“A vida toda serei um adolescente" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

“A vida toda serei um adolescente"

Rafael Dantas

 

 

Irrequieto, eloquente e bem-humorado, Alceu Valença esbanja uma vitalidade que nem parece que fará 70 anos em julho. Nesta conversa com Algomais ele fala do filme que está lançando, inspirado nas conversas sobre Lampião que ouvia na infância, das traquinagens de criança, de como Jean-Paul Bemondo o ajudou a conquistar garotas e da política das gravadoras.

Como foi ser menino em São Bento do Una?
Muito bom. Eu jogava pião, corria atrás de bezerros na fazenda, via os cavalos com os vaqueiros aboiando, via na feira os emboladores, os cegos que tocavam, os cordelistas cantando seus cordéis, as mentiras que contavam dos cangaceiros, dos circos que passavam, da discussão se Lampião era bandido ou herói. São Bento para mim é um mito em tudo: o mito da música, do Agreste, dos forrós. Isso tudo está no meu filme chamado A Luneta do Tempo, que vai ser passado, finalmente, no dia 24 de março no circuito comercial.

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Por que fazer cinema?
Meu pai morreu, eu fui enterrá-lo e me lembrei muito do papo dele comigo sobre grupos como o de Lampião. Lembro de vovô que fez o folheto Patativa e Azulão com tio Lucilo. Por isso, talvez eu tenha feito um folheto chamado A Luneta do Tempo, que primeiro era cordel virtual, não um filme. A mitologia segura a gente. Lampião, Corisco são mitos, entre outras dezenas de mitos brasileiros. Meu filme é bem-feito, mas não tem estouros, essa coisa chata da indústria do entretenimento. Não suporto efeitos especiais.

Verdade que você começou a cantar aos 4 anos?
Foi no Cine Teatro Rex em São Bento do Una. O prêmio era uma caixa de sabonetes. Eu concorri mas perdi a caixa de sabonetes! Um outro menino cantou Granada e ganhou porque cantava melhor do que eu. Mamãe conta que eu não entendia o que era palco o que era plateia e quando o menino vencedor começou a cantar fiquei na frente rebolando, e fazendo o que se chama de bunda canastra (cambalhotas). Aí o público ficou louco por mim naquele momento e eu sem entender muito bem, porque eu queria me amostrar pra mamãe.

Como foi o início nos estudos?
Tia Bebete foi minha professora. Na primeira aula, achei chato demais, pedi para sair da aula para poder cuspir. Ela deixou e aí corri para casa. Fiquei embaixo de uma cama. De repente, Miau, meu gato, me viu chegou perto de mim e fiquei com ele horas e horas debaixo da cama. Depois fui morar em Garanhuns e estudar no Colégio Diocesano de Padre Adeumar da Mota Valença, que era o diretor do colégio. Depois vim para cá e fui morar na rua dos Palmares, onde eu via passar os frevos, os caboclinhos. Essa rua eu denominei num poema de “carnavalódroma”. O maestro Nelson Ferreira morava ao lado da minha casa e na frente morava o poeta Carlos Pena Filho, que era casado com Tânia Carneiro Leão, mulher muito bonita. Olhava o belo casal passeando na rua e pensei que se fosse poeta também poderia arranjar uma gata para mim. Ao lado esquerdo da minha casa morava Maria Parísio, cantora lírica. Nesse momento eu estudava no Colégio Nóbrega e fui expulso.

Por que?
Eu precisava de um ponto para poder passar em francês. O professor estava com marcação comigo. Eu tirei 10, 10, 10, mas depois eu não estudei muito, porque jogava basquete na seleção pernambucana infantil e juvenil e tive que viajar para o Paraná para jogar. Ele botou zero, zero, zero. Acontece que eu tinha sido escolhido para fazer um concurso para ir para França e ainda ia ganhar um dinheirinho. Mas não podia tirar nota baixa. Precisava de um ponto só. Pedi ao professor, bote um, preciso viajar. Ele não quis, aí disse: quer saber de uma coisa? Soque no cu! (risos) Fui expulso.

