A psicanalista Ana Elizabeth Cavalcanti, sócia do CPPL (Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem), faz uma análise contundente da crise de saúde mental no Brasil, apontando as raízes estruturais que adoecem o sujeito contemporâneo: hiperindividualismo, precarização do trabalho, colapso ambiental e culto à alta performance.
Ansiedade, depressão, síndrome de burnout, compulsões, fobias. Esses sintomas têm se alastrado como uma epidemia silenciosa, atravessando faixas etárias, classes sociais e ocupações diversas. Mas o que há de comum nas causas desse adoecimento coletivo? Para a psicanalista Ana Elisabeth Cavalcanti, o problema não está nas pessoas, mas no sistema. “O capitalismo tardio, em sua versão neoliberal, criou um ambiente hostil à vida”, afirma.
Na entrevista a seguir, Elizabeth traça conexões entre saúde mental, desigualdade, solidão, tecnologia e cultura da performance. E alerta: tratar os sintomas sem questionar o modelo de sociedade é como tentar conter um grande incêndio com baldes d’água. Com linguagem acessível e posicionamento firme, ela propõe que as saídas não sejam apenas individuais, mas comunitárias e políticas, pautadas no fortalecimento de vínculos, na solidariedade e na reconstrução de um ideal de bem-estar coletivo.

Qual é o cenário base para explicar o avanço dos problemas de saúde mental que tem nos afetado com sintomas tão distintos?
A gente está vivendo um capitalismo tardio que, do meu ponto de vista, é incompatível com a vida humana. Então, temos uma concentração de riqueza absurda e muitos em situação de vulnerabilidade extrema. Atualmente, o que importa é o lucro, é juntar muito dinheiro. Isso desfaz algumas condições que são indispensáveis para o ser humano, como a questão da solidariedade e das redes de apoio, que inclui família, amigos e também mecanismos sociais.
Hoje, infelizmente, nada é mais retrógrado do que pensar no estado de bem-estar social. Isso não significa que não haja pobres e ricos, mas significa que o estado deveria garantir o mínimo de bem-estar social, seja por meio de políticas públicas, seja por meio de políticas afirmativas ou de programas, como nós temos aqui com o Bolsa Família e o Pé de Meia.
Por outro lado, dentro dessa mesma lógica, as pessoas foram “transformadas” em empreendedores de si mesmos. Muitas vezes, são pessoas em condições de miserabilidade, que vivem entregando coisas, atropelando-se nos sinais, voando com as motos e com as bicicletas, porque precisam produzir muito para ganhar pouco. Então, temos hoje esse fenômeno incrível que é o fato de 60% dos jovens abominarem a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. Preferem ser empreendedores. É uma precarização absurda e que é englobada por esse discurso falacioso do neoliberalismo de que é mais importante empreender do que ter um trabalho com as suas garantias.

Vivenciamos esse combate há muito tempo contra a CLT. Isso tem relação com o discurso de incentivo para o indivíduo “sair da zona de conforto”?
A rigor, ninguém vive sem zona de conforto. Mas não estou falando de uma pessoa que é preguiçosa. É necessário ter sua zona de conforto, suas ilhas de conforto. Ninguém vive sem isso. É outra falácia.
É uma mensagem de que você não pode descansar, não pode ter seu momento de ócio criativo, nada disso é admitido. Aí, passam a existir apenas duas qualidades: consumidores e produtores. Duas coisas que estão interligadas porque para consumir é preciso ser produtivo.
Acho que a gente caminhou nesse sentido e chegará um momento em que vai surgir outra alternativa. Mas o que se desenvolveu é incompatível, vai surgir aí desse caldo alguma coisa diferente, mais compatível com a condição humana.
Há um outro lado. A ideia de que é preciso dar sempre o máximo no trabalho. Quando a pessoa não suporta a pressão ou não atinge as metas incumpríveis, tudo isso é creditado ao indivíduo. Ninguém se pergunta se o que está ali em jogo é um sistema, uma exigência sobre-humana. Todo mundo vai dizer: “ah, isso aconteceu porque você não foi suficientemente competente, você não foi atrás dos seus objetivos; se você for atrás, se você fizer tudo, você vai alcançar os seus objetivos”.
Aliado a isso também, vivemos um período de exigência tecnológica que é imensa e que está corroendo a cabeça de muita gente, sobretudo das crianças, que não sabem mais esperar. Elas ficaram mais imediatistas, o mínimo de espera as torna completamente ansiosas. Não é uma patologia. Mas a criança vive pendurada numa tela, sendo bombardeada com informação de forma passiva, informações muitas vezes de que não dão conta. Daqui a pouco, elas não têm mais paciência de ler um texto de duas páginas porque estão habituadas a essas mensagens curtíssimas que você lê rapidamente. A gente tem o que poderia chamar de um ambiente extremamente hostil à vida humana.

