Antonio Miranda, Engenheiro do Comitê Tecnológico Permanente do Crea-PE, analisa o impacto da escassez de chuvas no abastecimento hídrico no Estado e as perspectivas com a influência das mudanças climáticas. Também alerta para possibilidade de salinização da água de poços em bairros como Boa Viagem e levanta preocupações com o modelo de concessão da Compesa.
Nesta semana o Governo do Estado decretou situação de emergência em 118 dos 184 municípios pernambucanos em razão da escassez de chuvas. Especialista em gestão de serviços de saneamento, o engenheiro civil Antonio da Costa Miranda Neto alerta que a situação do abastecimento hídrico em Pernambuco é grave, com 18 reservatórios em colapso, segundo dados da Apac (Agência Pernambucana de Águas e Clima).
Nesta entrevista a Cláudia Santos, Miranda, que é integrante do Comitê Tecnológico Permanente do Crea-PE (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco), analisa esse cenário e o impacto futuro das mudanças climáticas no agravamento da redução das chuvas. Para enfrentar a crise, ele afirma ser necessário atualizar, com maior frequência, o planejamento da gestão hídrica, principalmente em relação à elevação média da temperatura e da quantidade de ondas de calor em Pernambuco.
“Essa elevação traz duas consequências ruins, simultaneamente: o aumento da evaporação dos mananciais superficiais e do consumo hídrico, combinação que agrava a escassez de água de abastecimento”, alerta. Diante da gravidade da situação, o engenheiro afirma que medidas, como o reuso da água e um melhor armazenamento de águas de chuva, passaram de recomendáveis a imperativas.
O especialista enfatizou ainda sua preocupação com o modelo de concessão da Compesa, no qual a estatal permanece responsável pela produção de água tratada e a distribuição fica a cargo de concessionárias. “A depender de como ficará a modelagem, caso a Compesa não produza em quantidade suficiente, as empresas privadas poderão acioná-la no sentido de serem indenizadas pela falta de água para venda. Nesta hipótese, teríamos sérios problemas econômicos”, adverte.
No início de janeiro, a Compesa divulgou um calendário emergencial de abastecimento de água diante da ausência de chuvas e das altas temperaturas no Estado. E, nesta semana, foi decretada situação de emergência. Como o senhor avalia a situação hídrica em Pernambuco e o impacto no abastecimento de água?
A atual situação é grave, com 18 reservatórios em colapso, segundo a Apac. Desses, 14 ficam no Sertão, zona mais atingida pela estiagem, mas há também reservatórios vazios no Agreste, Mata Norte e até na Região Metropolitana do Recife.
Sabemos que o Agreste pernambucano é a região de menor disponibilidade de água por habitante do Brasil, o que já por si só mostra o tamanho da nossa vulnerabilidade e justifica todos os investimentos na transposição do São Francisco, fazendo com que uma parte dessa água chegue nessa região.
Também não é novidade para ninguém que as secas são cíclicas, então o que enfrentamos hoje é o agravamento desses ciclos. A tendência é o aumento de temperatura e das ondas de calor. O ano de 2024 esteve 1,5°C acima da média da Terra em relação aos níveis pré-industriais, o que é uma tragédia. Estamos, portanto, com uma frequência maior na ocorrência desses problemas. É óbvio que isso tudo repercute no abastecimento de água.
É também verdade que a Compesa, historicamente, não conseguiu eliminar os seus problemas de produção e de distribuição de água. Salvo engano, foi em 1982 que a empresa institucionalizou os rodízios de abastecimento, para nunca mais deixar de tê-los. Por isso a Região Metropolitana já foi, e talvez continue sendo, a que apresenta maior consumo per capita de água mineral engarrafada no País. Outro reflexo disso é a quantidade de poços perfurados para abastecer os prédios, em diversos bairros, para não ficar dependendo da Compesa.
Com a perspectiva de acirramento dos períodos de estiagem, em razão das mudanças climáticas, essas dificuldades no abastecimento de água em Pernambuco tendem a aumentar?
