*Por Rafael Dantas
Ninguém imagina que um dia despretensioso, quando o ato cotidiano de ir ao trabalho ou para a escola, pode mudar anos da vida de um indivíduo simplesmente pela decisão de um motorista pisar mais fundo no acelerador. Fabiana Alves, 41 anos, é uma dessas pessoas afetadas. Ela ainda guarda no corpo e nas memórias algumas marcas de um desses dias. Aos 15 anos, quando atravessava a BR-101, em Paulista, a caminho da parada de ônibus para ir à escola técnica, ela não chegou do outro lado da via.
Um veículo em alta velocidade ultrapassou um coletivo que estava mudando de faixa e atropelou Fabiana. Ela não lembra dos momentos seguintes ao acidente. Mas os relatos de quem estava no local é de que ela voou na pista, parando muitos metros à frente. Com o choque, ela fraturou o braço esquerdo e a perna direita. “Ninguém sabe como o acidente fraturou os membros dos dois lados. Provavelmente foi pelo giro que dei. Voei lá para frente. Tive fratura exposta no braço e saí com o fêmur quebrado”.
Foram dois meses no hospital e um ano de fisioterapia até ela voltar a ter todos os movimentos. Fabiana só ficou de pé quatro meses após a colisão, com um tratamento intenso e correndo riscos, na época, até de perder o braço. “Todo o cenário — a distância que fui arremessada, a velocidade e o grau das fraturas —, agradeço a Deus por estar viva. Eu mesma vi o caso de uma menina na mesma situação, que foi atropelada por um carro que ultrapassou um ônibus, e ela não está aqui para contar história”. O motorista na ocasião nem sequer prestou socorro.
Fabiana é mais uma a engrossar as tristes estatísticas do contingente de pessoas vitimadas por acidentes de transporte terrestre, que só no ano passado, em Pernambuco, atingiram 38 mil vítimas. Para muitas famílias, os quilômetros por hora a mais nas ruas resultam em perdas irreversíveis.
MORTES E ALTA VELOCIDADE NAS VIAS
No Brasil, morreram em 2021 (último ano com os dados fechados), 33.813 pessoas decorrentes de acidentes no trânsito. O número de vítimas em apenas um ano no País é superior a toda a população do município de João Alfredo e bem próximo ao total de moradores do populoso bairro de Nova Descoberta, no Recife.
No Brasil, a maioria das mortes no trânsito, de motociclistas, é, portanto, um dos principais alvos das políticas públicas de segurança nas vias. No entanto, no Recife, a realidade é distinta. O Relatório Anual de Segurança Viária, publicado pela CTTU (Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife), indicou que 48% das vítimas fatais são pedestres, enquanto os motociclistas representam 29%. O estudo indicou também que, diante disso, há necessidade de políticas mais efetivas na adequação do espaço público para os que andam a pé, os mais frágeis no trânsito.
“No Brasil, anualmente, mais de 30 mil pessoas perdem a vida no trânsito, em áreas urbanas e rodovias. A nossa taxa de mortalidade está próxima de 15 mortes a cada 100 mil habitantes, que ainda é muito alta. A título de comparação, nas Américas, uma das menores taxas é a do Canadá que, em 2018, era próxima de 5 mortes por 100 mil habitantes”, afirma Danielle Hoppe, gerente de mobilidade ativa do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).
Muitos dos dramas e dos prejuízos originados nas ruas, avenidas e estradas têm como causa a pressa e a imprudência dos motoristas ao volante. “A velocidade inadequada é um dos principais fatores de risco nas lesões de trânsito, ela influencia tanto no risco de uma colisão acontecer, quanto na gravidade das lesões. Diminuir limites de velocidade favorece à segurança de todos os usuários da rua, inclusive a dos motoristas, há inúmeras evidências científicas”. Em outras palavras, obedecer à velocidade recomendada ou ser mais conservador no volante, dirigindo um pouco abaixo dos limites, aumenta as chances de sobrevivência da pessoa acidentada numa colisão.
Segundo o Guia de Gerenciamento de Velocidade, do IRAP (Programa Internacional de Avaliação de Estradas), numa colisão quando o veículo está numa velocidade de 60 km/h ou mais, o motorista não tem tempo de frenagem suficiente, mesmo a 30 metros da vítima, e o pedestre tem alto risco de morte. Quando o veículo está a 50 km/h, também não é possível evitar o choque, mas a tendência principal é do atropelado sair com ferimentos e mais chance de sobrevivência. Em um cenário de deslocamento a 40 km/h, o condutor consegue parar antes e evitar o acidente.
