Certas comidas pela proximidade de textura, temperatura e cheiro só podem ser comidas de mão. Não importa se comemos na rua, na pressa do balcão de um botequim, ou na calma quase budista em casa, seja na mesa, na cozinha, em frente ao fogão; ou ainda, num território público, na feira ou no mercado.
O que verdadeiramente importa é que a ação imediata se dá no caminho da comida à boca, direto, sem talheres, para atender um desejo físico, sensorial, quase sexual.
Na infância que não comeu “capitão”, feito com bolo de feijão e farinha de mandioca, e ainda, um pouco de carne-seca desfiado ou mesmo uma rápida lembrança do toucinho, tudo amassado com a mão e alguns, ainda, eram culminados com uma batata frita, banquete que traz saliva à boca só de pensar.
Feito a mão e levado ao paladar com a mão, lambendo os dedos com as partes que não poderiam ser desperdiçadas, é receita que nasce da mistura e da oportunidade de reciclar, após um ou dois dias a feijoada de feijão preto.
Doce, quase todos, se a calda for grossa, perfumadas de cravo e canela, se a fruta der consistência deverá ser levada ao paladar sem colher ou qualquer outro instrumento que possa ser intercambiado de uma relação verdadeiramente carnal.
Quando se come com as mãos, há dois sentimentos que são dominantes: a pressa ou a calma reflexiva na identificação de cada ingrediente,
cor, estética, sensações táteis, um verdadeiro exercício filosófico.
A mão é o talher primeiro, uso dos dedos, habilidades para preparar, servir e comer. Fazer a comida com a preparação do tato é uma experiência fundamental para o bom resultado gastronômico, fala-se de prazer de gosto selecionado e intencional, embora muitas das receitas clássicas tenham surgido nas trocas, nos encontros de ingredientes ocasionalmente associados ao trabalho sempre inovador e de adaptações que é o de cozinhar.
Da mão de quem faz para a mão de quem acolhe, e elabora no jeito próprio e especial de se relacionar com aquela comida, ou no que é esperado culturalmente na ação de traduzir o que é de comer.
Comer abará na folha é um costume tradicional, pois a folha de bananeira previamente passada no fogo, adquire uma textura e odor próprio, embalando a massa de feijão fradinho misturada com camarão seco defumado, sal, pimenta e azeite de dendê, que dá cor a comida e densidade à folha que também apoia na preservação do calor da comida. Pois, abará é comida quente, recém-saído da panela que cozinhou.
Então, comer de mão essa iguaria afrodescendente, ritual que se repete com o acarajé, o acaçá, a cocada, o bolinho de estudante, popularmente punheta, todos do tabuleiro da baiana, da tão celebrada Baiana de Acarajé, desde 2001, Patrimônio Nacional Brasileiro. Justíssimo!
Associada a todas as formas e intenções de manipulação, nasce à questão higiene. Tema de total interesse necessário à saúde, necessário às regras de controle social do alimento.
Louvável! Contudo muitas fronteiras conceituais entre as muitas maneiras de preparar, servir e consumir comida pelo caminho/processo da mão ferramenta que é um símbolo e atestado cultural necessita ser olhada, relativizada, interpretada em diferentes contextos, onde os processos culinários são tão importantes quanto o resultado comida.
O uso ancestral da mão nas escolhas e transformações dos ingredientes, além de cumprir etapas técnicas é um conjunto de rituais que atingem diferentes significados, sentidos e sentimentos.
Ações tecnicista/cientificas cujo parâmetro muitas vezes é o exclusivamente voltado a regra, aos princípios da higiene total merecem uma intermediação cultural, buscando integrar rigores da saúde com os rigores das identidades culturais.
Há uma impressão digital intransferível, personalizada na manipulação, no oferecimento e no consumo da comida. São os ingredientes que chegam da intima relação produto e corpo, pele, emoção, energia, sentimentos, transmitindo no toque humano, fundamental, autoral, doador dos mais íntimos e personalizados gostos.
Cultura bem temperada
Raul Lody
Além do garfo (por Raul Lody)
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