Cultura bem temperada

Cultura bem temperada

Raul Lody

Açúcar: um caminho por Gilberto Freyre – Por Raul Lody

Indicador de caminhos e provocador nas suas questões, Gilberto Freyre possibilita uma permanente e sempre atualizada leitura e compreensão sobre o homem situado no Trópico.

Inovador, trata da cultura material integrada aos contextos da casa, na rua, no trabalho, privilegiando o que a cana sacarina oferece de referências integradas e integradoras desse homem que vai formando sua casa seus sentimentos, apontando processualmente o que é e como é esse ser chamado brasileiro.

em dúvida, uma grande aventura essa da culinária brasileira e, em especial, o doce, tema tão próximo em vivência e em análise por Gilberto Freyre. Nordeste e Açúcar dois textos intercomplementados, que trazem a vida cotidiana da sua região, o seu Pernambuco e amorosamente o seu Recife. Gilberto recorre à história e traça na antropologia transgressora, nova, tendo na coragem de ampliar fronteiras seu traço autoral e de sensibilidade, enquanto fundante na ampla e complexa sobre o brasileiro.

Para compreender processos de chegada, de fixação, de ações coloniais no Brasil, sem dúvida o açúcar é o caminho preferencial da ocupação e da formação social e cultural do brasileiro. Assim, Gilberto escolhe também um caminho: o caminho do açúcar.

Gilberto Freyre em Açúcar: em torno da etnografia, da história e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil, com numerosas receitas raras de doces e bolos da região e, para efeitos de comparação, algumas de outras áreas brasileiras e outras tantas de Goa (Índia Portuguesa), reunidas e selecionadas pelo autor, resulta em um texto farto como se oferecesse um cardápio de opções, dizendo que o ato de comer é um ato global. Come-se com o corpo inteiro. Inicialmente come-se com os olhos, depois come-se com o olfato; come-se com o tato, come-se finalmente com a boca, com o prazer, de um sentido tão aguçado que já é um sentimento. Contudo, ainda se come-simbolicamente, comendo-se a cultura, comendo-se a história, a civilização e de uma certa maneira come-se também o homem, uma metáfora antropofágica, pois come-se os valores e os significados plenos do que é oferecido em alimento e diria ainda, come-se a si próprio, como em um contato quase litúrgico e profundo da intimidade do eu individual com o eu coletivo, a própria cultura.

Comer, um ato biológico, indispensável e principalmente um ato simbólico, ritualizado, seguindo os padrões da cultura, das ofertas do meio ambiente, das maneiras de misturar, preparar e servir, sendo certamente o ato mais pleno do homem, somente comparado ao sexual.

O açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização. Para os anos 30, época da primeira edição de Açúcar, um homem interessado por receitas de bolo, doces de frutas e mais ainda por papel de seda recortado como se fosse renda para enfeitar pratos, tabuleiros foi um verdadeiro escândalo; como um sociólogo na cozinha? Sim, na cozinha, na intimidade da casa e mais ainda, na intimidade de quem fazia a casa pulsar, o fogão funcionar, as receitas reviver, as vendas e ganhos nas ruas por mulheres em condição escrava, das sobremesas dos restaurantes populares, aos hábitos de comer e de beber em casa, na rua, no cotidiano e no tempo da festa.

Assim, pioneiramente Gilberto Freyre já traçava seus múltiplos caminhos para interpretar, conhecer, documentar e especialmente interagir com o homem regional – homem nordestino – em parentescos onde cabia o sangue, mas principalmente cabia a alma coletiva do povo.

Falar de fruta, de açúcar, de canaviais, de receitas de bolos, falar da alta importância das diferentes culinárias do Nordeste, auferindo valor patrimonial tão patrimonial como os açucareiros de Macau, os brasões dos barões, as armas dos heróis oficiais e épicos. Forma Gilberto Freyre um olhar sensível e antropológico perante o homem nordestino, vivendo e etnografando esse mesmo homem; homem tropical, bi-africanizado, criativo, reunindo na mesa o Ocidente e o Oriente do mundo. Adaptando receitas dos mosteiros medievais, incluindo o caju e a pitanga, frutas telúricas, bem como o coco verde, a manga, a jaca, a fruta-pão todas exóticas ou nacionalizando mesas com toalhas de linho e bordados, ampliando o uso de louças da China, ampliando o uso de louças de barro, de madeira, comendo na esteira, comendo de mão, ou partilhando doce de araçá com o Menino Deus no altar doméstico da casa-grande.

Manifestando profundo entendimento sobre o que come, como come, quando come, formando cardápios, cozinhas, ampliando os pratos de milho do São João, quiabos e dendê dos Xangôs, bolo Souza Leão servido em porcelana fina, sarapatel de feira e de mercado, doces, tantos e variados doces de um Recife ungido de açúcar, como é ungido de rios e de praias.

Gilberto Freyre oferece em sua obra civilizatória inúmeras opções para provar em textos consistentemente bem temperados, gostosos, como um diversificado e sedutor cardápio das relações sociais, da formação da cultura brasileira.

Assim, profundamente inspirado em Açúcar de Gilberto Freyre venho realizando sistemático trabalho de antropologia da alimentação desde a década de 1970, vendo, vivendo e provando pratos, inteirando-me dos cotidianos, das festas, da religiosidade, vivendo o meu projeto brasileiro, comprometido com o brasileiro.
Agora em 2019 o livro Açúcar de Gilberto Freyre celebra 80 anos da sua publicação.

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