*Por Rafael Dantas
O desordenamento do Centro do Recife é fruto de um quebra-cabeças que foi desmontado ao longo de décadas e por muitos motivos. Os esforços malsucedidos de modernização urbana, que afastaram as moradias e derrubaram até igrejas, aliados à popularização dos automóveis – que contribuiu para a saída de muitas atividades econômicas em direção a locais com estacionamento – levaram ao esvaziamento e à decadência da região. Na contramão desse abandono das áreas centrais, há um mosaico de iniciativas públicas e privadas, além de novos estudos e programas de financiamento, para tentar reativar principalmente os bairros de São José e Santo Antônio, que transbordam também para a Boa Vista.
A atividade econômica promovida pelas centenas de empresas do Porto Digital contribuiu para movimentar o bairro pioneiro da ocupação do Recife. A revitalização dos diversos armazéns e de muitos prédios para receber empresas tecnológicas criou um cenário difícil de acreditar há duas décadas no Bairro do Recife, mas ainda há muitos desafios a serem enfrentados nesta e em outras áreas da região. Porém, como tem repetido em diversas ocasiões o consultor Francisco Cunha, “o Centro do Recife tem jeito, sim!”
Uma das peças que contribuíram para remontar esse mosaico foi a instituição do Recentro, há dois anos e meio. O gabinete, dirigido por Ana Paula Vilaça, nasceu para refletir sobre uma melhor integração dessa área da cidade e promover a exploração sustentável de toda sua potencialidade. Muitas ações promovidas pelos agentes públicos e por investidores privados estão avançando nesse propósito e vários projetos começam a ganhar musculatura de realidade na região.
“Muita coisa avançou, desde a parte de infraestrutura, com muitas obras entregues, como a recuperação do Parque de Esculturas Francisco Brennand e as obras de drenagem da Rua da Concórdia, Rua Imperial e Avenida Sul, que estão na fase final. A obra do Mercado de São José está em andamento, além da reforma estrutural e o ordenamento do Camelódromo, na Avenida Dantas Barreto”, exemplificou a secretária Ana Paula Vilaça.
Para levar mais cores ao Centro, com o fomento da arte urbana, uma outra iniciativa municipal é a instalação de megamurais, principalmente na Boa Vista. O projeto, da Secretaria de Inovação Urbana do Recife, mobiliza artistas para promover intervenções artísticas em fachadas sem aberturas de edifícios de alta visibilidade na cidade. Sete imóveis já receberam o projeto e mais dois estão em andamento. Ao todo, serão 24 pinturas.
Apesar de haver um conjunto de outras obras do poder público na região, o apetite da iniciativa privada é um dos grandes motores no processo de revitalização. De acordo com a Perspectivas e Oportunidades Econômicas Centro do Recife 2024, recém-publicada pela Fecomércio e pelo Sebrae, menciona um estudo da UFPE que identificou 73 novos empreendimentos privados, sendo 40 deles classificados como habitacional, multifamiliar ou de uso misto. Esse levantamento considera como centrais os bairros da Boa Vista, Coelhos, Ilha do Leite, Paissandu, Recife, Santo Amaro, Santo Antônio, São José e Soledade.
“Temos recebido muitas propostas de procura de imóveis. Alguns estão sendo reformados pelos proprietários. Há muito otimismo do mercado privado em querer voltar realmente sua atenção para o Centro e buscar novas possibilidades. A equipe de atração de investimentos tem feito muitos atendimentos de pessoas interessadas na instalação de cafés, de restaurantes. Há uma movimentação efervescente”, afirma Ana Paula Vilaça.
TURISMO E EVENTOS PARA ANIMAR O CENTRO
Com edifícios de diversos períodos da história da capital mais antiga do País, que completará 500 anos em 2037, o turismo tem um papel relevante na recuperação desse território. Uma das peças no setor que está prestes a ser inaugurada é o Complexo Porto Novo, que abriga o Novotel Marina Recife e o Recife Expo Center, fruto do investimento de R$ 280 milhões. O empreendimento está sendo instalado no Cais de Santa Rita, no bairro de São José.
O equipamento hoteleiro, com 300 apartamentos e ocupação máxima estimada em 600 pessoas, tem previsão de início das operações para o dia 29 de julho. Já o Centro de Convenções, com capacidade de receber até sete mil visitantes, terá sua abertura no dia 6 de agosto com a estreia da feira Multimodal Nordeste 2024. Só neste evento é esperada uma movimentação econômica superior a R$ 150 milhões e mais de quatro mil participantes.
“Estimamos uma média de geração de empregos diretos para aproximadamente 300 pessoas durante as operações de todo o Complexo Porto Novo. Durante a construção, tivemos aproximadamente 450 postos de trabalho diretos. O número, no entanto, tende a ser muito superior quando contabilizamos também os indiretos, os terceirizados durante a operação de feiras, eventos e convenções. Isso porque entendemos que são equipamentos que irão beneficiar indiretamente toda a cadeia produtiva do turismo, há uma infinidade de profissionais que serão impactados com a inauguração e operação do Complexo”, afirma o investidor do Porto Novo e sócio da Maxxima, Romero Maranhão Filho.
O empreendedor explica que o projeto do Complexo foi concebido não apenas como uma intervenção na paisagem urbana, mas como uma oportunidade de valorizar toda a área circundante do Centro do Recife. “Com este investimento acreditamos que podemos dar mais um impulso para o renascimento da região, pois sabemos que é uma área com um potencial enorme a ser explorado”, destacou Romero Maranhão Filho. Ele lembra que o navegador Amyr Klink considerou o local como ideal no Nordeste para uma marina de classe internacional.
“Além disso, o Recife ainda não possuía um Centro de Convenções, então, resolvemos criar um novo equipamento nessa área da cidade, que estava totalmente carente de tudo e percebemos que teríamos condição de construir um espaço que pudesse atender tanto o público local quanto eventos nacionais e internacionais. Acreditamos que haverá um impacto significativo na economia local, gerando empregos, atraindo investimentos e fomentando o turismo, marcando, assim, um novo capítulo na história da cidade”, declarou Maranhão Filho.
Além do Complexo Porto Novo, há outros empreendimentos, como a construção do Motto by Hilton, localizado na Rua da Guia. Com aporte de R$ 30 milhões, ele tem previsão de gerar 250 empregos e ser concluído no segundo semestre do próximo ano. Outra operação de destaque é o Moinho Recife Business & Life, um retrofit emblemático no Bairro do Recife, que tem uma atividade corporativa, com escritórios de grandes empresas, mas abriga também um dos restaurantes em alta da cidade, o Moendo na Laje, com uma vista privilegiada da cidade.
A CasaCor Pernambuco é outro player importante na revitalização do Centro. Após recuperar o histórico edifício do Chanteclair, no Bairro do Recife, onde realizou sua tradicional mostra de arquitetura, design de interiores e paisagismo, neste ano, ela chegará a um novo edifício do Centro: o Palazzo Itália, localizado na Rua Vigário Tenório com a Av. Alfredo Lisboa, que possui duas fachadas. Serão 45 dias de mostra numa área recuperada de 2,8 mil metros quadrados. São quase mil metros a mais que no ano passado. O Chanteclair, inclusive, tem a expectativa de receber uma operação em breve, ainda não anunciada.
Em paralelo às novas estruturas, há um conjunto de eventos mensais promovidos pelo poder público ao longo do ano para animar a região, como no projeto Viva Guararapes, que promove entretenimento e lazer na Avenida Guararapes. O Recentro expandiu essa iniciativa para o Viva o Centro, levando os eventos para outras vias estratégicas para a região, como a Rua Imperatriz e a Rua Nova.
MAIS ESTUDANTES NO CENTRO
Uma das peças recém-anunciadas no mosaico de reconstrução do Centro do Recife foi a instalação do IFPE (Instituto Federal de Pernambuco) nos prédios dos cinemas Trianon e do Art Palácio. Os edifícios foram desapropriados pela Prefeitura do Recife nesta semana.
“O Edifício Trianon e o Cine Art-Palácio agora pertencem ao Recife e vão passar a ser o Instituto Federal, no centro da cidade. Em seguida, vamos doar os edifícios ao Ministério da Educação e, com isso, o MEC vai ser responsável pelas obras. Serão mais de 1.400 alunos, além da reabilitação da sala de audiovisual, que será usada como auditório do Instituto e sala de cinema. Todos vão ganhar com essa ação, principalmente o Recife, com os prédios preservados para um fim tão nobre como a educação”, destacou o prefeito João Campos, no anúncio da desapropriação.
