Empresários de postura arrojada, Murilo Tavares de Melo e Armando Monteiro Filho tiveram uma trajetória que marcou a economia pernambucana
*Por Rafael Dantas
Há 100 anos, dois grandes empresários que marcaram a história de Pernambuco davam seus primeiros passos na vida. Murilo Tavares de Melo, fundador do Grupo Olho D’Água, e Armando Monteiro Filho, da Usina Cucaú. Ambos tiveram negócios na tradicional atividade sucroenergética mas construíram trajetórias que extrapolaram, em muito, esse campo. Com vidas longevas, que ultrapassaram nove décadas, escreveram capítulos decisivos da economia e da política pernambucanas.
Murilo Tavares de Melo viveu 96 anos. Além da consolidação do Grupo Olho D´água, ele atuou em vários outros empreendimentos que marcaram a economia pernambucana. Conduziu por décadas os negócios da família, com forte tradição na produção de açúcar e etanol, mas foi também um dos criadores de marcas como a Maguary, que fez história na produção de sucos e sorvetes, dos calçados Dupé, além de criar empresas também nos segmentos de embalagens e logística.
Já seu contemporâneo Armando Monteiro Filho faleceu aos 92 anos. Desde cedo conciliou a atividade empresarial com a vida política. Ainda jovem, serviu como secretário de Viação e Obras Públicas, no Governo Agamenon Magalhães, foi deputado estadual e federal, e, em 1961, foi nomeado ministro da Agricultura. Empreendedor ousado, liderou a diversificação do grupo empresarial da família que entrou no mercado financeiro, metalúrgico e no comércio automotivo.
Ambos eram conhecidos como doutores na sociedade: Dr. Murilo e Dr. Armandinho. O longo período em que eles atuaram, seja empresarialmente ou politicamente, foram marcados por muitas crises que guardam algumas semelhanças com o mundo pós-pandêmico. As turbulências políticas globais, mudanças bruscas de governo e os inúmeros episódios de seca enfrentados por Pernambuco, têm importantes conexões com o cenário de polarização atual e com a crise promovida pelas mudanças climáticas. Desafios enfrentados hoje que também estiveram na agenda desses dois protagonistas.

Além da coincidência de terem nascido com semanas de diferença e desenvolverem negócios na produção de açúcar, os empresários chegaram a ter um convívio amistoso desde a juventude. “Há traços nessa história centenária que se cruzam. Embora tivessem sua trajetória própria, sempre foram amigos e sempre se respeitaram. Ambos tinham uma forte crença no trabalho produtivo”, relembrou Armando Monteiro Neto, filho do ex-deputado Armando Monteiro Filho.
Eduardo de Queiroz Monteiro, atual presidente do Grupo EQM, lembra que uma das usinas empreendidas pelo Dr. Murilo, a Estivas, pertence hoje ao grupo, mas o DNA do empresário permaneceu na empresa. “Eles tinham uma ligação muito grande. Foi um homem extraordinário, que tem muita história no setor sucroalcooleiro”.
UMA HISTÓRIA DE INVESTIMENTO ROBUSTO NAS ATIVIDADES PRODUTIVAS
Quem conviveu por quase três décadas com Dr. Murilo foi o consultor Ricardo de Almeida, da TGI. Ele revela a admiração pelo espírito empreendedor, que não se furtava a investir de forma contínua no desenvolvimento dos negócios. “O grupo começou em 1920, quando a primeira geração comprou um engenho em Camutanga e o transformou em usina. Desde então é uma história de permanente investimentos”.
O grupo enfrentou cedo seus primeiros desafios. A empresa familiar sofreu um grande impacto com a crise internacional do crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929. O episódio comprometeu o capital de giro e quase levou o empreendimento à falência. Mas o Grupo Tavares de Melo resistiu.
