“A sanfona de oito baixos está desaparecendo em Pernambuco” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco
Notas do Sertão

Notas do Sertão

Geraldo Eugênio

“A sanfona de oito baixos está desaparecendo em Pernambuco”

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Documentarista e pesquisador critica a falta de espaço para o forró tradicional nas festas juninas do interior de Pernambuco, aponta os novos talentos do baião e defende a implantação de uma política que leve o legado de Luiz Gonzaga às escolas para que essa cultura não se acabe.

Apaixonado pelo Sertão, o documentarista e pesquisador Anselmo Alves, há anos tem travado uma batalha em prol das tradições da cultura sertaneja, em especial da preservação da sanfona de oito baixos. Ao longo do tempo, os músicos que tocam o instrumento têm diminuído em Pernambuco, o que pode ser uma sentença de morte para o ritmo que Luiz Gonzaga popularizou. “A sanfona de oito baixos é importante porque é matriz musical do forró, é de onde surgiu o baião”, justifica Anselmo.

Nesta entrevista a Cláudia Santos, o documentarista critica a programação do período junino nas cidades do interior pernambucano, onde o forró tradicional não merece destaque. Aponta quem são os novos talentos que bebem na fonte de Gonzaga e defende uma política voltada para difundir o baião entre a garotada de Pernambuco. “Mestre Salustiano falava um negócio fantástico: ‘se o folguedo não chegar na criança, ele morre’. A sanfona de oito baixos não está chegando na criança”.

O que você acha da presença do forró no São João de Pernambuco atualmente?

No Recife, graças a Peixe (João Roberto, ex-secretário de Cultura do Recife), já há 20 anos, não se permite que o forró de plástico e a dupla sertaneja entrem nas festas juninas, embora já tenha entrado no Carnaval, mas no São João foi a única capital que resistiu em botar o forró autêntico. Nas outras cidades o que se ouve é dupla sertaneja, funk, passinho. Eu não sou contra nenhum desses ritmos, agora o São João é uma festa de tradição, que vem de Portugal, e quem joga o lado profano e belo é Luiz Gonzaga. Essa história começa a ser destruída a partir dos anos 1970, 1980 até os anos 1990, com a antena parabólica. Naqueles anos, os meninos de Serra Talhada – onde eu nasci – não torciam para o Náutico, nem para o Sport, nem para o Santa Cruz. Torciam para os times do Sul do País que viam na televisão e, ao mesmo tempo, assistiam às duplas sertanejas.

Para deixar mais distante da juventude o xote, o xaxado, o baião e o arrasta-pé veio a segunda leva com Carla Perez, a sexualização do palco e a dança da garrafa que, há 20 anos, vendia três milhões de discos. Não sou conservador, nem contra a sensualidade do palco. Sou contra a sensualidade chula, ou seja, uma música que descontrói a mulher e enaltece o homem como a letra de uma canção do Saia Rodada que diz “dinheiro na mão, calcinha no chão”. Isso é um estímulo à prostituição. Essa música que se diz forró, não é xote, nem xaxado, nem é baião, só usaram o nome forró. Roubaram, é um estelionato poético.

Eu nasci em Serra Talhada, numa vila de 18 ruas, meu tio era músico e passou a adolescência com Moacir Santos (arranjador, compositor, maestro e multi-instrumentista falecido em 2006), que quando estava no interior ia para a casa do meu tio. Conheci muito Moacir Santos. Então eu vivi num ambiente musical e eu ficava encantado quando vovô me levava para a feira, onde eu via um cego tocando uma sanfona de oito baixos. Era uma coisa mágica! Mas imagine se eu tivesse 11 anos hoje, cheio de hormônios, eu ia ver um velho cego, pobre, tocando sanfona de oito baixos, ou uma mulher bonita no palco? Claro que falam mais alto os hormônios do que as harmonias. Então eu acho que existe uma desconstrução muito grande.

Pergunta se na festa do peão boiadeiro, lá do Centro-Oeste, o pessoal vai deixar a gente tocar Zé Marcolino, Zé Dantas, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira? Não vai. Pergunta se no Rio Grande do Sul, que mantém a tradição (e isso se deve muito a Borghettinho (o instrumentista gaiteiro Renato Borghetti), e ao CTG, Centro de Tradições Gaúchas, que foi fundado há 60 anos e hoje tem centros espalhados não só no Brasil, mas no Uruguai, no Paraguai, que preservou a cultura.

O axé da Bahia é maravilhoso. Acho Ivete Sangalo maravilhosa, midiática, é uma artista completa, canta aqui, canta em Las Vegas, é aplaudida em todo lugar. Agora o que é que Ivete Sangalo tem para abrir o São João de Caruaru? Toda essa história do baião, do xaxado, dessa festa profana de Gonzaga nasceu com a sanfona de oito baixos.