A mudança climática está agravando a situação. Entretanto, as projeções neste momento são muito imprecisas, não conseguimos estimar ainda aonde isso vai parar. Se você perguntar hoje aos maiores especialistas da hidrologia, da climatologia, sobre uma perspectiva para 2030, eles não são capazes de informar com segurança, porque estamos ainda em processo de transformação. Por isso, é necessário elaborar revisões frequentes do planejamento da gestão de recursos hídricos que levem em conta as últimas atualizações científicas.
Os estudos de hoje não indicam para Pernambuco nenhuma situação calamitosa. Haverá o agravamento das secas e das chuvas, mas não temos razões objetivas para esperar a transformação de zonas do semiárido em áridas, como já existem no Norte da Bahia. Da mesma forma não há previsão de que aconteçam em Pernambuco as tragédias que assolaram o Rio Grande do Sul. Agora, provavelmente, teremos uma frequência maior de ondas de calor. O aquecimento geral do planeta, que causa a elevação do nível do mar, também é uma preocupação muito grande que todos nós devemos ter, principalmente no Recife.
O que poderia ser feito para enfrentar os impactos do aumento da temperatura e da escassez hídrica no abastecimento de água?
É necessário passar a atualizar, com maior frequência, o planejamento da gestão hídrica, com especial atenção ao aumento médio da temperatura e da quantidade de ondas de calor em Pernambuco. Esses aumentos trazem duas consequências ruins, simultaneamente: o aumento da evaporação dos mananciais superficiais e do consumo hídrico, combinação que agrava a escassez de água de abastecimento.
É igualmente prudente considerar a ocorrência de períodos mais severos e prolongados de estiagem no Estado. Mas insisto, será indispensável realizar atualizações frequentes dos cenários, utilizando o que de melhor se dispõe em termos científicos, para estabelecer as medidas necessárias à gestão hídrica, muitas delas urgentes, desde o manejo dos mananciais até medidas de redução das perdas de água e do consumo médio em todas as categorias de consumidores. Nesse contexto, o reuso da água e o melhor aproveitamento de águas de chuva passaram de recomendáveis a imperativos.
Em relação à situação dos bairros situados na faixa litorânea do Recife, a grande quantidade de poços aliada à impermeabilidade do solo (provocada pelo processo de urbanização) e ao aumento do nível do mar, pode afetar os lençóis freáticos e o abastecimento?
Esse risco de salinização não é uma questão de “se”, mas de “quando” vai acontecer. Não há dúvida de que estamos no caminho para isso. Esse é um fenômeno chamado intrusão salina: a água do mar infiltra pelo subsolo no continente, contaminando com sal o lençol subterrâneo. Em uma situação normal, essa intrusão é contida pelo lençol de água doce. Então, há um ponto de equilíbrio: nem a água doce entra no mar, nem o mar entra no continente porque ele é “barrado” pela água doce.
Veja a tempestade perfeita: primeiro se começa a tirar muito mais água doce do que se deve dos poços, como ocorre na faixa litorânea em Boa Viagem, Setúbal, Piedade, Candeias, portanto há menos água doce para barrar a água salgada. Isso por si só já é um motivo para temer que o mar avance sobre a água doce. Outro fenômeno que está acontecendo é um aumento pequeno, mas gradativo, no nível médio do oceano, ou seja, com mais força ainda, o mar tende a invadir a água do subsolo no continente.
Quando isso acontece, é caminho sem volta, o poço ficará salobro para sempre. Os prédios de Boa Viagem vão ter que desativar seus poços e se abastecerem pela rede pública, que nesse momento terá que oferecer disponibilidade. Então é uma situação realmente muito complicada e, se não houver uma reversão, o risco é de que essa salinização aconteça com mais rapidez do que as hipóteses mais pessimistas preveem.
Como seria feito esse controle dos poços? Despavimentando as ruas dos bairros e plantando mais áreas verdes?
Nessa altura é irreal pensar em "despavimentar" Boa Viagem, Piedade, Cadeias etc. Aquela região toda tem uma grande zona de recarga do lençol freático, o Parque dos Manguezais, que passa por trás de Boa Viagem. Os problemas são a péssima qualidade dessa água e a sua quantidade, incapaz de evitar que a intrusão salina aconteça mais cedo ou mais tarde, caso a superexploração dos poços continue como está.
