Realizada no Recife, em pleno clima de tensão provocado pela ameaça dos EUA de aumento de tarifas e pela aprovação do Projeto de Lei 2159 no Congresso, a reunião anual da SBPC foi palco de manifestações contrárias às duas iniciativas. Nesta entrevista, o presidente da entidade, Renato Janine, ressalta a importância da preservação ambiental e também aborda os desafios da educação e da produção científica no País.
Desde há muito tempo, incluindo o período da ditadura militar no Brasil, que a reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) vai além da apresentação de palestras com cientistas e tem sido também palco de manifestações em defesa da democracia, da produção científica e da educação no País. No evento realizado no Recife, que terminou no último sábado (19), não foi diferente. O presidente da entidade, Renato Janine Riberio, abriu a reunião com um duro discurso contra a ameaça do presidente dos EUA, Donald Trump, de aumentar as tarifas de importação do Brasil em 50%. A SBPC também divulgou um manifesto contra o projeto de lei aprovado no Congresso que altera as regras de licenciamento ambiental no País.
O tema foi abordado por Janine nesta entrevista a Cláudia Santos. Ex-ministro da Educação, professor de filosofia e cientista político, ele também analisou os desafios da ciência diante das fake news e dos problemas de financiamento, defendeu mais verbas para o setor educacional e fez um balanço da sua gestão à frente da SBPC que teve seu término na última quinta-feira.
Durante a SBPC houve a manifestação contra o PL 2159, que enfraquece as regras para o licenciamento ambiental. De que forma o desmonte das políticas de preservação do meio ambiente atinge a educação e a ciência?
Atinge, antes de mais nada, a vida. O fato de ter uma maioria no Congresso que está contra a preservação do meio ambiente e que escolhe políticas que, sabidamente, vão causar mal à humanidade, é assustador e queremos alertar a população para isso. Porque é a população que elege o Congresso, então ela tem que cobrar isso dos seus representantes e deixar claro que não é aceitável colocar em risco o futuro da humanidade.
Não é o futuro do planeta que está em perigo, se a humanidade desaparecer, ele se regenera rapidamente sem nós, porque somos o principal agente poluente e devastador da Terra. Agora, nossa vida e a dos nossos filhos estão em jogo. A humanidade conseguiu, graças à ciência, dobrar a expectativa de vida, pessoas que morreriam aos 40 anos têm hoje uma expectativa de viver até os 80, é uma grande conquista do Século 20, sobretudo. Por que depois de que se consegue isso se vai exterminar o nosso futuro?
Doze horas depois da votação desse projeto infame, nós já fomos à rua gritar contra ele. É bom o povo saber disso e as pessoas precisam se mobilizar contra o PL da Devastação Ambiental para conseguir o veto presidencial e depois garantir que o veto seja mantido no Congresso porque, infelizmente, vimos que um grande número de deputados não tem compromisso com o futuro do País. Nós precisamos exigir deles que o tenham.
A universidade enfrenta vários problemas, inclusive financeiros. A UFPE, por exemplo, anunciou um corte de gastos porque ela está amargando um déficit de 23,9 milhões. Quais seriam as soluções possíveis na sua opinião?
Não vejo alternativa a não ser a Reforma Tributária. O Brasil está há quase 10 anos numa crise grande que só se agravou com o impeachment da Dilma – sem crime – e com a eleição de Bolsonaro. O Brasil precisa constantemente de investimentos em áreas como a saúde, a educação, a ciência mas, também, a cultura, o meio ambiente. Vi no Recife inúmeros imóveis antigos, lindos, mas que necessitam de cuidados e manutenção. É claro que não pode ser o poder público que vai manter tudo, mas ele tem que ter um papel de liderança e mesmo de cuidar dos principais imóveis que fazem parte do patrimônio histórico.

O que a vemos é uma espécie de destruição do que temos. Por exemplo, esse PL da devastação ambiental coloca em risco florestas, matas, produção de água, de alimentos de maneira sustentável, tudo isso é muito grave. Precisamos de mais dinheiro para isso, não é desperdício, é investimento e esse investimento só pode vir de uma cobrança dos mais ricos, porque os mais pobres já pagam mais percentualmente sobre sua renda do que os mais ricos.