A partir do final dos anos 1940, os filhos mais velhos do fundador Artur Tavares de Melo começaram a participar da gestão, dando início a uma fase de expansão. A família chegou a controlar usinas em vários estados. “O grupo empresarial que montou a Maguary, de sorvetes, montou uma fábrica de sandálias, a Dupé, uma fábrica de sacos plásticos e chegou a ter cinco usinas de açúcar. A matriz era em Pernambuco mas havia uma no Rio Grande do Norte, uma na Paraíba e duas no Mato Grosso do Sul”, relatou Gilberto Tavares de Melo, filho do Dr. Murilo e atual presidente do Grupo Olho D’água.

Um dos momentos decisivos nessa trajetória empresarial do Dr. Murilo foi a decisão de separar demais familiares os negócios em 1994. A partilha de bens aconteceu de forma consensual e o Dr. Murilo inaugurou ali o Grupo Olho D’água. Com quase 30 anos desse novo ciclo, o empresário ampliou sua atuação com a compra de novas unidades e com a participação no Temape (Terminal Marítimo de Suape), responsável pela movimentação de granéis líquidos. O novo grupo comprou também uma usina no Piauí e fez a aquisição de uma antiga usina do grupo na Paraíba.
O consultor Ricardo de Almeida conta que o Dr. Murilo tinha a convicção de que o desenvolvimento só acontece com constância e visão de longo prazo. Mesmo já aos 75 anos, mantinha o hábito de fazer cálculos, projetar obras e buscar soluções estruturantes, como a Barragem Artur Tavares de Melo que viabilizou a expansão da produção agrícola do grupo.
Ao saber do volume de investimentos que seria necessário na barragem, Ricardo o alertou que se tratava de “uma obra de governo”. Mas Dr. Murilo disse que, como o poder público não estaria disposto a bancar a construção, ele mesmo assumiria o empreendimento, que era importante para os negócios e para a região. “Eu perguntei, então, em quanto tempo ele esperava recuperar aquele investimento. Ele disse que em 25 anos empatava e depois começaria a ganhar dinheiro. Eu fiquei muito emocionado pela visão dele”, relatou Ricardo de Almeida.
Quando Dr. Murilo decidiu construir a Barragem Artur Tavares de Melo, perguntei a ele em quanto tempo esperava recuperar o investimento. Ele disse que em 25 anos empatava e depois começaria a ganhar dinheiro. Fiquei emocionado pela visão dele". Ricardo de Almeida
Ricardo de Almeida lembra ainda de uma frase inspiradora que o Dr. Murilo dizia para justificar tamanha ousadia naquela idade: “O senhor já viu a agricultura sem água? Sem água não há vida, nem vegetal, nem animal”. O empreendimento da barragem foi um sucesso e em 10 anos empatou o investimento aportado. Para ele, investimentos eram parte de uma disciplina que garantia futuro e resiliência ao setor.
UMA TRAJETÓRIA ENTRE OS NEGÓCIOS DA FAMÍLIA E A VIDA PÚBLICA
Filho de uma família profundamente ligada ao setor canavieiro, Armando Monteiro Filho cresceu entre o Recife e os engenhos de Sirinhaém. Formado em engenharia, iniciou sua vida profissional na Usina Cucaú, adquirida pelo pai, antes de ingressar na vida pública. Mesmo vocacionado para a política, Monteiro Filho nunca deixou de lado suas raízes empresariais. Segundo seus filhos, Eduardo de Queiroz Monteiro e Armando Monteiro Neto, ele foi o grande articulador da diversificação do grupo familiar que, antes, atuava apenas no setor sucroalcooleiro e passou a expandir-se para áreas como metalurgia, distribuição de veículos, aço e serviços financeiros, por meio do Banco Mercantil de Pernambuco.

Essa expansão não apenas modernizou segmentos estratégicos da economia estadual como também gerou milhares de empregos – o grupo chegou a empregar cerca de 12 mil pessoas. Essa diversificação, segundo Eduardo de Queiroz Filho, é uma das marcas da atuação do pai. Ele recorda que o negócio familiar, “nascido do setor açucareiro”, ganhou novo fôlego quando seu pai “trouxe ventos de modernidade” para uma atividade tradicionalmente conservadora. Decisões que ampliaram os horizontes e reduziram as vulnerabilidades nos negócios. Essa expansão, afirma Eduardo, não foi apenas estratégica: refletia a visão de um “empresário à frente do seu tempo”.