E foi para onde?
Para o colégio do professor Rodolfo Aureliano, um desembargador que era colega de meu pai, que era procurador. Nessa época eu ia para os carnavais no Clube Português, chegava perto das moças, mas elas me davam um chute. Comecei a me achar feio. Até que um dia surgem filmes da nouvelle vague e um deles era À bout de souffle (Acossado) , com Jean-Paul Belmondo. Era o novo galã, a nova estética. Eu era parecido com ele, só que mais bonito, porque na época em tinha um nariz direitinho e ele havia levado um murro e tinha um nariz quebrado. Eu ia para o cinema São Luiz e ali aprendi a fumar por causa dele – a pior coisa que fiz na minha vida. Eu fazia assim: (coloca a mão como se estivesse com cigarro entre os dedos e toca os lábios). As meninas diziam: “meu Deus do Céu ele é igual ao artista!”. Aí namorei muito por causa de Belmondo. Nessa época eu era muito botado para fora das salas de aula, de castigo. Mas eu devo muito a Dr. Aureliano porque ele me colocava na sala dele e ficava até duas horas da tarde tendo que ler. Ele me apresentou a livros de Jorge Amado, Graciliano Ramos. Ele mandava bilhetes para papai dizendo que eu tinha sido expulso da classe. Eu levava e falsificava a assinatura de papai e entregava no colégio. Até que um dia ele desconfiou e mandou a caderneta lá pra casa por um cara que trabalhava no colégio. Aí eu corri para casa, botei uns óculos, penteei o cabelo para trás para fingir que eu era meu irmão. Quando ele chegou ficou olhando pra mim e disse: sou do colégio Padre Félix. Perguntei: aconteceu alguma coisa com Alceu? Aí ele disse “é que Dr. Aureliano mandou isso aqui”. Eu assinei e ninguém soube, aliás papai soube algum tempo atrás (risos).

Você se formou?
Em direito, mas trabalhava como estagiário em jornalismo. Trabalhei na redação da Bloch e do Jornal do Brasil, onde falei muito bem de São Bento. Mas eu mentia muito. Para eu reescrever uma reportagem do Diario de Pernambuco ou Jornal do Commercio que eles pediam, eu reescrevia e incluía São Bento. Teve uma reportagem sobre jumentos que eram comprados em Alagoas, abatidos e depois iam para o Japão. Em vez de dizer que foi em Alagoas, eu coloquei que foi em São Bento e disse que o povo de São Bento não quis vender o jumento porque como diz aquela música de Luiz Gonzaga, o jumento era nosso irmão. Estava tentando ser jornalista e estudando direito. Mas nesse momento veio a lei que só permitia trabalhar quem tivesse cursado jornalismo.

Você que escolheu o direito ou foi a família?
Meu pai que queria que eu não fosse artista, porque dois irmãos dele tocavam violão iam pra farra e foram os únicos que não se formaram. Aí papai botou na minha cabeça que eu teria que fazer direito. E ele até me prometeu um carro se eu passasse. Eu passei aí ele pediu para dividir o carro com outros irmãos Risos). Hoje em dia nem de carro eu gosto. Passei na universidade federal. Aí fui fazer um estágio com minha ex-mulher no escritório do pai dela. Minha função foi fazer uma cobrança a um cara, um devedor. Mas ele me explicou porque estava devendo e aí dei razão a ele. Disse que ele não devia pagar não (risos). Aí sai do escritório e nunca mais voltei.

E a música como surgiu na sua vida?
Meu avô tocava violino, um tio chamado Juventino tocava sanfona, outros tios tocavam violão. Eu ouvia os aboios. Meu outro avô tocava bandolim e tia Canô tocava piano, mas ninguém era profissional. Eu ouvia isso quando pequeno e fica na cabeça da gente. Sou músico porque eu toco, mas eu não aprendi a tocar com ninguém. Eu conhecia toda essa cultura e todas as músicas das rádios. Sei imitar todo mundo quer que eu imite? (começou a imitar Cauby Peixoto e Nelson Gonçalves. Veja o vídeo: www.revistalagomias.com.br).

Quando passou a cantar em festivais?
No Recife. Cantei com Roberto Carlos, que ainda não era conhecido. O show era Roberto Carlos, cantor da rádio Mayrinck Veiga, e Alceu Valença. Foi no Náutico. Ainda estava no Jornal do Brasil quando soube que podia me inscrever para o FIC (Festival Internacional da Canção). Ia ter uma fase Norte-Nordeste que seria realizada aqui. Aí eu passei (nessa etapa), com a música Acalanto para Isabela com arranjo do maestro Duda, regido por Clóvis Pereira. Sem saber de nada fui para o Maracanãzinho, no Rio.

