Cachaça: água que passarinho não bebe - Revista Algomais - a revista de Pernambuco
Cultura bem temperada

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Raul Lody

Cachaça: água que passarinho não bebe

Pela goela abaixo desce a branquinha – água que passarinho não bebe – abrindo refeições, abrindo conversas, aproximando pessoas ou representantes do que é sagrado.

É a abrideira, um contato privilegiado entre o sabor, o ardor, o estilo de bebida forte, bebida que inaugura os diálogos com o mundo.

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É bebida que aproxima o santo. Seja que santo for, santo individual, coletivo, santo identificado, nominado ou mesmo santo inventado na hora.

Dar bebida para o santo. Dar para o santo. Jogar no chão o primeiro gole como um pedido de licença, saldando o chão, saldando ancestrais e homens.

Oferecer a terra é oferecer aos vivos e aos mortos, celebrando uniões entre hoje, ontem e desejando uma fala simbólica com o amanhã.

Terra, chão, território ancestral; território concreto do trabalho, das relações sociais.

Cachaça no boteco, no botequim, na banca de feira e de mercado, na esquina, no bar ou mesmo em casa, evoca um sentido/sentimento do mundo dos homens.

É a bebida forte que determina num sentimento de ancestralidade no território masculino e que também celebra a conquista do herói. Herói identificado ou mesmo herói coletivo. É a lembrança do provedor, do caçador, do guerreiro, daquele que chega para marcar um papel, uma função social. Tudo isso transita pelo amplo imaginário fundante da nossa bebida forte, a cachaça.

A cultura judaico-cristã incumbiu-se e determinou o papel histórico e patriarcal do homem. Em permanente atualização o papel relativiza-se entre a caçada do provedor a ida ao supermercado ou mesmo provendo na quitanda mais próxima e que também é resumo da realidade/alimentação.

São comportamentos, formas de contatar com o mundo externo. Nesse contexto a bebida é um limite, entre o tempo histórico e o tempo mágico.

Baco certamente já sabia o que fazia com a razão e o pragmatismo dos homens.

A cachaça encarna um sentimento nacional. O sentimento do brasileiro.

Há também uma representação mimética entre a cachaça e o machismo.

Esse vinho de borras, a cachaça brasileira, é resultado da cana sacarina, oriunda do sudoeste asiático.

A cachaça é bebida de contatos, de socialização e também uma bebida solitária. É uma busca pelo espírito da cana-de-açúcar.

Profundamente espiritual e espiritualizada é a cachaça: um ser, uma entidade socialmente incluída nos rituais cotidianos ou em complexas situações de liturgias, de cerimônias coletivas, intermediando pessoas e personagens.

Jean Baudrillard afirma que: “tudo é solúvel no amor, tudo é solúvel através do amor.” Digo: tudo é solúvel na cachaça. Não é uma apologia e nem uma enebriada defesa da purinha, da branquinha.

Ela não necessita de defesa e sim de conhecimento e de compreensão integrada à vida e aos símbolos da cultura.

Cachaça, uma bebida acima do bem e do mal.

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