*Por Beatriz Braga
Eu lembro das aulas de dança que tive quando adolescente. Os pares eram feitos entre meninas e meninos. Eu colocava a mão no ombro do meu parceiro, enquanto ele posicionava a dele na minha cintura. Ele conduzia, eu obedecia. Mais ou menos como via na Disney e em Dirty Dancing: homens fortes e imponentes conduzindo mulheres flutuantes e sorridentes pelo salão.
Você pode achar essa é apenas a maneira como as pessoas dançam e que não vale a pena refletir sobre isso. Mas na verdade é assim que o mundo funciona. Aprendemos, através dessas “sutilezas”, o que é ser mulher e homem por aqui.
Sutilezas como as cores que estipulamos para nossos bebês. Rosa para elas, azul para eles. Um assunto importante o suficiente para ser citado pelo nossa nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, no seu discurso de transmissão de cargo: “é uma nova era no Brasil, menino veste azul, menina veste rosa”.
A ministra se esforçou em explicar que a frase é uma metáfora. Sim, sabemos, uma metáfora do mundo aplaudido pelo novo governo: rapazes e garotas têm papéis bem definidos na sociedade; o espectro é raso e ir além do heteronormativo não é aceitável.
Houve uma repercussão à fala da ministra nas redes sociais – que ótimo. Mas essa reflexão precisa chegar na nossa própria obsessão por gênero nos discursos implícitos do dia-a-dia.
A maneira como ainda lidamos com o sexo da criança – a começar antes do seu nascimento – é parecida como a maneira que dançamos: exigimos a representação de papéis pré-definidos.
Quando a definição de gênero aparece explícita na fala da ministra, ficamos chocados. Mas já parou para pensar nos rituais? Nos eventos como “chá revelação” tão focados no sexo, nos presentes que oferecemos aos pequenos; nas bonecas e miniaturas de utensílios domésticos para meninas e nos carrinhos para meninos?
Em teoria, até que avançamos. Mas na prática, continuamos alucinados pelas regras de gênero e nas expectativas criadas cada vez que o sexo é revelado.
O “azul x rosa” é fruto de uma estratégia de marketing bem jogada pela indústria de roupas no pós segunda-guerra que continua nos manipulando até agora.
Se comecei o texto dançando é porque um projeto maravilhoso de dois artistas norte-americanos tem algo a nos ensinar sobre as sutis regras que vivemos à mercê.
Trevor Copp e Jeff Fox criaram despretensiosamente o Liquid Lead Dance, um modelo de dança de casal no qual o gênero pouco importa.
Se a ideia é que em toda dança de par tem quem conduz e quem acompanha, o projeto monta um esquema no qual a condução é trocada pelos parceiros durante a música, num sistema fluido e bem bonito de se ver. Um pede ao outro a licença para conduzir – sendo um casal do mesmo sexo ou não.
A melhor parte – segunda a dupla fala nessa palestra (l https://www.ted.com/talks/trevor_copp_jeff_fox_ballroom_dance_that_breaks_gender_roles?language=en) – é que independente das posições assumidas na performance, a presença e a personalidade de cada dançarino permanece intacta. Taí uma metáfora mais legal que da nossa ministra: a liberdade de não ser definido por um papel.
“Se pegássemos a dança de salão e a traduzíssemos numa conversa, nós jamais apoiaríamos. Ele (o homem) manda, ela (a mulher) só reage. E nós, como cultura, assistimos e aplaudimos. Estamos aplaudindo nossa própria ausência”, disse Trevor Copp.
Assim como a dança, as tradições na educação das crianças são apresentadas na vida cotidiana, não como texto, mas como movimento. Dançamos conforme a música sem refletirmos.
“Quando assistirem à dança de salão”, aconselhou Jeff Fox, “não enxerguem apenas o que está lá. Enxerguem também o que não está”.
Ao aceitar apenas o homem e a mulher no estereótipo do espetáculo, se exclui os casais formados por homens, só por mulheres; assim como os homens mais sensíveis e emotivos, assim como as mulheres mais altas e agressivas e por aí vai.
Quando ouvirem Damares, enxergue o que não está ali. Meninos que vão sofrer por não se identificarem com o ideal de masculinidade; meninas que não se encaixam em vestidos e casinhas de boneca rosas.
Não há nenhuma evidência que cores, brinquedos e imposições dessa forma guiem às crianças para serem “menos gay” ou algo assim. Há, por outro lado, evidências do quanto as tradições as fazem odiarem a si mesmas.
O Liquid Lead Dance é uma posição política. Eles imaginaram um cenário artístico onde é possível trocar e destrocar de posição com equilíbrio, experimentar, negociar, conversar, ouvir e falar.
Aos espectadores, há uma certa estranheza no começo. A estranheza ante talvez a melhor possibilidade da vida: a liberdade de trocar o verbo “ser” pelo “estar”.
Imagina um mundo no qual as crianças nascem escolhendo como dançar? E isso mais ou menos começa quando você pensa na maneira que vai lhes dizer o que deve vestir.