As perspectivas e desafios de morar no Centro do Recife – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

As perspectivas e desafios de morar no Centro do Recife

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*Por Rafael Dantas

A ausência de moradias permanece há anos como uma marca da região central da capital pernambucana, em bairros como do Recife, de Santo Antônio e São José. Com poucas exceções, como a comunidade do Pilar e o Condomínio Píer Maurício de Nassau, as famosas Torres Gêmeas, são os prédios públicos, comerciais ou mesmo imóveis vazios que caracterizam a área histórica da cidade. Esse cenário pode mudar com a chegada de alguns novos empreendimentos já anunciados, com as diretrizes das políticas públicas do Recentro e até com a nova fase do Minha Casa Minha Vida, que promete incentivar os retrofits. Há desafios grandes ainda a serem enfrentados nesse horizonte para incentivar a chegada da classe média e de garantir maior dignidade aos moradores dos habitacionais populares.

Mesmo com grandes dificuldades de atrair investimentos privados para moradia nessa região central, o Recife tem uma vantagem. Diferente de outros centros urbanos que foram esvaziados de suas vocações econômicas, a capital pernambucana tem um ativo que foi a recuperação do Bairro do Recife com a ativação de vários prédios com empresas do Porto Digital. Os 17 mil profissionais em atividade, com uma renda maior que a média da população da Região Metropolitana do Recife, representam uma demanda reprimida de novos moradores, interessados em estar mais perto do trabalho.

FALTA MORADIA PARA CLASSE MÉDIA TRABALHADORA

Uma constatação das professoras Mariana Zerbone, da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco) e Edvânia Torres, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), sobre as poucas moradias atuais ou em construção nesses bairros centrais é que elas atendem às camadas sociais de cunho social, para a baixa renda, ou de projetos imobiliários para um público de alto poder aquisitivo. A classe média permanece excluída das escassas alternativas de moradia na região.

“Um grande problema que identificamos são os extremos de ocupação das áreas. Ou são habitacionais de cunho social ou a abertura para mercado imobiliário de alto padrão. A classe média e trabalhadora que precisaria morar no Centro não tem acesso, não tem imóvel ‘médio’. É essa classe média trabalhadora que pode dinamizar a região”, avalia Mariana Zerbone. Ela destaca que parte do esforço de reocupação do Centro pode ser destinado a atender também ao público de estudantes universitários.

Para além desses três bairros do núcleo mais antigo da cidade, Boa Vista e Santo Amaro integram a região central mais habitada. Especialmente Santo Amaro tem sido alvo de investimentos de maior porte, mas dentro de uma caracterização também de alto padrão. Em São José, no Cais José Estelita, está sendo erguido o Novo Recife, enquanto no Bairro do Recife há empreendimentos como o Yolo Coliving (uma plataforma de hospedagem e moradia que compartilha áreas e serviços comuns) e o Moinho (que contempla também moradias no seu complexo).

A secretária do Recentro, Ana Paula Vilaça, afirma que a atuação do gabinete é para tornar o Centro atrativo para visitar, trabalhar, investir e morar. “Nosso maior desafio é atrair moradia. Desenvolvemos uma série de ações para tornar o lugar mais favorável à atração desses investimentos, junto com outras secretarias. Estamos desenvolvendo uma PPP (Parceria Público Privada) de locação social de forma prioritária. Estamos estudando o modelo para oferecer moradia no Centro. A ideia é ofertar 450 unidades habitacionais nesse novo formato, a Prefeitura do Recife entra com subsídio a partir da renda, com a parceria com a Caixa Econômica”.

Nessa iniciativa, o setor privado construirá as unidades habitacionais e, em seguida, vai disponibilizá-las para aluguel ao público-alvo do programa. A Prefeitura concederá um subsídio parcial para o aluguel. O modelo já é bem-sucedido em países como França, Holanda e Alemanha, mas ainda é inédito no Brasil, onde o Recife foi escolhido para ser o primeiro município a implementar essa modalidade de habitação. O programa é voltado para famílias com renda máxima de até três salários mínimos. Além da PCR e da Caixa Econômica Federal, o projeto é liderado também pelos Ministérios do Desenvolvimento Regional e da Economia.

Uma novidade mais recente nas políticas públicas de moradia que pode ter um impacto relevante no Recife é a nova fase do Minha Casa Minha Vida (MCMV). O Governo Federal anunciou que o programa passará a ter uma frente focada na reabilitação de edifícios abandonados. A ideia do Ministério das Cidades, que está desenhando esse programa, é lançar o “Minha Casa Retrofit” no segundo semestre. O lançamento, que deverá ofertar um subsídio maior para quem escolher fazer um retrofit em prédios antigos, na comparação com obras em áreas vazias e geralmente periféricas, representa uma oportunidade para a capital pernambucana, que possui um estoque relevante de imóveis ociosos. O retrofit é tendência na arquitetura, surgida na Europa, que revitaliza construções antigas, modernizando o espaço, tornando-o mais seguro, sem retirar as características originais históricas e arquitetônicas.