Como homem público e de negócios, construiu um legado marcado pela ousadia, inovação e compromisso social. Liderou projetos de grande impacto, como o plano rodoviário, que modernizou a malha viária pernambucana nos anos 1950, além de iniciativas pioneiras, como o regime de participação nos lucros dos funcionários do Banco Mercantil. Apesar de enfrentar adversidades, como a intervenção do banco e as pressões políticas durante a ditadura militar, Dr. Armandinho, segundo o filho Armando Monteiro Neto, manteve uma postura de coragem cívica e defesa da democracia, mesmo contra parte do empresariado local.
“Ele liderava empreendimentos pioneiros e ousados”, avalia Armando Monteiro Neto. “Era invariavelmente otimista e confiante, nunca esmoreceu. Foi o grande artífice da diversificação empresarial do nosso grupo, além de assumir riscos importantes ao se posicionar contra o regime autoritário”.

Mesmo tendo integrado o último governo antes do golpe militar, o Dr. Armandinho recebeu o convite para ser o ministro da Justiça durante a presidência interina do deputado Ranieri Mazzili, em 1964. Ele não apenas recusou como participou de várias eleições nos anos seguintes, seja como candidato ou apoiando candidaturas, no campo de oposição ao regime militar. Também foi um dos defensores do movimento pelas Diretas Já. Posicionamentos que guardam lições importantes para o avanço do autoritarismo no Século 21 e de muitas tentativas de enfraquecer à democracia.
QUESTÃO SOCIOAMBIENTAL NO RADAR DAS EMPRESAS E DA VIDA PÚBLICA
Como empresários do setor sucroalcooleiro, as condições climáticas sempre foram um desafio. Enquanto o mundo enfrentou nos últimos anos de forma mais incisiva os efeitos do aquecimento global, as atividades ligadas ao campo em Pernambuco passaram por vários períodos de secas mais severas que comprometiam a produtividade e ameaçavam os negócios.
Era nesses momentos de dificuldade mais intensa que aflorava uma característica de Murilo Tavares de Melo ressaltada pelo seu filho Gilberto Tavares de Melo: a capacidade de tomar decisões. O filho, que é atual presidente do conselho do Grupo Olho D’água, lembra de um pensamento do pai que explicava esse seu traço empresarial: “O problema não era para ser cultivado, era para ser resolvido na hora.”

Na longa trajetória, há uma decisão relacionada à uma grave seca vivida pelo grupo que exemplifica um pouco da filosofia empresarial por trás das decisões. Gilberto Tavares de Melo lembra que um dos períodos mais difíceis dos negócios foram nos anos de 1998 e 1999. Estava em discussão a possibilidade de não realizar o plantio naquele período, visto que a estiagem poderiam comprometer toda a colheita.
O empresário defendeu que a empresa deveria seguir em frente. E justificou a decisão: “Se a gente plantar, tem 50% de chance de dar certo. Se a gente não plantar, tem 100% de chance de dar errado”. A aposta, que era a alternativa para manter viva a chance de gerar renda e dignidade, deu certo. A decisão revelava não apenas um cálculo pragmático mas uma postura de coragem de não desistir diante das adversidades.
Além da resiliência empresarial diante dos períodos sem chuvas, a manutenção dessas atividades garantiam a movimentação econômica nas cidades em que esses negócios atuavam. Eduardo Monteiro menciona, por exemplo, uma seca enfrentada em 1993, na Usina Laranjeiras. Pela baixa das colheitas daquele ano, não seria rentável levar a usina a fazer a moagem da cana. Mas, ele recorda que seu pai manteve a indústria funcionando.
“Embora industrial, meu pai era um grande ator na relação com o setor primário, com os fornecedores de cana. Muitos diziam que não precisava moer a cana naquele ano, que era muito pouca, seria antieconômica. Mas, ele tomou a decisão de moer a usina, mesmo naquela seca tremenda, pois sempre teve visão de interesse público da sua atividade empresarial”, afirmou Eduardo Queiroz Monteiro.