“De acordo com dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), ferimentos associados ao trânsito representam a oitava causa de morte no mundo e a primeira entre crianças e jovens de 5 a 29 anos. No Brasil, sinistros de trânsito foram a maior causa de mortes de crianças de até 14 anos em 2019 (29% dos óbitos). Salvar vidas é o principal benefício da redução das velocidades máximas”, afirmou Ana Carboni, diretora financeira e coordenadora do projeto Vias Seguras, da UCB (União de Ciclistas do Brasil).
Além da redução das mortes e de todos os sofrimentos relacionados às consequências para a saúde dos acidentados que sobrevivem às colisões, a redução dos sinistros tem um impacto importante na economia do País. De acordo com pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), estima-se que entre 2007 e 2018, o Brasil teve um custo de R$ 1,5 trilhão em decorrência da violência do trânsito. Atualmente, os sinistros de trânsito custam em média R$ 50 bilhões por ano para a sociedade brasileira.
Um prejuízo que em Pernambuco está relacionado às 470 mil infrações registradas no ano passado e cometidas por veículos que trafegavam acima das velocidades máximas permitidas na via. Enquanto isso, o debate que está em andamento no Congresso Nacional e em organizações da sociedade civil é o de reduzir os limites máximos e tornar a fiscalização mais rigorosa.
NOVA REGULAMENTAÇÃO
Para enfrentar esse contexto de infrações e índices alarmantes de mortes no trânsito, no final de maio, foi protocolado, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 2789/23, que altera o CTB (Código de Trânsito Brasileiro). O objetivo é adequar as velocidades permitidas em vias urbanas de todas as cidades do Brasil. A iniciativa foi idealizada e articulada pela UCB, pela Ciclocidade e pela Fundação Thiago Gonzaga.
Ana Carboni explica que o PL modifica o artigo 61 do CTB, que determina as velocidades em vias urbanas e rurais; além do artigo 218, que estabelece a fiscalização de velocidades; e o artigo 280, que prevê as autuações pelos abusos. “A modificação do artigo 61 coloca termos sobre as velocidades nas vias conforme o tipo de utilização, sendo, nas vias urbanas: 60 km/h nas vias de trânsito rápido; 50 km/h nas vias arteriais; 40 km/h nas vias coletoras; 30 km/h nas vias locais”. A mudança reivindicada pelas organizações é que se adote a recomendação da OMS de limitar em 50 km/h a velocidade em vias urbanas.
Carboni avalia que tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal sempre tiveram uma atuação relevante em medidas que tornaram o trânsito brasileiro mais seguro, com a aprovação de pautas como o tolerância zero à combinação de álcool e direção, a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, de capacetes para motociclistas, além do reforço nos padrões para a construção de veículos motorizados. “Sabemos que mortes no trânsito são evitáveis. Por isso, é hora de darmos mais um importante passo em direção a cidades mais humanas, com foco na vida e no bem-estar de todas as pessoas. Neste sentido, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Trânsito Seguro junto com a Frente Parlamentar pela Segurança de Crianças e Adolescentes no Trânsito (do Senado) terão papel fundamental no debate do PL 2789/2023 no Congresso Nacional”, declarou .
Ela explica ainda que nas vias rurais, o órgão ou entidade de trânsito ou rodoviário poderá regulamentar, por meio de sinalização, velocidades iguais ou inferiores àquelas estabelecidas, levando em consideração o tipo de uso de cada via, em casos em que as características técnicas e as condições de trânsito assim recomendarem. “Além disso, o órgão de trânsito deverá monitorar a utilização da via por pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência e mobilidade reduzida e, havendo circulação destes, alterar a classificação da via com base em seu uso e determinar o limite de velocidade de acordo com essa classificação”, destacou a diretora do UCB.
EXPERIÊNCIA RECIFENSE PARA REDUZIR OS ACIDENTES E MORTES
Motoristas que afundam o pé no acelerador são o problema mais recorrente nas ruas do Recife. Em 2022, os dados da CTTU revelam que mais de 210 mil registros de excesso de velocidade (em até 20% do limite máximo regulamentado), o que representou 32% das infrações. “A velocidade está muito relacionada à segurança viária. O Recife tem trabalhado com pilares para a adequação de velocidade. O primeiro é o monitoramento de dados para identificar os problemas, onde acontecem os sinistros e locais de mais ocorrências. A partir disso, fazemos ações de fiscalização, promovemos a reengenharia viária e uma forte atenção à educação para o trânsito”, explicou a presidente da CTTU, Taciana Ferreira.