Temos que nos alinhar com os países desenvolvidos que tributam mais os mais ricos e aceitar os desafios novos colocados para a economia. Um século e pouco atrás, a principal fonte de receita de muitos governos eram os impostos alfandegários, importação e exportação. A globalização mostrou que é melhor para as economias tributarem pouco a importação e, desde o começo do Século 20, os impostos sobre a renda adquiriram uma grande importância.
Precisamos ter impostos progressivos sobre a renda, o que o Brasil praticamente renunciou a fazer na década de 1980. Precisamos ter impostos progressivos sobre patrimônio, que é algo que está sendo proposto pelos economistas mais avançados mundo a fora. Não faz sentido ter pessoas com patrimônio de bilhões e bilhões de dólares, para não dizer trilhões, e que tenham um poder político desmedido a partir disso.
E como é que o senhor avalia a posição de algumas alas da sociedade, como o próprio Congresso, que defendem como solução o corte de gastos por parte do governo?
Toda vez que ouvimos falar de corte de gastos, sabemos que é cortar aquilo que melhora a vida dos mais pobres. É cortar o Bolsa Família, os investimentos na preservação do verde, na educação. Imagine, por exemplo, a necessidade que temos de formar mais médicos, isso requer criar faculdades de medicina. No primeiro ano você precisa ter um prédio, laboratórios, professores. No segundo ano, você precisa de mais dinheiro, porque dobrou o número de alunos, no terceiro, outro aumento e assim sucessivamente durante uns bons 10 anos – seis anos do curso e quatro para residência. Então, não se pode parar de investir, só que isso não é desperdício, não é gasto, é investimento, é aposta no futuro, é isso que a gente precisa.
Muitas vezes, no Brasil, não se relaciona que investimentos em educação, em ciência e saúde se revertem em desenvolvimento.
Muitas vezes as pessoas não associam porque no Brasil existem duas discussões muito fáceis, uma é denúncia da corrupção e outra é denúncia do desperdício governamental. Existe desperdício? Existe. Existe corrupção? Existe. Mas ela significa muito pouco no conjunto dos gastos. Vou te dar um exemplo: no chamado Petrolão, foi pego um antigo diretor da Petrobras que pagou R$ 100 milhões de multa. Parece muito dinheiro, para qualquer um de nós é muito dinheiro.
Mas veja, quando eu era ministro, pagava-se R$ 0,30 por dia de auxílio merenda para cada aluno da rede básica pública. Um valor que é muito pouco por pessoa, mas numa escala de 40 milhões de alunos, são R$ 12 milhões por dia. Então, R$ 100 milhões é uma semana de suplementação pelo Governo Federal da alimentação dos escolares. Temos que entender que as despesas que correm à conta de desperdício ou de corrupção são pequenas. Temos casos mais graves, por exemplo, os penduricalhos do Legislativo e do Judiciário, mesmo assim, mesmo se corrigir tudo isso, o Brasil precisa ainda de mais dinheiro. Só tem um lugar de onde ele pode sair e é dos lucros desmedidos dos mais ricos.
As universidades também enfrentam uma evasão de estudantes. O que as instituições podem fazer para atrair e reter os universitários?
São muitas coisas, a primeira é construir currículos de ensino atualizados. Você tem que ser capaz de incentivar os jovens a gostarem do que eles fazem. Nossa educação nem sempre é bem-sucedida nisso. Quando eu fui ministro da Educação, estimulei as escolas criativas e inovadoras. Havia 200 no Brasil – entre públicas e privadas – que foram repertoriadas, num total de 200 mil escolas públicas. Então 200 é pouco.
Há um fenômeno que me parece curioso: a criança pequena, quando começa a estudar, volta para casa e conta para os pais, entusiasmada, os números que ela aprendeu, as letras que conheceu, enfim, o conhecimento para ela é uma fonte de prazer, mas chega um momento que deixa de ser. Por quê? O que está errado para tornar a educação algo chato? Isso temos que mudar, sobretudo na educação básica, dos 4 aos 17 anos, mas isso vale também para o ensino superior, quando é preciso que o aluno se interesse pelo assunto estudado e seja capaz de utilizar na profissão aquilo que aprendeu.
