Cesar Cavalcanti, professor Aposentado da UFPE, membro das Academias Pernambucana e Nacional de Engenharia e Diretor da Regional Nordeste da ANTP (Associação Nacional de Transporte Público) fala para a Algomais sobre como a pandemia aprofundou a crise econômica do setor de transporte de passageiros e aponta algumas alternativas para virar esse quadro, que é crítico para a sustentabilidade das cidades.
Quais os principais desafios para a qualificação dos sistemas de transporte público das metrópoles brasileiras, como do Grande Recife?
O momento em que vivemos é extremamente desafiador e os sistemas de transporte não ficaram imunes a esta condição. Pelo contrário, os chamados Sistemas de Transporte Público de Passageiros em áreas urbanas, conhecidos pela sigla STPP, já vinham sofrendo muitas dificuldades desde antes o surgimento da pandemia de Covid-19 e, durante a eclosão do vírus, viram sua demanda, já decadente, decrescer a níveis alarmantes. Junte-se a isto, as mazelas provocadas pelo uso crescente dos veículos individuais, que contribuem para obstruir o escasso espaço viário disponível, contribuindo para tornar, ainda menos atrativo, o transporte coletivo. Outro fator de pressão sobre os STPPs, reside no reconhecimento da necessidade de descarbonização do setor, de forma a reduzir a emissão de gases de efeito estufa (a mobilidade urbana, da forma como hoje é realizada, é a principal responsável pela emissão desses gases) e assim, proteger o meio ambiente urbano e a saúde das pessoas que nele habitam. No âmbito econômico, destaca-se a premência de desconectar a histórica vinculação entre o preço do serviço ou “passagem” cobrado ao passageiro e o valor pago ao prestador daquele serviço, por razões a serem abordadas logo abaixo. Por fim, destaca-se a necessidade de conceber e efetivar novas formas de contratação dos serviços, que viabilizem a implantação de sistemas verdadeiramente integrados, nos aspectos operacional/modal, físico e tarifário. Embora outros desafios existam, acreditamos que esses se incluem entre aqueles de maior relevância.
Como a pandemia afetou a sustentabilidade dos sistemas de ônibus ou metrô?
Ao difundir o sistema de home office, limitar o número de passageiros por veículo de transporte, acometer parte do pessoal de operação pela doença e fechar ou reduzir a operação de diversas categorias econômicas, entre comerciais, esportivas, de lazer e culturais, a pandemia de Covid-19 afetou, de forma significativa (outros dizem, que, de forma quase terminal…) essa sustentabilidade: reduziu a demanda, suprimiu a disponibilidade do pessoal de operação, elevou os custos de operação por passageiro transportado, restringiu as alternativas de investimento e, de quebra, ainda contribuiu para denegrir a imagem dos STPPs, sob a controversa hipótese de que o transporte coletivo era, necessariamente, o maior disseminador do vírus.
Como a recente alta dos preços no País está afetando o setor de transporte público?
Os itens de custo mais importantes para o setor são a mão de obra, com participação de cerca de 50%, e combustíveis, com aproximadamente 30% dos custos totais. Como a mão de obra teve sua remuneração congelada, desde o começo de 2020, é de se esperar o recrudescimento das reivindicações salariais dos trabalhadores nos STPPs, como, de fato, tem se verificado em todo país, através de greves, operações padrão e outros expedientes prejudiciais à plena operação dos serviços. Já no caso do combustível, verifica-se um significativa ampliação do custo do combustível no conjunto dos custos do transporte, conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, que aponta para o crescimento de 70% do preço do óleo diesel, desde 2020. Sem esquecer que outros integrantes do custo do transporte também passam por uma substancial pressão inflacionária, verifica-se que, de acordo com estudo da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro – FETRANSPOR, publicado na Revista ÔNIBUS, de março p.p.,o custo por quilômetro do serviço metropolitano de transporte de passageiros na RMRJ, entre Janeiro de 2020 e Janeiro de 2022, passou de R$5,2805 para R$6,4829, um aumento de 22,8%.
Hoje, quais as principais discussões para se encontrar uma solução para o financiamento do sistema de transporte público no Brasil?
Sem dúvida, esta é uma questão vital para garantir a continuidade dos serviços e ela se desenvolve em duas vertentes muito importantes: novas formas de licitação dos serviços, associadas a ideias inovadoras sobre sua gestão e a questão do financiamento dos serviços, propriamente dito.
Na primeira vertente, argumenta-se pelo aumento da transparência do processo licitatório, com a realização de audiências públicas e/ou a criação de Comitês Gestores que possam aferir, com seriedade e competência as vantagens, deficiências e limitações das novas ideias que estão sendo adotadas nos países desenvolvidos, tais como, entre outras, a compra ou leasing, pelo setor público, dos veículos de transporte, com a operação entregue à iniciativa privada, por licitação. No que toca à gestão, vislumbra-se a amplificação da oferta de alternativas de transporte (patinetes, bicicletas, sistemas estruturados de carona, veículos por aplicativo, ônibus, people movers (do qual dispomos um notável exemplo, o AEROMOVEL de Porto Alegre, idealizado por Oskar Coester), VLTs, Metrôs e, no futuro, veículos aéreos), todas convenientemente interligadas e integradas, física, operacional e tarifariamente.
A vertente do financiamento toca numa chaga antiga do STPP brasileiro: sua absoluta dependência, até poucos anos atrás, das tarifas pagas pelos seus usuários, para custear a operação dos serviços e prover os recursos necessários para sua modernização/aprimoramento e expansão. Atualmente, são reconhecidos dois inviabilizadores desta opção: 1) o transporte coletivo regular urbano é um serviço caro, quando se pretende que ele apresente elevados níveis de segurança, rapidez, conforto e confiabilidade e essa carestia se reflete, naturalmente, na planilha tarifária, na razão direta da frequência e extensão territorial e temporal dos serviços oferecidos, e na razão inversa da diminuição da demanda que o utiliza 2) o cerne da demanda do STPP é constituído pelos segmentos de menor poder aquisitivo da população e, a esta dificuldade acresce o fato de que, esses usuários tendem a utilizar o transporte, pelo menos duas vezes por dia, em 5 ou 6 dias da semana (imagine-se 45 viagens/mês, a um custo médio de R$5,00/viagem, representando 225,00/mês, ou 18,6% do salário mínimo, para apenas um membro da família). Há, ainda, uma justificativa moral, reconhecida internacionalmente nos países mais avançados, para defender o rateio dos custos do STPP, com toda a população urbana, desobrigando seus usuários da responsabilidade única e exclusiva, de cobrir todos os custos resultantes do uso do transporte público.
Esta justificativa se baseia no fato de que a existência do STPP, beneficia toda a população urbana, seja viabilizando o deslocamento de pessoas que, de outra forma, não teriam a possibilidade de fazê-lo, seja diminuindo a sobrecarga dos carros individuais sobre o sistema viário da cidade que, de outra forma, atingiria níveis de congestionamento inimagináveis. Por este motivo, São Paulo, o estado mais desenvolvido do país, vem contribuindo com subsídios da ordem de 3 bilhões de reais anuais, para compartilhar, com os usuários do seu STPP, os custos de sua operação. Além disso, cabe lembrar que, atualmente, o custo do transporte das gratuidades e descontos, estimado em cerca de 20% do valor da passagem representativa vigente, recai nos ombros do passageiro comum, o que é, extremamente, injusto e ilegítimo.
As alternativas em discussão tem possibilidade real de sair do papel ou ainda são muito embrionárias?
Essas alternativas requerem estudos e decisões de caráter técnico, econômico, administrativo, ambiental e jurídico, desaguando na arena política, onde são avaliadas, discutidas e, finalmente, aprovadas ou rejeitadas. Assim sendo, embora não seja possível determinar, com precisão o prazo que levarão para atravessar todo o processo de sua construção, aprovação e implementação, pode-se admitir que algumas delas estão em plena “ebulição”, como é o caso dos subsídios, que muitas cidades já estão adotando para dar suporte aos seus STPPs.
Outra mudança recente, que apresenta um crescimento significativo, é o da implantação de faixas exclusivas para o transporte público, que permitem agilizar o movimento dos seus veículos e dar maior confiabilidade às viagens daqueles que os utilizam. Concluindo esses exemplos, pode-se citar a adoção crescente dos veículos elétricos, a despeito das questões, ainda pendentes de aprimoramento, sobre suas baterias, seus sistemas de recarga e a introdução definitiva da Célula de Combustível (também conhecida por Fuel Cell) como unidade motriz veicular no parque automotor de nosso país, constituindo o ápice de sua revolução tecnológica (o resíduo da operação deste “motor” é água potável).