“Essa nova fase do MCMV é um sinalizador de que o Governo Federal vai olhar para áreas centrais. Todo investidor avalia a viabilidade econômica do local. Esse programa federal está preocupado com isso. Achamos que ele pode alavancar o desenvolvimento do Centro e diminuir os deslocamentos na cidade. A região central da cidade conta com polo médico, universidades, o Porto Digital e órgãos públicos. Temos um potencial consumidor que, por questão econômica e pela falta de oferta de imóveis, foi morar nas periferias”, destacou Ana Paula Vilaça.

A secretária destacou os incentivos fiscais para as atividades econômicas e de moradias para as construções ou intervenções destinadas à recuperação dos imóveis no sítio histórico dos Bairros do Recife, Santo Antônio e São José, aprovadas pela Lei do Recentro. Há também um conjunto de iniciativas em andamento de requalificação urbana na região. Obras de drenagem nas Ruas da Concórdia e Imperial, a construção da ciclofaixa conectando a Zona Sul ao Centro e o próprio projeto Viva Guararapes (realizado uma vez por mês, que interdita a Avenida Guararapes ao tráfego de veículos para atividades lúdicas, artísticas e de lazer) integram as iniciativas de incentivo à reativação da região.

PORTO DIGITAL NA EXPECTATIVA DE MAIS MORADIAS

O presidente do Porto Digital, Pierre Lucena, acredita que no curto prazo é o próprio Bairro do Recife que tem o potencial de ocupação imobiliária. Embora o Santo Antônio possua um estoque maior de imóveis vazios, a sua deterioração é um dificultador para a atração de investimentos de moradia.

“O Bairro do Recife conseguimos ajudar a recuperar com pequenos projetos, mas o de Santo Antônio nunca esteve tão deteriorado, precisa de um projeto amplo. Há uma desordem urbana completa e um clima de insegurança. Nossa perspectiva, hoje, é com a vinda de novos projetos ao Bairro do Recife, como o Moinho e o Yolo. Mas imaginamos que, se tivéssemos uma área mais central, em Santo Antônio, que pudesse incorporar no futuro a moradia do trabalhador do Porto Digital, seria bom. Os profissionais poderiam ir a pé ao trabalho, mas o bairro está acabado, contrasta completamente com o Bairro do Recife”, afirmou Pierre Lucena.

Apesar dos desafios gigantes da região central, o Recife foi escolhido pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para receber um projeto-piloto de revitalização de centros históricos. Essa iniciativa não é exclusiva de moradia. A proposta do banco é estruturar no Recife um padrão para a reabilitação em larga escala de áreas históricas e patrimônios edificados das cidades brasileiras. No Porto Digital está sendo desenhado esse modelo de referência, com a consolidação de metodologia e o desenvolvimento de diretrizes, que possa ser replicado no País.

“O Porto Digital é percebido pelo BNDES como um exemplo bem-sucedido de transformação do território. O banco entendeu que a chegada do Porto Digital foi capaz de dinamizar a ocupação do bairro, de uma maneira que vemos muito pouco nas cidades brasileiras. A história do parque tecnológico sempre foi de atração de empresas. Como urbanista, sempre entendi que um dia, com o Porto Digital dando certo, a habitação viria, porque a demanda estaria criada. Na pandemia vimos como a falta de habitação foi importante para o bairro dar passos para trás”, afirma o superintendente de Projetos de Reabilitação Urbana do Núcleo de Gestão do Porto Digital, Leonardo Guimarães.

“Como urbanista, sempre entendi que um dia, com o Porto Digital dando certo, a habitação viria, porque a demanda estaria criada. Na pandemia vimos como a falta de habitação foi importante para o bairro dar passos para trás. A questão habitacional fez muita falta”

Leonardo Guimarães

Ele considera que mesmo com o isolamento social e com muitas empresas indo para o home office, caso a moradia já tivesse sido mais desenvolvida no bairro, as pessoas continuariam dinamizando o Centro, pois permaneceriam morando lá. “A questão habitacional fez muita falta”. Guimarães afirma que há algumas perguntas norteando esse estudo do BNDES: Como gerar atratividade para iniciativa privada investir? Como o poder público pode participar como indutor desses processos? E quais os limites de participação do setor público?

