“Bacurau” faz retrato de um Nordeste que insiste em resistir

Houldine Nascimento

Em um primeiro momento, Bacurau, a comunidade retratada no filme homônimo dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, aparenta ser arcaica, mas vários elementos presentes na trama desmistificam essa impressão. Já nos minutos iniciais, o vilarejo localizado no “oeste de Pernambuco” demonstra estar bastante atento e conectado às novidades.

O retorno de Teresa (Bárbara Colen) a sua terra natal serve de introdução para que o espectador tenha acesso às particularidades daquele ambiente. A falta d’água é uma realidade e o funeral da matriarca Carmelita (Lia de Itamaracá) reúne os habitantes, num rito que nada tem de melancólico, exceto pelo comportamento inapropriado da médica Domingas (Sonia Braga), uma das conselheiras do local.

A partida da grande figura é o primeiro marco de “Bacurau” (Brasil/França, 2019), o filme – em cartaz nos cinemas brasileiros –, e antecede uma sequência de estranhos acontecimentos que a população passa a assistir. O clima de tensão é crescente: a cidade some do mapa. O caminhão-pipa que trafega com frequência para dentro e para fora da comunidade é misteriosamente atingido por tiros e cavalos soltos em disparada no fim de noite acentuam essa atmosfera.

Isolada do restante do Brasil e abandonada à própria sorte, Bacurau resiste às inúmeras dificuldades a sua maneira. Há um senso de união entre os moradores, especialmente diante da chegada de um político oportunista e de dois forasteiros. Qualquer entrada atípica na cidade é motivo de alerta.

As ações contínuas preparam o público para um segundo ato bastante explosivo, que sintetiza o distanciamento entre pessoas do Norte e do Sul do Brasil e a forma como uma região enxerga a outra. A partir de um grupo de estrangeiros que aporta nas redondezas, a obra delibera a pretensa superioridade que alguns brasileiros imaginam ter sobre os outros e o chamado “complexo de vira-lata”, abordado outrora por Nelson Rodrigues, perante outras nações.

Não há um claro protagonista em “Bacurau”, a não ser a própria cidade. O entra e sai de atores não dificulta o trabalho da montagem, assinada por Eduardo Serrano, que consegue dar um dinamismo aos acontecimentos, garantindo fluidez na transição das personagens.

As boas atuações saltam aos olhos. Um dos destaques é Lunga (Silvero Pereira), um foragido da justiça muito festejado pela população. Sua figura híbrida poderia muito bem ter saído de um “Mad Max”. A participação do alemão Udo Kier como Michael, o líder dos estrangeiros, também é marcante em razão das nuances que ele consegue empregar. Há, ainda, uma forte presença de povo, com passagens reservadas a moradores da comunidade de Barra, em Parelhas, no Sertão do Seridó (RN), onde o filme foi rodado.

A narrativa de “Bacurau” é bastante intensa na segunda parte e não economiza na violência. O filme transita por diversos gêneros: ficção científica, ação, suspense, faroeste, terror e drama. Isso faz lembrar um bolo recheado com diversas camadas. Numa comparação, é como um suculento bolo de rolo pernambucano.

Em seu terceiro longa-metragem de ficção, Mendonça Filho se juntou a Dornelles, designer de produção de “O som ao redor” e “Aquarius”. Uma curiosidade é que a ideia de tecer “Bacurau” surgiu em 2009, anos antes dos dois filmes. O roteiro também foi escrito pela dupla e reserva diálogos muito consistentes, o que, por vezes, costuma ser uma grande dificuldade das produções ficcionais brasileiras.

Embora no começo os letreiros anunciem que a história se passa “daqui a alguns anos”, há muitos elementos que se chocam com a situação política do Brasil. O entreguista prefeito Tony Jr., vivido com brilhantismo por Thardelly Lima, talvez seja o que existe de mais evidente nesse sentido.

É difícil apreender uma obra como “Bacurau” em sua completude. Experienciar este filme inclassificável será quase sempre muito melhor do que qualquer relato. Trata-se de uma produção única dentro do cinema brasileiro, daquelas que provocam imersão total e fazem a plateia vibrar.

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