Além dos esforços para a convivência com a escassez hídrica em uma atividade agrícola, um episódio desses centenários ficou para a história do Brasil: a articulação em defesa da atualização das leis ambientais, feita por Armando Monteiro Filho, durante sua breve passagem de 9 meses no Ministério da Agricultura. A professora da Universidade Federal do Amazonas e mestre em Direito Ambiental, Kátia Santos, registrou que “em 1962, o então ministro da Agricultura, Armando Monteiro Filho, reivindicou a reformulação da legislação florestal ao notar que o avanço indiscriminado sobre as matas têm impacto direto na agricultura”.
A historiadora Melissa Natividade escreveu em sua dissertação que o empresário defendeu uma reforma agrária que tinha como objetivo aumentar a produtividade da terra e humanizar o homem do campo. Em uma entrevista ao Diario de Pernambuco, em 1962, o então ministro declarou que “A reforma agrária, que se impõe como inadiável, é um movimento resultante do desajustamento social no País, tendo justificadamente promovido a mobilização da opinião pública, inspirada no anseio de melhoria pelo fantasma da fome e guardando o sentido de universalidade. Os problemas de alimentação estão agravados pelo anacronismo das estruturas agrárias, principal causa do descompasso verificado entre a agricultura e a indústria”.
O traço da preservação ambiental, inclusive, permaneceu nos grupos dirigidos pelos descendentes de Murilo Tavares de Melo e de Armando Monteiro Filho. Ambos detêm grandes reservas florestais de Mata Atlântica de abundante fauna e flora.
RESPEITO E CAPACIDADE DE OUVIR
A imagem do empresário do setor sucroalcooleiro tem sido relacionada a uma postura mais tradicional. Mas os relatos sobre o Dr. Murilo e o Dr. Armandinho são na direção contrária. Bem antes das diretrizes de gestão de pessoas estarem em voga nas empresas, ambos são lembrados pelo refinamento no relacionamento com seus colaboradores.
Ricardo de Almeida ressalta que apesar do estereótipo histórico que costuma cercar os grandes usineiros, Murilo Tavares de Melo construiu uma reputação de um líder marcado pela cortesia e pela educação no trato pessoal. “Era uma pessoa gentilíssima, fina no trato. De todos esses anos, nunca o vi levantar a voz para ninguém, mesmo nas situações mais tensas do dia a dia da usina”. Assertivo sem ser ríspido, firme sem ser autoritário, ele mantinha uma postura que combinava respeito e uma presença que inspirava confiança e admiração entre funcionários, parceiros e fornecedores.
Dr. Murilo era lembrado como um homem de rara simplicidade, alguém que mantinha os pés fincados no chão, mesmo liderando um grande empreendimento. O filho descreve um pai de bom senso firme, sempre guiado pela razão e pela clareza prática. Ele ouvia muito, chamava quem entendia do assunto, escutava com atenção e só então tomava decisões. Dentro da usina, cultivava um ambiente quase familiar, reforçando um jeito humano, próximo e respeitoso de conduzir as relações.
Sobre o Dr. Armandinho, a opção pelo diálogo era adotada inclusive com os adversários. Mesmo saindo derrotado de algumas eleições, o traço da polarização, tão presente na política contemporânea, não estava no seus costumes. “Era uma pessoa que respeitava os adversários e tinha uma convivência civilizada com eles. Quando enfrentou reveses, nunca se abateu, nunca transferiu culpa para outras pessoas”, relembra Armando Monteiro Neto.
A solidariedade é outra característica lembrada por Eduardo de Queiroz Monteiro. “Meu pai foi a figura humana mais interessante que eu conheci na minha vida. Um homem solidário e humano com todos na sua vida inteira”, ressaltou, destacando que “mesmo não tendo mandato, nunca deixou de ter uma vida pública política”.
A trajetória centenária de Murilo Tavares de Melo e Armando Monteiro Filho revela dois homens que, embora distintos em suas vocações, convergiram no compromisso com o desenvolvimento de Pernambuco. Suas histórias deixaram marcas que ultrapassam os limites dos engenhos, das usinas e dos gabinetes.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)
