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Capibaribe da resistência

Revista algomais

Para os bichos e rios nascer já é caminhar. É falando sobre gente, animais e águas que João Cabral de Melo Neto incorpora a personalidade do Capibaribe para fazer um relato, em primeira pessoa, no poema O Rio, do trajeto que o mais emblemático curso d’água pernambucano percorre da nascente até sua foz. A narrativa, que surpreendeu a crítica, completa 65 anos. Andando no leito seco no Agreste e navegando pela correnteza da sua parte perene, o poeta narra sobre vida e morte do cenário que ele viu e viveu.

Mais de seis décadas depois, assim como as pedras que fascinavam o poeta por permanecerem imutáveis no rio, uma parte desse cenário relatado por Cabral, também mantém-se inalterado. Mas muitas águas rolaram e hoje alguns outros aspectos da atual realidade distinguem-se daquela mostrada na cadência dos versos do poeta. Nesta edição especial de aniversário da Algomais, iniciamos a série de reportagens Rio da Resistência, que fará a comparação entre a situação das pessoas, da natureza e das cidades situadas às margens do Capibaribe na época do relato de João Cabral e a condição atual.

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O poema O Rio foi escrito após Cão sem Plumas e antecedeu Morte e Vida Severina. Publicado entre seus dois clássicos mais conhecidos, a obra retrata o fascínio de Cabral pelo Capibaribe e por sua terra, ao mesmo tempo que constata o sofrimento dos retirantes. “Seu avô contava que ele ficava muito tempo contemplando o rio quando era menino. A pedra que fica e o rio que flui são imagens emblemáticas da sua obra e da sua infância”, diz Lourival Holanda, professor do departamento de letras da UFPE.

O professor ressalta a descrição do impacto que o sol e a seca traziam para as pessoas. Dizia o poeta: Por trás do que lembro / ouvi de uma terra desertada / vaziada, não vazia / mais que seca, calcinada / De onde tudo fugia / onde só pedra é que ficava, / pedras e poucos homens / com raízes de pedra, ou de cabra.

Um quadro não muito diferente do que se viu nos últimos sete anos no Alto Capibaribe, região onde o rio é intermitente. Hoje outros agentes contribuem para seu leito seco. Especialistas como Arnaldo Vitorino, geógrafo aposentado, e Alexandre Ramos, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe, apontam que, além da estiagem, a derrubada das matas ciliares e a poluição são fatores externos que ameaçam o rio e a fauna e flora que dele dependem.

Mas hoje, também, novas tecnologias e pessoas engajadas na sua preservação buscam modificar essas ações deletérias. A nascente do Capibaribe, por exemplo, já foi um local abandonado. Nos últimos anos, porém, contou com uma série de projetos de revitalização. Há um fato curiosos sobre o olho d’água, pois até pouco tempo pensava-se que ele se localizava na Serra do Jacarará, que fica em Jataúba, como consta no poema. Recentemente, porém, descobriu-se que sua localização correta é na Serra do Passarinho, no município de Poção.

A equipe de reportagem da Algomais foi até lá numa expedição guiada pela ONG Bichos da Caatinga. As caraibeiras, espécie de árvore mencionada por Cabral, capins, cactus e uma reserva de mata atlântica abraçam a nascente.

O gestor ambiental Pablo Ricardo, alerta que essas ações de revitalização da cabeceira foram abandonadas e precisam ser retomadas. “Hoje a nascente volta a estar um pouco esquecida. É preciso investir em reflorestamento e principalmente em educação para que a consciência ambiental possa se perpetuar na região”. Pablo afirma que as árvores no entorno servem como uma esponja ao solo que retém as águas e realimentam as fontes.

Nos primeiros quilômetros do rio descendo por Jataúba, várias pequenas estradas cortam o leito seco. Na paisagem, várias serras sem vegetação fruto da ação humana. Arnaldo Vitorino explica que a manutenção do pouco verde que havia nesses lugares evitava a descida de sedimentos para o rio. Outras práticas de pouca consciência ecológica também fazem o Capibaribe sofrer nas proximidades do seu nascedouro. “A construção de barragens subterrâneas irregulares e a retirada de areia do leito para comercialização são outras práticas que prejudicam a vitalidade do rio na região próxima da sua nascente”.