“Entendemos que não há projeto desse tipo sem forte presença do poder público, mas também temos a certeza que não se faz só com recursos públicos. O poder público tem um papel de indutor, com recursos estruturadores e criação de mecanismos para facilitar processos. Não é só a redução de impostos para investidores, mas também obrigar que imóveis desocupados venham a cumprir sua função social”, indicou Leonardo Guimarães. O projeto vem estudando experiências no mundo de instrumentos que ajudaram a reativar as áreas centrais, em países como os Estados Unidos, o Japão e a Colômbia.

HABITAÇÃO POPULAR

No Bairro do Recife, um dos grandes desafios é a retomada da obra dos habitacionais na Comunidade do Pilar. Importantes achados arqueológicos, do tempo da invasão holandesa na região, fizeram com que a obra que atenderia os moradores fosse replanejada. O contrato inicial ficou defasado e o poder municipal está desenvolvendo um novo processo licitatório para as obras.

A mudança no calendário fez com que Aluízio Alves, 42 anos, esteja morando de aluguel na periferia do Recife há quatro anos. Ele residia no Pilar desde a infância e era no Centro onde conseguia trabalho. Por sete anos trabalhou nos serviços gerais da Igreja Nossa Senhora do Pilar, mas atualmente está desempregado.

“Morei aqui a vida toda. Vim trazido pelos meus avós, aos 10 anos de idade, me acostumei aqui. Aí você sai daquele habitat… aqui é onde construí minha vida. Ainda não me acostumei”. Além do apego sentimental ao lugar, a situação econômica também fica mais difícil fora, mesmo com o auxílio moradia recebido. “Aqui é perto de tudo. Mesmo sem um emprego, você vai no Centro, no Marco Zero, vende picolé, água. Pai de família tem que fazer tudo para levar o pão. Essas moradias são a coisa que o Pilar mais clama. Moradia e saneamento”, afirmou Aluízio.

Uma das lideranças comunitárias do Pilar é Josafá José do Nascimento, 38 anos. Ele afirma que a comunidade já tem hoje acesso à estruturas como escola, creche, Upinha e tem uma praça, mas espera por melhorias. Além da construção dos habitacionais que estão em atraso, devido à descoberta arqueológica, ele afirma que o Pilar também pede por iluminação, saneamento e segurança. Além disso, ele ressalta que os moradores dos primeiros habitacionais entregues já sofrem com problemas de infiltração e estão lutando para receber a documentação dos imóveis.

“Não temos os documentos ainda, estamos lutando por esse direito. Hoje são 192 moradores que conseguiram a moradia. A bronca é a reforma, que ninguém tem dinheiro e já tem problemas e infiltração”, conta Josafá. Ele conta que vários barracos estão sendo ocupados por famílias que não tem como pagar por habitação e que alguns beneficiários do auxílio moradia já estão há mais de 10 anos aguardando o imóvel.

A professora Edvânia Torres, da UFRPE, destaca que praticamente todos os habitacionais construídos no Recife nas últimas décadas receberam revestimentos inadequados. “Não há um com revestimento externo resistente às intempéries da cidade. É preciso um movimento para exigir que essas habitações sejam resistentes, porque elas não serão pintadas. Essas populações não têm condições financeiras para fazer a manutenção”. A pesquisadora alerta que sem um revestimento mais resistente e um sistema de saneamento adequado, em pouco tempo esses espaços voltam a ficar degradados.

ALÉM DOS IMÓVEIS

Além da solução para a disponibilidade de unidades habitacionais na região central da cidade, para as diversas classes sociais, a professora Edvânia Torres destaca que há um conjunto de outras estruturas necessárias para a moradia a serem tratados. “Não adianta fazer prédios sem ter na intermediação um mercado e serviços que atendam às necessidades desses residentes. A proposta habitacional precisa atender aos interesses e dispor de serviços sociais”.

Ela faz referência ao geógrafo Milton Santos, acerca dessa preocupação do planejamento do espaço público. “A história real da vida dos lugares mostra que os objetos são inseridos num meio, segundo uma ordem, uma sequência, que acaba por determinar um sentido àquele meio. É diferente se, numa rua, criamos primeiro um edifício ou se a asfaltamos, se criamos antes a rua asfaltada e depois melhoramos as infraestruturas subterrâneas, se estabelecemos primeiro a escola ou o hospital, o hospital ou o banco. O resultado das combinações não é o mesmo, segundo a ordem verificada”, afirmou Milton Santos no livro A Natureza do Espaço Técnica e Tempo.

Entre atração de imóveis de alto padrão, a resolução de um modelo para o desenvolvimento imobiliário para a classe média e a construção dos habitacionais de cunho social estão alguns dos pilares da habitabilidade na região central do Recife. O retrato do declínio de Santo Antônio e a demanda imobiliária dos milhares de trabalhadores do Porto Digital indicam o contraste que o poder público tem diante desse território costurado por edificações históricas e grandes desafios da oferta de serviços, mobilidade e segurança.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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