*Por Beatriz Braga
Eu estava na Espanha, num metrô lotado, quando um homem grande e forte se aproximou como se tentasse ocupar um lugar mais próximo à porta. Senti a mão suja dele alisar minha coxa e tentar se aproveitar da saia que eu usava. Assustada, com nojo, desci na próxima parada e decidi andar alguns quarteirões imaginando, a cada beco, o que aconteceria se o encontrasse em uma rua vazia.
Veja, leitor(a), eu sou privilegiada. Branca, classe média e hétero em um país racista, desigual e homofóbico. Eu sei, porém, que habitar esse mundo para todas nós, sempre será, no mínimo, extremamente desconfortável.
A Justiça brasileira acaba de soltar (e prender de novo) um homem que havia ejaculado numa mulher no ônibus sob a justificativa de não ter havido constrangimento. Há poucos dias, a escritora Clara Averbuck relatou o assédio que sofreu no Uber. “O mundo é um lugar horrível para ser mulher”, disse.
O juiz, o cara do metrô, do Uber e do ônibus aprenderam que das mulheres se espera sempre o silêncio. Constrangimento é fazer escândalo, usar minissaia, beber demais ou andar sozinha à noite.
Em 2015, a campanha “Meu primeiro assédio” da Think Olga levou milhares de mulheres a contar suas primeiras lembranças de abuso nas redes sociais. As histórias eram horríveis, mas mostrou que essa é a regra. Assédio não é exceção. A idade média das pessoas nos relatos foi de 9 anos.
Apesar de doída, a repercussão foi incrível. Eu li algo assim: “era como se vivêssemos em um quarto escuro e, de repente, alguém acendeu a luz”. Finalmente estávamos falando sobre o corriqueiro.
Percebi que somos frutos das histórias secretas do dia a dia. Dos casos que ouvi, lembro sempre da minha amiga que, quando pequena, toda vez que o pai saia da sala em uma festa com os amigos, um adulto “super legal” – que ainda vive no círculo próximo – se aproveitava para colocar a mão dentro do seu biquíni. Por algum motivo que desconhece, ela nunca falou para ninguém.
Somos criadas sob a culpa e a vergonha. Em todas as histórias parece ter um padrão: a certeza da impunidade. Eles fazem o que querem e nós levamos o peso dos nossos corpos, das nossas roupas e da nossa falta de liberdade.
A Época Negócios deste mês trouxe a matéria “A armadilha masculina”, originalmente do The Economist, sobre as desvantagens do machismo para os homens. Um dos entrevistados diz que ser mulher é, inclusive, bem mais fácil do que ser macho. Segundo ele, a pressão de ser o provedor, matar barata e, ao mesmo tempo, participar das tarefas domésticas seriam exemplos de como a vida não é tão simples para o outro lado.
“Machismo é democrático. Ele fode com todo mundo” disse a jornalista Milly Lacombe na Casa Tpm. Concordo 100%. Ninguém sai ileso. No entanto, gostaria de perguntar a esse cara se ele já andou na rua e teve medo de ser estuprado. Acho que ele preferiria as baratas.
O machismo mata, viola e é cotidiano. Ele está no Brasil, fora dele, no público, no privado e nos ambientes em que julgamos estar seguras.
Na época do #meuprimeiroassedio, imaginei que muitos homens entenderiam que feminismo não é “mimimi”. Estranhei quando vi tantos conhecidos se incomodarem com o movimento. Entendi, mais tarde, que a empatia era menor do que o medo (talvez inconsciente) de perder o protagonismo.
Ao nos descobrirmos vítimas, ganhamos força. Assumimos o direito de combater o machismo em todos os níveis das nossas vidas, a romper silêncios e ameaçamos o status quo. Isso é poderoso. Estamos entendendo que discutir sobre isso não é vitimismo. É empoderamento. E assim ensinaremos às mulheres ao nosso redor a não se calarem. Precisamos dar nome e cara à nossa luta para fazermos mudança.
Por outro lado, os homens estão se descobrindo parte do problema e isso incomoda. Chamar de “exagero” e minimizar o contexto é, muitas vezes, mais fácil que repensar as próprias atitudes e fazer parte da transformação.
“O que elas querem mais? Já conseguiram o voto, já podem trabalhar…”, ouvi de um homem ao comentar sobre um protesto de feministas na televisão. Na hora não consegui nem iniciar a lista do que “ainda” queremos, mas volta e meia respondo retroativamente na minha cabeça: “O direito de ir e vir sem sermos infernizadas, para começar”.
*Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais