"Se não enfrentarmos a doença crônica e o envelhecimento na população mais pobre, o SUS vai quebrar em 10 anos".
O médico sanitarista Cláudio Duarte foi secretário nacional de políticas do Ministério da Saúde, na gestão de José Serra e diretor geral do Hospital do Servidor. Após ser aprovado em concurso, hoje atua como médico da família na comunidade Vila Arraes, no bairro da Várzea, no Recife. Com toda essa experiência, Duarte avalia que o SUS respondeu bem às demandas da pandemia e que executa um serviço de qualidade em áreas como o Samu e os programas de imunização e de transplante, além de apresentar progressos no atendimento de emergências e urgências. Mas por que a população reclama da saúde pública e os corredores dos hospitais estão lotados? Segundo Cláudio Duarte, o grande gargalo do SUS está nas políticas voltadas ao idoso e às doenças não transmissíveis. Nesta entrevista a Cláudia Santos, o sanitarista detalha a sua análise e alerta para a necessidade de levar à atenção primária as mesmas estratégias que permitiram a programas como o de imunização oferecer um serviço de qualidade a todos os brasileiros. O senhor acredita que a pandemia reforçou para a população importância do SUS? Com a capacidade de resposta do SUS a esta epidemia, a população sentiu a presença desses serviços. A última pesquisa nacional de saúde feita pelo IBGE constata que 159 milhões de brasileiros usam o SUS, ou seja, 71% da população. No primeiro momento da pandemia, houve o gargalo da atenção especializada, a má distribuição dos leitos de UTI, muito concentrados nos grandes centros urbanos. O sistema foi posto à prova e, de certa maneira, ele apresentou uma capacidade de resposta, com exceção do Rio de Janeiro e de Manaus, onde sistemas locais de saúde vivem em crise em razão de processos políticos e de gestão. Houve uma grande incorporação de profissionais, os gestores fizeram parcerias público-privadas para expandir esses leitos, já que a área pública tem uma capacidade mais lenta de produzir expansão – um vez que precisa fazer licitação para comprar equipamentos, etc. O segundo momento, foi mais crítico, quando chegamos a ter em Pernambuco – sou médico plantonista da Central de Regulação – 320 pessoas na fila da UTI. Em cada plantão transferíamos cerca de 50 a 80 pessoas por dia. Foi um momento crítico, também porque a medicina ainda não sabia lidar com a doença. Em Pernambuco, tivemos pacientes intubados nas UPAs, em hospitais no interior, aguardando leitos de UTIs, que estavam sendo abertos, mas não tivemos pacientes desassistidos como ocorreu em Manaus. Depois, com a disponibilidade de vacina, surge um momento mais positivo que foi a capacidade de resposta que o SUS teve naquilo que ele vem fazendo nos últimos anos, que é o PNI (Programa Nacional de Vacinação). Houve a dificuldade de fornecimento de vacinas – que o ministério teve que correr atrás em razão da pressão da opinião pública, da academia e dos especialistas – mas quando a vacina chegou, foi aplicada e houve um grande reconhecimento do SUS que também chegou à classe média, aos formadores de opinião. O PNI tem uma grande capilaridade, tem insumos de alta qualidade, gratuitos, bem padronizados e baseados na evidência científica, com produção nacional. A Fiocruz e o Instituto Butantan praticamente conseguem abastecer para algumas vacinas 100% da necessidade nacional e em qualquer unidade desse País existe a instituição “sala de vacina”. Esse é um grande exemplo de que o SUS quando tem programas nacionais ou áreas de atuação que são padronizadas, há insumos, há regras de execução, de supervisão, nacionalmente, essa ação consegue ter um nível de qualidade. Outro programa que funciona da mesma forma é o Samu, que tem o mesmo padrão de qualidade no País, tem uma central de regulação, as ambulâncias são bem conservadas, não são liberadas por critérios políticos, obedecem a critérios de liberação de regulação, os profissionais são capacitados. É um serviço que tem visibilidade e consegue atender 100% da população. Mesmo aquela pessoa de classe média que tem um acidente, o primeiro socorro é do Samu, que a leva para um hospital público, faz um primeiro atendimento e depois essa pessoa é transferida para um hospital privado. Outro exemplo é o Programa Nacional de Transplante, uma área de alta complexidade. O Sistema Nacional de Transplante, criado na gestão de Fernando Henrique Cardoso – eu era diretor do Ministério naquela época – tem uma central nacional de regulação de captação de órgãos, uma fila nacional baseada em critérios clínicos, é financiado pelo Ministério da Saúde e executado por meio dos gestores estaduais, usando uma parceria público-privada. Os hospitais de transplantes são unidades públicas ou privadas contratadas pelo SUS. Praticamente os planos de saúde não financiam esses procedimentos. Pernambuco é uma grande referência, temos áreas de excelência em transplante de fígado, rins, córnea, coração. O SUS, quando define um objetivo assistencial, quando constrói um sistema de financiamento de pactuação, quando é implantado baseado em critério nacionais de qualidade, consegue atingir objetivos com níveis de eficiência comparáveis a países de primeiro mundo. Como foi criado o SUS? O primeiro momento político e de formulação de um conceito de um sistema nacional de saúde que foi na Constituinte. Conseguimos, com alguns embates na área privada, vencer as resistências liberais e fundar aquilo que em 1991 se consolidou com a lei orgânica para a criação do SUS. O segundo momento foi a descentralização, que teria de ser executada com uma parceria dos níveis de governo federal, estadual e municipal. A municipalização foi fundamental para promover a extensão de cobertura, da capilaridade. Com os fundos de transferência dos recursos em escala nacional, os municípios passaram a ter verbas para ampliar essa rede de atenção básica, para contratação das primeiras equipes, a expansão das unidades básicas de saúde, a melhoria dessas ações voltadas para criança, mulher, vacinação, diarreia, pneumonia. Nos últimos 10 anos, fizemos um avanço progressivo na área de média complexidade, com as UPAs, um movimento que começou no Rio e se expandiu. Na gestão de Eduardo Campos, esse modelo foi implantado aqui, com 14 unidades de pronto atendimento na Região Metropolitana do Recife, que funcionam 24 horas,