Já que falamos do ensino básico, o que Pernambuco e outros estados poderiam fazer para resolver os problemas nas escolas? Cristóvão Buarque, que também foi ministro da Educação, defende a federalização das escolas, sob o argumento de que os municípios não têm orçamento para mantê-las. O senhor concorda? Qual seria a saída?
Problemas difíceis nunca têm soluções fáceis. A federalização das escolas é uma velha bandeira do Cristovam. Tentei discutir isso com ele, na ocasião ele não respondeu. Mas acho importante se pensar de uma forma que preserve a autonomia dos municípios. Por outro lado, 5.570 municípios têm muita dificuldade de definir seus caminhos, sobretudo quando são pequenos. Você pensa em Serra da Saudade, em Minas Gerais – acho que é o menor município do Brasil, menos de mil habitantes – como que com 800 habitantes se consegue ter um plano municipal de educação, um plano de carreira e tudo mais?
Há medidas que estão sendo tomadas nessa direção, uma delas é o concurso único nacional de acesso à carreira docente. Isso é bom, ainda mais se for associado à portabilidade do seu título, ou seja, você presta o concurso para ser professor em São Bernardo do Campo, mas quer se mudar para Garanhuns, você leva o que você já adquiriu para lá. Seria um caminho sem que o Governo Federal mande em tudo, mas ele pode ajudar.
Acho que a política que se adotou desde os anos 1990 de os municípios serem responsáveis pelo fundamental 1, os estados com o ensino médio, o fundamental 2 dividido entre os dois, dependendo da situação, e a União apoiando tudo é boa, porque permite, por exemplo, que a União ofereça livro escolar, porque tem escala para comprar dezenas de milhões de livros escolares. E o professor que está na sala de aula, escolhe o livro que foi previamente avalizado por uma comissão de técnicos do MEC.
Outra boa coisa é a definição de programas nacionais de currículo mínimo, é ter políticas nacionais de formação de professores, ter, em algum momento, uma carreira nacional do professor, mas é importante que os municípios e estados sejam ativos nisso, porque o município é que está mais perto da população. Uma frase do Dr. Ulysses Guimarães, que foi presidente da Constituinte, é: “as pessoas não vivem na União, vivem no município”. Então, é importante que o município tenha seu espaço.
A SBPC, faz uma programação gratuita, para pessoas de todas as idades, incluindo crianças e os jovens, com o intuito de despertar o interesse pela ciência, tecnologia e inovação. Isso está acontecendo num momento em que há certa distância entre a ciência e a sociedade, o que ficou claro na pandemia. Para agravar a situação, uma pesquisa da OCDE revelou que o Brasil é o país onde as pessoas mais acreditam em fake news. Como é que o senhor avalia essa realidade?

Quando apareceu a internet, muita gente, inclusive eu, esperava que fosse um grande fator de democratização da vida social, semelhante à Ágora, conceito da democracia grega, que era a praça onde os cidadãos atenienses se reuniam para tomar decisões sobre as questões políticas mais cruciais. Muita gente acreditou nessa possibilidade, inclusive Fernando Henrique Cardoso que, quando já ex-presidente, chamou várias pessoas, eu inclusive, para pensar nisso.
Havia a ideia de que se conseguiria fazer uma discussão ampla de muita gente diferente e distante num único lugar. Aí o que aconteceu: a internet foi utilizada pela extrema direita com muita habilidade para difundir mentiras. Aquilo que podia ser um grande fator de articulação, de conhecimento, de enriquecimento humano, político, cultural, até científico, foi sequestrado por uma política do ódio. Esse é um problema grande que a gente vai ter que reverter. Como você reverte? Eu penso muito na importância da educação cooperativa.