Já começam a ser percebidos os resultados dessa política. Os registros de excesso do limite de velocidade, por exemplo, registraram queda de 18% entre 2021 e 2022. E, no período entre 2019 e 2021, último ano com os dados fechados sobre sinistros com vítimas feridas e fatais, houve uma sensível redução dos indicadores do Recife. Enquanto em 2019, aconteceram 117 acidentes com mortes no trânsito, no ano de 2021 registrou-se uma queda de 25,6% com 87 ocorrências com vítimas fatais. A quantidade de acidentes com feridos também diminuiu de 1.997 em 2019 para 1.596 em 2021, o que representa uma queda de 19%.
Entre as ações em andamento está a implantação do “trânsito calmo” em algumas regiões da cidade. Essas áreas são caracterizadas pela estruturação de rotas cicláveis, ampliação de calçadas e regulamentação da diminuição das velocidades máximas permitidas. Os primeiros lugares a receber as intervenções viárias para promoção deste conceito foram o Bairro do Recife, a Ilha do Leite, além de diversos espaços de vizinhança das áreas escolares.
Para se ter ideia do impacto dessas medidas na segurança viária, a Zona 30 (regiões com velocidade máxima de 30km/h) implantada na Ilha do Leite, promoveu a redução de 75% dos sinistros de trânsito.
O uso do urbanismo tático na cidade é uma ferramenta que contribui para a diminuição da velocidade e maior segurança nas ruas. Segundo os registros da CTTU, entre janeiro e fevereiro de 2019 e 2020, foi registrada a redução de 41% de sinistros com vítimas após as intervenções. No Largo da Paz, nesse período, houve a redução de 7 sinistros com vítimas para 2. Na Avenida Cruz Cabugá, de igual modo, caiu de 23 para 14 o volume de ocorrências. Enquanto isso, na Avenida Conde da Boa Vista, a mudança foi de 22 para 4 sinistros com vítimas também neste período.
“Quando fazemos a adequação na largura da faixa de rolamento (área da pista onde rodam os veículos), contribuímos para melhoria na segurança viária. Quanto mais larga as vias, maior é o convite para conduzir os veículos em alta velocidade. O uso de travessias elevadas, além de reforçar a plena segurança ao pedestre, também induz o condutor a reduzir a velocidade. É com essas medidas em infraestrutura que conseguimos melhorar a segurança viária", afirmou Taciana.
REDUZIR A VELOCIDADE NÃO ELEVA O TEMPO DE DESLOCAMENTO
Danielle Hoppe considera o desconhecimento da população sobre os riscos associados à alta velocidade um grande entrave para implantar medidas de segurança no trânsito. Ela diz, por exemplo, que há na sociedade uma falsa ideia de que a diminuição do limite de velocidade em áreas urbanas vai resultar em grandes aumentos do tempo de deslocamento.
“A redução da velocidade limite tem um impacto insignificante no tempo de deslocamento. Um estudo realizado pela Prefeitura de Fortaleza mostrou um aumento de apenas 6 segundos no tempo médio de viagem a cada quilômetro percorrido. É um resultado ínfimo se pensarmos que, com a mesma medida, estamos evitando mortes e lesões graves que têm impactos psicológicos, sociais e econômicos bem maiores para a sociedade”, afirmou Hoppe.
Ela também desmistifica a ideia de que a diminuição da velocidade provoca engarrafamentos no trânsito. “A redução das velocidades faz com que existam menos sinistros de trânsito, os quais são uma causa frequente de congestionamento. Acho que sempre é importante lembrar, também, que nas cidades brasileiras, 42% dos deslocamentos diários são feitos a pé ou em bicicleta. Somente 26% dos deslocamentos são feitos em automóvel. Portanto, não temos tantos motoristas como achamos. Como entregamos ao carro entre 70% a 90% do espaço da rua, achamos que existem muitos motoristas, mas não é essa a nossa realidade”.
Do mesmo jeito que direção e álcool não combinam, a condução com maior velocidade e desatenção ao volante trazem muitos prejuízos à sociedade. A combinação de menos carros nas ruas, maior infraestrutura viária e de fiscalização e a oferta de transportes públicos de qualidade são alguns dos caminhos a serem percorridos para reduzir as mortes e acidentes.