor compreende que está lendo uma história de ficção. Todo leitor buscar se entreter. Ele procura, no final das contas, um livro bem escrito e que prenda a sua atenção.
Você disse que o Recife é esse lugar onde suas obras são ambientadas e é quase um personagem do texto. Mas a cidade é feita por muitas. Como é a sua relação com o Recife e qual é a cidade que você convive, te inspira e está presente nas suas obras?
A minha lupa vai sempre para os dramas humanos. Dessa rotina estafante que as pessoas e os personagens precisam conviver diariamente. Gosto das coisas inconclusas, das lutas, da sobrevivência. Não a cidade cartão-postal das propagandas turísticas. Eu sou um ficcionista que pensa o Recife, de fato, como uma personagem dentro das histórias. Os seus becos, as suas figuras sombrias, as conversas nas mesas de bar, os ônibus lotados, a euforia do carnaval etc. Os meus textos mostram esses pedacinhos do Recife que se complementam como um enorme quebra-cabeça. Tem até, aqui e ali, algo mais solar, claro. Porque o Recife é solar. Como toda metrópole, tem as suas contradições. É esse o ponto que me interessa. Do conflito. Da corda bamba que os personagens se equilibram: entre o bem e o mal. Gosto da ideia da ideia do purgatório. Estão todos ali tentando a purificação. Alguns conseguem. Outros, não. É a vida. Seja ela no aspecto material ou espiritual.
Como você avalia o momento da literatura brasileira e, após passar pela Flip, quais espaços estão nos seus planos para levar esse livro?
A literatura brasileira vive um ótimo momento. Nunca se publicou tanto e com qualidade. Após a pandemia, parece que houve um aumento dos eventos do setor. A Flip, por exemplo, mostra essa diversidade. Por lá passaram autores interessantes, de várias partes do país, com obras realmente boas. E muitas editoras independentes, reafirmando o profissionalismo dos seus trabalhos. Enfim. Existe, sim, um “boom” de escritores. O que precisamos pensar, no entanto, é na formação de leitores para manter essa roda gigante girando. Estimular cada vez mais os jovens, mostrar que a leitura é muito mais interessante do que joguinhos de celular. É por aí. É um assunto que não se esgota e parece não ter fim. Mas eu sigo tendo esperança em dias melhores. Pretendo, ainda, fazer outros dois lançamentos após o lançamento oficial em Pernambuco na próxima sexta-feira, dia 29. Onde tiver espaço, eu vou lá tentar ocupá-los.
Serviço
Lançamento do livro Apocalipse Todo Dia, de Ney Anderson
📍 Casa Estação da Luz – Rua Prudente de Morais, 313, Carmo, Olinda (PE)
📅 29 de agosto (sexta-feira), às 19h