Faço parte de um movimento chamado Respeitem os Oito Baixos. Somos eu, Leda Dias (cantora) e Diviol Lira (acordeonista). O instrumento em Pernambuco é terminal. Há 15 anos que eu luto para que essa matriz musical não desapareça. A sanfona de oito baixos é importante porque é matriz musical do forró, é de onde surgiu o baião. Ela foi trazida pelos portugueses no começo do século passado e chega no Nordeste brasileiro, no Sertão mais precisamente, na época do velho pai de Luiz Gonzaga, na década de 20. Nessa época muda-se a afinação do instrumento que era europeia e fazem uma adaptação para poder tocar o forró. É a chamada afinação transportada.

Esse código musical da sanfona de oito baixos é único no mundo. Aqui, em Pernambuco, existem apenas cinco crianças que tocam o instrumento. Há também a Or – questra da Sanfona de Oito Baixos que eu ajudei a construir, são uns 20 instrumentistas experientes que nunca foram à escola de música, grande parte é analfabeta. E a gen – te perdendo tudo isso, porque não houve uma política pública que garantisse uma escola permanen – te da sanfona de oito baixos, como Borghettinho fez no Rio Grande do Sul, a Fábrica de Gaiteiros.

Então você acha importante incentivar as crianças?

Foi o que Luiz Gonzaga fez aos distribuir sanfonas para a garotada. Cento e quarenta para ser mais preciso. Gonzaga viu Dominguinhos, com 14 anos, tocando e disse: “esse menino será um gênio da sanfona”. Levou para casa dele, deu tudo para Dominguinhos chegar aonde chegou e ele tinha um sentimento de gratidão imensa por Luiz Gonzaga, que não tinha medo de repartir o pão com o novo.

No Memorial Luiz Gonzaga (fica no Pátio de São Pedro, casa 35), na época em que Leda Dias era diretora, já teve curso de zabumba com Raminho, curso de percussão com Zeca Preto, que é fantástico no triângulo, teve curso de sanfona de oito baixos e teve o Memorial Luiz Gonzaga nas escolas. Era um programa que tinha o objetivo de levar a cultura gonzaguiana para as crianças. Elas faziam vídeo no celular sobre ele, sanfoneiros visitavam as escolas para mostrar essa cultura da gente. Hoje esse memorial, que foi ideia minha e curadoria de Leda Dias, não tem mais esse projeto. Infelizmente, mas como diria Geneton (Moraes Neto, jornalista): a esperança é um animal nômade. Aliás, eu acho que a grande perda da música popular brasileira é que ela não tem ido para as escolas, se tivesse ido, não estaria onde está.

Sou pessimista, mestre Salustiano falava um negócio fantástico: “se o folguedo não chegar na criança, ele morre”. A sanfona de oito baixos não está chegando na criança. Ela está desaparecendo em Pernambuco. Nesses últimos 15 anos, o Movimento Respeitem os Oito Baixos percorreu várias vezes o Estado atrás dos últimos mestres desse instrumento cujo repasse do conhecimento é por intermédio da memória oral. Cada mestre que morre é uma biblioteca musical que se incendeia.

Você acha que o forró está igual ao frevo, ficou restrito a um período do ano?

Está. Em São Paulo, não. Eu estive com Anastácia – que foi parceira de Dominguinhos, tem 83 anos e já fez 850 músicas – e ela disse que se toca mais forró em São Paulo do que aqui. E na Europa bombou, toca-se muito forró em Portugal, na Espanha, na França, na Alemanha. Enquanto a gente joga fora essa história, o pessoal lá fora está absorvendo.

Agora, o forró tradicional, a chamada nação forrozeira, também é responsável porque não abriu espaço para o novo, fica na mesma temática musical, como se aquele Sertão existisse da mesma forma. Na verdade, o Sertão mudou, mas só se fala do chiado da chinela, da asa branca e do gibão. Seria interessante se fazer uma música feito Flávio Leandro fez que se chama Chuva de Honestidade, é uma música bonita, falando do roncado do carro-pipa ainda existe hoje, é lindo, é como se fosse um aboio. E tem gente muito boa, mas não tem palco.

Uma cidade ofereceu a Anastácia, a maior musa que temos do forró, R$ 16 mil para ela cantar e R$ 400 mil a uma dupla sertaneja. Chega a ser absurdo do absurdo! A gente critica muito, mas quando tem umas coisas que começam a ter uma certa visibilidade de coisa boa a gente tem que aplaudir. É o caso do São João do Recife que contratou só as tradições.

Não que eu seja conservador e só queira as tradições. Não. Veja bem: se você preserva as tradições e os códigos musicais, dá espaço para que releituras contemporâneas sejam feitas, como o tropicalismo fez. Gilberto Gil diz textualmente num documentário que eu e Rose Maria produzimos: “os códigos musicais que um dia inspiraram o tropicalismo está baseado na obra do mestre do Araripe (que é Luiz Gonzaga). Ou são baiões ou são baiões estilizados”. Quem não conhece o passado caminha no escuro.