Quais são os efeitos no corpo de quem vive constantemente nessa situação de estresse?
Existem as doenças chamadas psicossomáticas que são reumatológicas, alergias de todo tipo, gastrite, doenças autoimunes que têm tido um crescimento enorme. E há algo muito preocupante: o aumento exponencial do câncer que tem uma ligação com tudo isso, porque as pessoas não têm tempo de se alimentar, de fazer comida, só comem alimentos ultraprocessado porque são rápidos. Então, é muito contraditório porque a preocupação com a saúde e com o corpo ficou priorizada. Mas, acontece que a preocupação é com a performance, é produzir o máximo, é não envelhecer, é estar magro, é estar com o rosto todo harmonizado… É uma contradição estar se cuidando mas almejando um corpo performático, que não pode envelhecer, que não pode ter nenhum desvio.
É muito incrível porque a gente chama de cuidado, mas nisso entra a utilização de medicamentos, anabolizantes, ou seja, o que se chama de cuidado é voltado para a performance. É também fruto de muita angústia porque esses corpos que aparecem na internet com mil filtros são ideais inalcançáveis.
A exposição das redes sociais proporciona a comparação com esses modelos inalcançáveis?
Eu acho que um dado dessa nossa cultura hoje é o oferecimento social de ideais que são inalcançáveis. Isso gera muita angústia. Ninguém vive sem ter ideais. Mas, na medida em que esses ideais são inalcançáveis, o indivíduo está o tempo todo nessa linha do fracasso, da incompetência, da insuficiência, enfim, daquilo que não está realizando, mas somente é demandado. E um outro componente é o da competitividade. Vivemos em uma sociedade altamente competitiva, tudo isso gera muita angústia.

Dentro dessa sociedade tão voltada ao mercado, como a senhora percebe essa redução da identidade do indivíduo à sua atividade profissional?
Eu acho que a gente já está um pouco mais na frente. Dizer eu sou de uma profissão, quer dizer o seguinte: você é rico ou pobre. Outro dia eu vi uma matéria impressionante sobre meninos de 14 ou 15 anos, que estão ganhando um monte de dinheiro na internet e que diziam: “para que estudar? Não vale a pena estudar ter uma profissão, qual é a serventia disso?” O negócio é ganhar dinheiro.
Então, a questão vai além do que você mencionou: agora ou eu sou rico ou sou – uma expressão que se utiliza ainda – “liso”. Liso passa a ser um xingamento. É uma coisa terrível isso.
Quanto ao crescimento das bets, a senhora acha que é um efeito dessa fragilidade mental também ou de não acreditar mais no trabalho? Um caminho no jogo de aposta como uma fuga da realidade?
Eu acho isso aterrador. As propagandas das bets atingem justamente as pessoas em vulnerabilidade, que alimentam os sonhos, socialmente, de forma bombástica mesmo, persistente e contínua. Alguns casos viram compulsão. Esse é um dos sintomas da atualidade: a compulsão por bebida, por droga, por sexo, por consumo. Mas isso já existia.
Já esse tipo de compulsão por jogo é diferente. É algo que socialmente foi incentivado, foi colocado no âmbito do que é desejável. As propagandas das bets são incríveis, eu fico horrorizada porque trazem a mensagem para que se “jogue bem e se jogue mais". Vende-se uma ilusão. Muita gente recebe do Bolsa Família e depois aposta nas bets.
Como é que a gente consegue lidar da maneira mais saudável com a saúde mental e como socialmente a gente pode questionar esse modelo de sistema que é adoecedor?
Tanto do ponto de vista pessoal como do ponto de vista social, dois princípios são norteadores. O princípio de que nós não fazemos nada sozinhos, a gente precisa dos outros para fazer, para agir, para ter prazer, para realizar alguma coisa, nós não fazemos nada sós. Do ponto de vista pessoal, eu acho que uma das coisas é fortalecer os laços familiares, de amizade, de trabalho.
Antes, quando um bebê chegava, era visitado por todos. Se chegava numa comunidade, era recebido por todos. Todo mundo se disponibilizava para dar uma força. A gente sabe como é difícil a chegada de um bebê na família. Um cuidava da mãe, outro cuidava da criança. Então, esse fortalecimento dos laços familiares e dos laços sociais é uma coisa básica. Isso podemos ter como princípio individual, que inclui necessariamente os outros. Ninguém é feliz porque realizou coisas sozinho. Isso é uma falácia.

Do ponto de vista social, eu não acredito em revolução, mas eu acredito na educação. Acredito nas políticas públicas. Há também as pequenas ações, como as que lhe lidamos com as pessoas no nosso trabalho, quando há a possibilidade de influenciar para que seja um ambiente mais democrático, solidário, inclusivo. No CPPL, nós temos uma política de inclusão. Temos cotas para os nossos cursos de formação, tanto cotas sociais como cotas raciais. Isso não depende das macropolíticas, mas de iniciativas que podemos ir fazendo no lugar onde estamos, até nas nossas casas. Não existe solução individual mas posicionamentos individuais que podem construir um fazer coletivo.
A senhora é otimista ou pessimista quanto a isso?
Eu acho que eu sou otimista, mas estamos em um momento muito complicado, de muita dificuldade. Eu acredito que a gente realmente está em um momento de grandes mudanças e de rearrumação mundial. Não tenho a menor ideia de como vamos sair desse caminho, nunca me vi tão sem noção do que pode vir pela frente.