A solução teria que vir de um controle da exploração dos poços pela CPRH (Agência Estadual de Meio Ambiente), determinando que os prédios só poderiam tirar determinada quantidade de água por mês e fiscalizar se aquele poço está sendo explorado dentro ou fora do seu limite.
Acho mais factível e provável trabalharmos com a perspectiva de, pelo menos, nessa faixa litorânea, ter que se abandonar os poços num futuro próximo, e passar a abastecer todos esses prédios com água encanada.
O senhor falou na transposição, o que falta para essa água chegar ao Agreste?
O Agreste tem seu conjunto de reservatórios mas, depois de esgotar todas as possibilidades, a única forma de dar algum tipo de garantia de segurança hídrica para essa população é com a transposição do rio São Francisco. O Governo Federal e a Compesa estão investindo para trazer água desde o canal nas proximidades de Arcoverde até Caruaru e várias outras cidades da região, por intermédio da Adutora do Agreste. No Sertão, as soluções são mais individualizadas mas existem sistemas integrados ali também com a água do São Francisco.
O rio sofre algum perigo de secar, não em razão da transposição, mas por causa das mudanças climáticas?
A existência dos barramentos, a necessidade da geração de energia hidroelétrica, desde Sobradinho até todas as demais barragens, e o regime de chuvas que está se alterando, tudo isso traz uma preocupação especial para o Rio São Francisco. É preciso muito monitoramento porque pode ser, de fato, uma razão de preocupação.
Mas o que falei sobre Pernambuco, vale para o Rio São Francisco: as previsões de mais longo prazo, a partir do que sabemos hoje – o que não é muito, como eu disse no início da nossa conversa – nada indica que o Rio São Francisco vai secar, não há nenhuma previsão catastrófica. Agora, a quantidade de chuvas para certas áreas do semiárido vai diminuir. Tudo isso precisa ser monitorado porque a gente ainda não sabe aonde a mudança climática vai parar, então é preciso muita cautela e muita responsabilidade no acompanhamento dia a dia.
Como o senhor avalia o projeto de concessão da Compesa que estabelece à estatal permanecer responsável pela produção de água tratada no Estado e a distribuição e a coleta de esgoto ficar a cargo de empresas concessionárias privadas?
Manter na Compesa a obrigatoriedade da produção de água está correto. Por ser um fator de altíssima relevância do ponto de vista estratégico da segurança hídrica, não pode estar em mãos privadas em hipótese nenhuma. Mas, a depender da modelagem final de concessão, se a Compesa não produzir em quantidade suficiente, as concessionárias privadas poderão acioná-la no sentido de serem indenizadas pela falta de água para comercialização. Neste caso, poderíamos ter problemas econômicos de forte repercussão sobre os cofres do Estado e, em última análise, sobre os bolsos da população. O tema está em consulta pública até o dia 7 de fevereiro.
Qual é a proposta do CREA-Pernambuco diante dessa situação?
O Crea, que congrega toda uma categoria de profissionais, e com toda a responsabilidade social que tem, com todos os trabalhos que produz junto com a sociedade pernambucana, não deve adotar uma posição contra ou a favor da privatização. Mas tem a obrigação de alertar, de estabelecer diálogos, de levantar preocupações.
Por esta razão, o Crea organizou junto com a Fiepe um seminário, que foi coberto por vocês da Algomais, para estimular a discussão. A Compesa e o Governo do Estado reconheceram publicamente o valor das preocupações compartilhadas pelo Crea, mas é fundamental a participação de todas as representações da sociedade civil. A concessão tem 35 anos de duração, é muito prolongada. Diante da perspectiva do agravamento da indisponibilidade hídrica no Estado com as mudanças climáticas – que a gente ainda não sabe aonde vai parar – é preciso, desde logo, adotar precauções muito robustas, para que no futuro não haja razões para arrependimento. Essa conta sairia muito cara.