Veja, com a criança pequena, você vai educá-la brincando. Brincar e jogar são fundamentais para conseguir educar as crianças. Se você fizer uma brincadeira que partir do lado competitivo, você estimula sua criança a competir na vida. Eu não sou a favor, acho que se deve estimular as crianças à cooperação. Um jogo de futebol, por exemplo, é uma competição entre dois times, sim, mas dentro de cada time, tem que ter cooperação, se tiver 11 jogadores ou quanto seja, atuando cada um por si, não vai ser bom, é preciso fazer tudo convergir.
Creio muito no poder da educação para cooperar, acho que se fizer isso, você combate um fator importante da fake news, que é o fato de que ela visa dividir as pessoas, colocá-las em conflito, até mesmo fatal, com o outro. Não é fortuito que nesse ambiente tem havido publicações na internet estimulando os jovens a se suicidarem. Isso faz parte de uma cultura do ódio que a gente tem que debelar.
E essa distância da sociedade com a ciência?
Olha, um dos focos da reunião anual da SBPC para o público em geral, é contar o que a ciência faz para quem não é daquela área científica. Uma pessoa leiga poderá aprender o que está sendo feito na física, na história, na sociologia, então, esse papel é importante. Outro papel importante é o de discutir as políticas que você faz a partir disso. A divulgação científica faz as pessoas conhecerem o que está sendo feito numa ciência que não é sua. Uma vez fazendo isso, há condições de ajudar a enfrentar esses problemas de que a gente está falando.
Quais são os desafios hoje para produção de ciência e inovação no Brasil?
Olha, tem o lado que você já levantou, como negacionismo, mentiras se tornaram fortes e poderosas, e tem o lado que é muito grave, eu não gosto de tocar nele, mas é inevitável que é o financiamento. A ciência precisa de financiamento constante e esse está sendo um grande problema no Brasil hoje.
E isso é fruto de várias coisas, de nem todos os poderes constituídos saberem a importância da ciência e não estou falando do Executivo, estou falando do Legislativo, que reduziu verbas do MEC e das universidades federais, e do Judiciário, que às vezes tem decisões esquisitas. Não podemos esquecer que, em São Paulo, um juiz condenou duas divulgadoras científicas porque denunciaram as mentiras propaladas por uma influencer.
E a participação das empresas privadas? Já que elas também precisam de inovação.
É importante, mas é bom dizer que existe uma fake news muito difundida, que diz que as universidades têm preconceito contra as empresas privadas. Fui membro do CD (Conselho Deliberativo) do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) há mais de 30 anos. Lembro que o CD apoiava essa participação, inclusive há uma bolsa que se chama RHAE (Recursos Humanos Aplicados às Empresas), que favorece a contratação por empresas de cientistas jovens.
Existe, pelo menos, uma Lei do Bem, aprovada em 2005, que também favorecia a cooperação de cientistas com as empresas. Do lado dos cientistas existe muita disposição, do lado das empresas, às vezes, existe a preferência de comprar uma tecnologia pronta, importada, em vez de fazer uma pesquisa por uma tecnologia inteiramente adaptada às nossas condições geográficas, climáticas, de solo etc.
A sua gestão à frente da SBPC termina este ano. Qual o balanço que o senhor faz?
Termina hoje (17.07). Acho que foi muito bem-sucedida, dentro do possível. Assumimos num momento tenebroso da história nacional, que era um governo negacionista e contrário aos valores éticos da modernidade. Um governo machista, contrário à igualdade de gênero, ao respeito à diversidade humana etc. e conseguimos dar conta de terminar aquela gestão bem. Então, foi muito positivo para nós e para o Brasil.
Depois, pegamos dois anos e meio de um governo comprometido com valores democráticos. Como a SBPC não é uma entidade governamental nem partidária, também temos nossa insatisfação, queríamos que mais investimentos fossem transferidos para a ciência, queríamos que a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e o Plano Decenal tivessem já sido aprovados.
Há dois anos e meio que o governo tomou posse e ainda não houve isso. No começo de junho foi editada uma portaria dando 90 dias para criar a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, até o momento não teve uma única reunião, a primeira vai ser agora, na semana que vem, convocada numa data que, inclusive, vários de nós não poderemos comparecer, por causa de outros compromissos. Então, existe a necessidade de continuar a luta. Não é porque esse governo é melhor que o anterior que vamos parar de lutar e de criticar.