Mas mesmo no solo “mais que seco, calcinado” há vida e atividade humana. Gente que aprendeu a conviver com o semiárido. Caminhando pelo leito do rio, em Jataúba, José Santino, 78 anos, puxava um jumento com duas cargas de capim. Agricultor, ele vive com a filha e dois netos numa propriedade arrendada. “É difícil produzir porque não vem inverno para cá. Mas eu trabalho para me manter. Nasci e me criei nesse lugar velho. Já trabalhei no Sul, já vivi em usina. Mas minha vida é aqui”. Apesar de ter conhecido outras terras, voltou para as origens.

José Santino, 78 anos. Foto: Tom Cabral/Algomais

 

Na área rural de Jataúba, Leandro Santos, ou Tôr, como é conhecido, trabalha na ordenha de um rebanho de 85 vacas. A fazenda produz leite e queijo, que é vendido em feiras e até no Recife. “Gosto muito do trabalho. Água é um sacrifício, mas a gente arruma”, conta. E "arruma" com auxílio da tecnologia. Os animais saciam a sede com o conteúdo da cisterna e do cacimbão, espécie de poço para captação de águas subterrâneas. E a coleta do leite é mecanizada.

Leandro Santos, ou Tôr, trabalha na ordenha de um rebanho de 85 vacas em Jataúba. Foto: Tom Cabral

 

Tecnologias que permitiram a sobrevivência da fazenda e de muitas pessoas. A maioria das casas tem uma cisterna ao lado, que capta as poucas chuvas. Nos cálculos da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), os quatro primeiros municípios da Bacia Hidrográfica do Capibaribe (Poção, Jataúba, Brejo da Madre de Deus e Santa Cruz do Capibaribe) possuem 2.148 desses reservatórios. Estruturas que associadas à cultura aprendida de convivência com a seca, permitem que o Nordeste brasileiro seja a região semiárida mais populosa do mundo, de acordo com o Instituto Nacional do Semiárido. "A convivência da população com o ecossistema do semiárido resgata práticas tradicionais de baixo impacto que facilitam a vida e as relações entre seres humanos e a natureza", diz Alexandre, que destaca ainda a tecnologia das barragens subterrâneas e os sistemas populares de reuso de água.

Não é só de gente que é composta essa paisagem. No poema de Cabral existem apenas algumas aves predadoras, sobreviventes da seca. Tudo o que não fugia,/ gaviões, urubus, plantas bravas,/ a terra devastada. Mas diferente do relato, a biodiversidade é uma das características dessa terra. De acordo com a ASA, um terço de suas plantas e 15% dos seus animais são espécies exclusivas, ainda não reconhecidas em outras partes do mundo.

Jaguarundi, espécie prima da onça Suçuarana, teve imagens captadas pela ONG Bichos da Caatinga, em Santa Cruz do Capibaribe.

 

A ONG Bichos da Caatinga, formada por um grupo de amigos, faz o registro desses animais, ação que contribui para modificar a visão negativa sobre este habitat. “Tínhamos o incômodo da imagem marginalizada da caatinga, vista apenas como um local estéril. A partir de expedições na mata, coletamos fotos e vídeos, por meio de armadilhas fotográficas, e mostramos nas redes sociais a riqueza desse bioma”, explica o coordenador Bruno Bezerra.

Arnaldo Vitorino, Pablo Ricardo e Bruno Bezerra da ONG Bichos da Caatinga

 

Já foram catalogadas mais de 30 espécies, sem contar com os pássaros. O achado que deu mais visibilidade ao projeto foi o jaguarundi, um tipo de puma. “Essa espécie é prima da onça suçuarana. Conseguimos uma imagem rara de uma ninhada de filhotes de cores distintas”, conta Bruno. Também foram captadas pelas lentes da ONG raposas, jacarés, gambás, gatos do mato, tatus, tamanduás, entre muitos outros. Imagens que fazem as redes sociais do Bichos da Caatinga agregar cerca de nove mil seguidores. “As pessoas se surpreendem ao se deparar com uma caatinga com muita vida. Isso colabora para que abracem o discurso da preservação”, assegura Bruno.

*Por Rafael Dantas, repórter da Algomais (rafael@algomais.com)

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