Além do uso educacional, a operação restaura a vocação cultural desses prédios que ocuparam no passado grandes cinemas da cidade. Os espaços em que funcionam essas salas – que levaram tantos pernambucanos a se emocionarem em frente às telonas – serão usados para formação técnica e para atuar no efervescente setor audiovisual da cidade, que é um dos polos de referência do cinema nacional. Os investimentos para a implantação da unidade fazem parte do novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC).
Ainda no Centro, mas na Avenida Dantas Barreto, o Sistema Fecomércio tem também um grande investimento educacional em curso. São R$ 60 milhões na estruturação de um Centro de Saúde do Senac. A unidade receberá diariamente entre duas e três mil pessoas para as formações. “Temos o segundo polo médico do País e vamos oferecer vários treinamentos referentes à saúde, como cursos de enfermagem, técnicos de enfermagem e laboratoristas. Vamos construir mais uma boa escola para movimentar o Centro do Recife”, afirma o presidente do Sistema Fecomércio, Bernardo Peixoto.
A previsão de inauguração da operação dessa nova escola é entre 2025 e 2026. Além dessa unidade, o Sistema Fecomércio está investindo mais de R$ 25 milhões no Centro Cultural do Sesc Santo Amaro e reformando os prédios do Senac da Avenida Visconde Suassuna, também em Santo Amaro. Ao todo, apenas no Recife, a organização está investindo mais de R$ 100 milhões, principalmente nos bairros centrais.
“Estamos fazendo a nossa parte para revitalizar o Centro do Recife, capacitando pessoas e fazendo todo o possível para contribuir com o crescimento dos comerciários e empresários. Recentemente embarcamos também no Porto Digital, com equipamento do Senac, fundamos uma incubadora de startups”, informou Bernardo Peixoto.
MAIS MORADIAS E DINÂMICA DE BAIRRO NO CENTRO
As novas estruturas corporativas, turísticas e de educação não são as únicas novidades nessa região da cidade. O Centro também é alvo de iniciativas de moradia. No final do ano passado, foi entregue pela Prefeitura do Recife o Habitacional Sérgio Loreto, no Bairro de São José, para pessoas que moravam na Comunidade Roque Santeiro, nos Coelhos. Muitas dessas famílias residiam em palafitas. Na Comunidade do Pilar, no Bairro do Recife, entre o final deste ano e o início de 2025 devem ser entregues mais 256 unidades habitacionais.
Além desses imóveis, há ainda o projeto Morar no Centro, a primeira Parceria Público-Privada de Locação Social do País. Tem o objetivo de promover o retrofit de edifícios esvaziados para atenderem a demanda de moradia da cidade. De acordo com os informes do site da Prefeitura do Recife, serão quatro empreendimentos de locação social e dois destinados à população de baixa renda e ao mercado popular, com a expectativa de gerar 1.128 unidades habitacionais. Após os estudos iniciais e a audiência pública, o projeto está em fase de análise do Tribunal de Contas do Estado antes de entrar em licitação.
Há um conjunto de imóveis de alto padrão em construção por investimento privado do Cais José Estelita e também em Santo Amaro, nas proximidades da Rua da Aurora. Além disso, os próprios empreendimentos hoteleiros trarão mais pessoas para vivenciar o Centro, com centenas de leitos voltados para os visitantes da cidade.
“A habitação é uma das grandes demandas para o Centro se tornar mais dinâmico, mas isso não é suficiente. É um elemento fundamental, mas é preciso promover uma dinâmica de bairro. Para isso, é importante, por exemplo, que esses imóveis atendam a classe trabalhadora que vive e trabalha nessa região. Esses bairros não podem viver só de eventos e da ocupação turística”, alertou a geógrafa Mariana Zerbone, professora do departamento de história da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Ensino sobre o Recife (RecLab).
Outro destaque da pesquisadora é para o fato de que não há apenas um Centro. Cada bairro que compõe essa região têm dinâmicas próprias que precisam ser compreendidas. São José, por exemplo, tem uma intensa atividade comercial popular. Há equipamentos de lazer e serviços estratégicos em todos os bairros que atraem um fluxo natural que precisam ser analisados para que se articule até eles a moradia, a mobilidade e a segurança.