O que seria necessário para modernizar o forró e ao mesmo tempo preservar suas raízes?

Promover festivais com dois tipos de prêmios: um, para quem escrevesse uma música tradicional e outro para pessoas que fizessem releituras contemporâneas. Às vezes eu fico pessimista, mas eu acho que é tão forte essa coisa gonzaguiana que é difícil acabar por completo.

Quem são os novos talentos do forró?

Tem Carol Maciel, Diviol Lira, Ivison de Caruaru, Antônio da Mutuca, de Salgueiro, Socorro Lira, da Paraíba, que tem 12 discos, As Severinas, Xico Bezerra, tem um menininho novo que se chama Peruca, ele tem de 12 a 13 anos, toca divinamente bem. Tem Mahatma Costa, campeão mundial de acordeom. Tem gente de sobra, tem um pessoal de Triunfo, de Arcoverde, em todo lugar tem gente boa, fazendo coisa boa, com temática contemporânea. É tanto que tem um grupo que se chama ReVerbo. Eles tocam um repertório, mais jazz e blues, e eles estão fazendo umas coisas lindas, sem apoio governamental, pela internet. Eles bebem da fonte do baião também. E cadê o palco para esse povo todo?

Essa dificuldade do forró não é de hoje. A música de Luiz Gonzaga teve um auge, depois entrou no ostracismo e em seguida voltou a ressurgir, não é?

O baião já existia antes de Gonzaga. Há uma entrevista com Gonzaga e Humberto Teixeira, que eles dizem: não inventamos o baião. Gonzaga explica que o ritmo baião já existia nas cantigas tocadas por seu pai, no baião de viola dos desafios entre violeiros. Gonzaga vê isso, bota na sanfona, bate na casa de Humberto Teixeira, no fim dos anos 1940, e diz: “vamos colocar isso no asfalto”, ou seja, levar para a cidade. O baião nos anos 50 foi o ritmo mais vendido do Brasil.

Mas aí chega a jovem guarda, os Beatles, o rock, a bossa nova e essa música gonzaguiana cai no ostracismo e é resgatada novamente pelo movimento mais importante da música brasileira que é o tropicalismo. Na verdade, foram os baianos que resgataram o baião e trouxeram de volta Gonzaga para o patamar de onde ele nunca devia ter saído.

Conta um pouco da sua trajetória como pesquisador e produtor de documentário.

Nasci em Serra Talhada, mamãe era de Triunfo. Eu disse uma vez para dona Iolanda Dantas, mulher do Zé Dantas, que Riacho do Navio foi feita em minha homenagem, porque eu nasci na beira do Pajeú, passei a infância indo para o Riacho do Navio, depois fui morar na beira do São Francisco, papai era coletor fiscal. Em 1964, com 9 anos, vou para o Recife. Quando vi o mar eu disse: que açude imenso!

Na época do [cinema] Super Oito, fiz produção, junto com Geneton e Amin Stepple. Trabalhei na Globo, na Divisão de Operação e Produção. Quando saí da Globo, montei uma produtora e disse: está na hora de lutar pelo lugar onde eu nasci. Produzi com Marcos Veloso – a ideia foi dele – com Xico Bezerra e Paulo Carvalho, 17 Encontros dos Sanfoneiros. Todo ano a gente apresentava 100 sanfoneiros, 30 na sexta, 30 no sábado e 40 no domingo, na semana no dia 13 de dezembro, aniversário de Gonzaga.

Depois eu produzi com Leda Dias 50 programas de uma hora sobre a sanfona de 8 baixos. Faz 15 anos que eu luto para que esse instrumento não desapareça.

E onde era veiculado o programa?

Na rádio Universitária e na rádio Triunfo, que tinha grande audiência. Produzi 45 documentários, quase todos com a temática do Sertão, como o Brincando com Salu, sobre Mestre Salustiano. Todos esses especiais de Chico José sobre Luiz Gonzaga na Globo, eu produzi, embora já tivesse saído de lá. É muito profunda essa cultura do Sertão, que tem origem portuguesa, indígena. É um Sertão também mouro, o aboio é um canto mouro.

Ariano Suassuna tem uma fala fantástica, ele dizia o seguinte: “não tem como cantar, poetizar, escrever, musicar o Sertão sem ter vivenciado o Sertão”. É um Sertão da feira, que vem desde a Feira da Ladra, que ainda existe em Lisboa e tem origem na Idade Média. Então é o Sertão da feira, da banda de pífano, do violeiro, do cantador, do repentista e de um pessoal que as pessoas têm preconceito e não falam, mas ninguém pode negar a importância dos ciganos. O excesso de informação visual de Lampião, que foi a primeira roupagem de Gonzaga, era todo de cigano. Mas depois das mortes em Exu, Lampião passa a se vestir de vaqueiro. O Sertão é um dos lugares mais bonitos do mundo.

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