Enquanto líderes mundiais adotam medidas unilaterais e fecham fronteiras em nome da defesa dos interesses nacionais, cientistas de diferentes países formatam um modelo de colaboração global sem precedentes na história, com o objetivo de promover descobertas conjuntas que ajudem no combate ao novo coronavírus (SARS-CoV-2). “A COVID-19 é um caso vívido de diplomacia científica. A maioria das manchetes de jornal é sobre a colaboração entre países por meio da ciência para defender interesses em comum. E isso se dá em uma realidade geopolítica – que emergiu nos últimos cinco anos [movimentos políticos contrários ao multilateralismo] – não muito propícia para o enfrentamento conjunto de uma pandemia”, disse Marga Gual Soler, integrante da comunidade de jovens líderes do Fórum Econômico Mundial (WEF), durante a palestra on-line Science Diplomacy & COVID-19: Challenges & Opportunities, em 24 de abril. Para a pesquisadora, as manchetes atuais mostram, no âmbito das relações internacionais, uma reconfiguração do chamado soft power – no qual se inserem, por exemplo, a diplomacia científica e os episódios de doação de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de ventiladores entre países – e também do hard power, exemplificado por sanções econômicas e pelo confisco de material médico. “É notável a velocidade com que os estudos sobre a COVID-19 estão sendo realizados. Pesquisadores em todo o mundo nunca foram tão colaborativos, embora o mesmo não esteja acontecendo no campo político entre os países”, disse Gual Soler, que integrou o corpo docente da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Diplomacia Científica e Diplomacia da Inovação (InnSciDSP), realizada em 2019 com apoio da FAPESP. O evento resultou no primeiro treinamento em diplomacia científica no Sul Global. Por causa da pandemia, está prevista para agosto uma nova reunião do grupo formado na InnSciDSP. O encontro será virtual e por meio de uma plataforma on-line. As inscrições para o processo seletivo estarão abertas entre 20 de maio e 10 de junho e podem ser feitas pelo site da Escola. Diplomacia científica Gual Soler, que é doutora em biologia molecular e tem uma extensa carreira na diplomacia científica, afirma que ciência e diplomacia tendem a ser vistas como mundos distintos, com tempos e interesses diferentes. Porém, da relação entre as comunidades acadêmica e diplomática surge a chamada diplomacia científica, ferramenta estratégica que vem ganhando relevância nos últimos anos. Tradicionalmente, a diplomacia científica pode ser dividida em três aspectos. A primeira e mais comum, chamada Science in diplomacy, ocorre quando a ciência serve de base para negociações diplomáticas. Entre os principais exemplos estão o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) e o Protocolo de Montreal, acordo internacional que, com base na ciência, conseguiu restringir a liberação de clorofluorcarbonetos (CFCs) – gases prejudiciais à camada de ozônio – pela indústria. Um segundo aspecto diz respeito à criação de acordos de colaboração científica e pode ter a finalidade de resolver problemas comuns e construir parcerias internacionais construtivas. É a chamada Diplomacy for Science. Há ainda um terceiro aspecto, chamado Science for diplomacy, quando a cooperação científica entre países ajuda na relação internacional e no diálogo político. “É comum que, após um conflito, os primeiros acordos entre os países sejam científicos, pois é mais fácil colaborar e construir nesse aspecto”, disse Gual Soler, que participou da estratégia de reaproximação entre Cuba e Estados Unidos por meio de acordos científicos, durante o governo do presidente Barack Obama. Independentemente do interesse ou objetivo, para que esses três aspectos ocorram é preciso construir conexões entre ciência e diplomacia. “O cientista não precisa necessariamente ter conhecimento em política externa, nem os diplomatas precisam saber como a ciência pode ser afetada ou beneficiada pelas relações internacionais e a situação geopolítica internacional. O que diferencia diplomacia científica de acordos de colaboração internacional comum é a defesa de interesses nacionais”, explicou. Novo normal Para Gual Soler, a crise causada pela COVID-19 não poderá ser solucionada de forma parcial, o que pode jogar ainda mais luz ao multilateralismo e à diplomacia científica. “Não existe uma solução que não seja para todos. O mundo inteiro busca uma vacina, mas de que adianta vacinar a população de seu país se ainda existirem focos da doença pelo mundo? Só vai funcionar caso haja um programa de saúde global. Temos aqui a mesma lógica das mudanças climáticas, porém, ainda mais urgente”, disse. Outra ação estratégica, de acordo com a pesquisadora, é compreender como cada nação está respondendo à pandemia. “Os países que tiveram uma resposta mais robusta contra o novo coronavírus foram aqueles que tomaram medidas baseadas em evidências científicas, por meio de um conselheiro científico ou pela interface de políticas científicas”, afirmou. Dessa forma, a COVID-19 mostra sobretudo o surgimento de novos modelos de liderança global amparados na ciência, mas não apenas. “Destaco as líderes mulheres que estão apresentando ótimos resultados no combate à pandemia, como é o caso da Nova Zelândia, Alemanha, Taiwan, Islândia, Finlândia, Dinamarca e Noruega”, disse. Gual Soler destacou ainda os casos do Reino Unido e dos Estados Unidos, que demoraram em dar uma resposta baseada em evidências científicas. Inicialmente, o Reino Unido foi contra a imposição de quarentena por defender a necessidade de contágio para que a população se tornasse naturalmente imune. Essa estratégia perdurou até que um estudo do Imperial College of London mostrasse que a medida resultaria no provável colapso do sistema de saúde e um elevado número de mortes. Nos Estados Unidos, a resposta inicial foi minimizar os riscos da pandemia e houve aposta no uso de medicamentos ainda sem efeito comprovado. “Com isso, mostrou-se a extrema importância de países terem infraestruturas para a incorporação de conselhos científicos. É preciso não só ter cientistas, conhecimento e agências que ponham a ciência em prática, mas também líderes capazes de ouvir esses comitês”, disse. Gual Soler ressalta que, independente das circunstâncias, cientistas nunca devem dizer o que políticos devem fazer. “Cabe a eles apenas apresentar dados e embasamento científico para o tomador de decisão. Existem muitos interesses conflitantes, sejam econômicos, culturais ou religiosos, que precisam ser levados em conta pela política.