Mas você estourou mesmo no Brasil no Festival Abertura, da Rede Globo?
Foi, mas antes gravei um disco com Geraldo Azevedo que me deu muita força.

Belle De Jour é seu maior sucesso?
Não, Tropicana. O disco antes de completar um ano vendeu 1,6 milhão de cópias. O outro, Anjo do Avesso, que tinha Anunciação, vendeu mais de 1,5 milhão. Belle De Jour vendeu umas 800 mil cópias.

Você e vários artistas romperam com as gravadoras. O que aconteceu?
Uma gravadora comprou meu passe e de outros artistas (Chico, Elba, Gal Fagner) só para nos derrubar. A gente vendia mais de um milhão de discos.Eu ganhei até um apartamento de cobertura no Rio de Janeiro para eles me tirarem do catálogo. Era uma maneira de tirar a MPB do Brasil porque a MPB tinha que ter investimento para gravar. Mas, a gravadora trazendo uma música da América do Norte, uma música da Madonna ou de outra qualquer, a produção já acabou, já ganhou milhões e milhões, então só era botar no mercado daqui e colocar nas rádios. Você entra com um produto, a custo zero, para não entrar com um outro produto que pode custar R$ 200 mil ou R$ 250 mil.

É o neoliberalismo entrando nas gravadoras?
O neoliberalismo é uma jogada que interessa sobretudo às grandes marcas. Eu sou uma pessoa que raciocino, não sou contraditório, sou controverso. Eu me lembro uma vez que apoiei Joaquim Francisco, porque eu tinha estado na Alemanha Oriental, onde existia uma ditadura. Sabe por que caiu? Por causa do papel higiênico. Várias vezes passei por lá e numa dessas eu fui no banheiro. O papel higiênico era uma lixa. Eu disse lá aos meus amigos: caiu a Alemanha Oriental. E eles perguntaram, por que? Eu disse: por causa do papel higiênico, não há cu de comunista que aguente uma lixa dessa! Quando voltei para cá, estava numa discussão na casa de Roberto Lessa sobre a direita e a esquerda. Os ânimos se exaltavam. Aí me perguntaram em quem votaria. Disse que meu título era do Rio, mas se eu votasse aqui eu votaria em branco. Aí alguém me perguntou em branco? Eu disse: contra Joaquim não posso votar, porque é meu amigo de classe e de rua. Só isso. No outro dia as pessoas que estavam lá começaram a me telefonar. João de Lima Neto, que morreu, grande amigo meu, rompeu com o PMDB passou para o outro lado. Ele me perguntou: posso dizer que você está com Joaquim? Eu disse não. Eu não estou com ele, eu não estou contra ele. No outro dia já estavam me esculhambando, até que chegou um momento que jogaram uma pedra na minha casa. Aí eu liguei para o comitê de Joaquim Francisco e fiquei cantando (na campanha dele) num trio elétrico só com violão. Não ganhei um tostão. Eu fui em nome de mim mesmo, sabe? Do meu direito de ser democrático. Não suporto ditadura, nem de direita, nem de esquerda. Nunca me locupletei.

E como é ser um artista hoje?
Não se vende mais disco, não adianta. Eu tenho 1,3 milhão de pessoas que me seguem na internet. Uma música minha, No meio da rua, deu 8 milhões de acessos.

E você hoje ganha dinheiros dos shows?
Dos shows e direitos autorais. Eu não preciso de muito dinheiro para mim. Eu acredito que vai haver uma saída do neoliberalismo para uma outra coisa porque o mundo não vai conseguir mais segurar a ganância. Vai haver uma migração para o campo. Em vez de você comprar um apartamento, vai comprar, a um preço baratinho, uma casa arretada no meio de uma vila de 20 pessoas no campo. Mas nessa volta ao campo tem internet. A função de Delminha, minha irmã, na fazenda é irrigar a plantação. Mas descobri que você vai poder abrir e fechar a torneira pelo celular.

Você faz 70 anos este ano e...
… Quando você diz isso me dá um susto! Sou uma pessoa muito nova na minha cabeça. A vida toda serei um adolescente.

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