Mariana Zerbone defende ainda um olhar atento ao planejamento do Centro para a atividade comercial e de serviços. Apesar de todo o potencial da região, ela considera que o Recife não tem o turismo como atividade central que garante a dinâmica urbana, como é o caso de algumas grandes cidades europeias. Um dos aspectos estratégicos para a retomada das movimentações típicas de bairro, além do turismo, é garantir a segurança pública. Um levantamento do Instituto Fecomércio de 2023, revelou que 87% dos entrevistados citaram os temas relacionados à segurança como os principais entraves do desenvolvimento da região.
A pesquisadora ressalta ser uma queixa constante mesmo de quem passa nos bairros centrais apenas para passeio ou para os eventos, com registros de assaltos e até espancamentos. Ela avalia que o uso de alguns equipamentos de lazer recuperados no Recife, como o Teatro do Parque, em 2020, e as praças, por exemplo, acabam sendo prejudicados por isso e também pela dificuldade de boas opções de mobilidade para a região.
“Garantir a segurança pública é crucial seja para quem for morar ou tiver a intenção de visitar o Centro para participar de eventos. A requalificação urbanística sem segurança pública, mesmo para a atividade turística, é muito complicada. Outro ponto fundamental já identificado há algum tempo diz respeito à mobilidade urbana naquela área. A retirada de alguns pontos de ônibus, por exemplo, esvaziou locais específicos do Centro, reduzindo fluxos que atendiam o comércio. Essa articulação dos bairros centrais é muito precária e tem a ver com mobilidade, vigilância e segurança”, considera Mariana Zerbone.
QUALIFICAÇÃO DE CENTRALIDADES E A MOBILIDADE
Uma das novidades do ano no Recife foi a revitalização da Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista. Um novo espaço público no horizonte de transformações será o Cais José Estelita. Após um acordo entre a Prefeitura do Recife e a Advocacia-Geral da União, o poder municipal pode incorporar o antigo Pátio Ferroviário das Cinco Pontas ao projeto de requalificação do dessa região, que resultará no dobro de destinação à área pública, atingindo aproximadamente 100 mil metros quadrados.
No anúncio, João Campos destacou ainda a inclusão da preservação da memória ferroviária em um investimento de R$ 20 milhões. “Este projeto também vai viabilizar a criação de uma alameda que ligará a Avenida Dantas Barreto à avenida do Cais José Estelita e à Bacia do Pina, facilitando o acesso à via que desemboca na Ponte Joaquim Cardoso”.
Há um outro projeto relevante de mobilidade para essa região, que é a chegada dos VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos) ao Bairro do Recife. No projeto desenhado pela CBTU (Companhia Brasileiros de Trens Urbanos), a nova linha deve sair da Estação Largo da Paz até o Terminal Marítimo de Passageiros, em um percurso de mais de 5,6 quilômetros e investimento previsto de R$ 200 milhões.
A modelagem do sistema é inspirada no VLT Carioca que contribuiu significativamente para a mobilidade e a dinâmica urbana do Centro do Rio de Janeiro. Por se tratar de uma área turística, com vários equipamentos ao longo dessa linha, o projeto atende tanto o público trabalhador que segue para a região central da cidade, como os visitantes do Recife Antigo.
Para que esse projeto possa permanecer no horizonte de realizações para a construção de uma nova dinâmica do transporte público no Centro do Recife, a superintendente da CBTU-Recife Marcela Campos alerta ser preciso garantir a preservação da área dos trilhos. “É um projeto viável e fundamental para a mobilidade urbana no Recife. Deixamos claro desde o início (quando foi anunciado um parque para a região) que não temos interesse na exclusividade da área. A gente mostra que é possível um compartilhamento, mas há alguns espaços que são estratégicos dentro do projeto”, afirmou.
No projeto inicial, são previstos três VLTs para operar o trecho, com intervalos de 15 minutos. O custo operacional é bem reduzido em relação ao metrô, por exemplo, porque precisará apenas de pequenas estações ou mesmo paradas (tipo tótens mecanizados) entre 300 e 600 metros.
O estágio atual do empreendimento é de garantir que seja preservada a linha para não inviabilizar a passagem do VLT. Sem a necessidade de desapropriações e com uma alta demanda já mensurada para a região, há uma atratividade operacional garantida no trecho segundo a superintendente. Além disso, a operação das composições tem uma preocupação com a sustentabilidade ambiental e devem ser movidas por um sistema híbrido, parte elétrico e parte à combustão.
PLANO DE LONGO PRAZO É FUNDAMENTAL
Apesar dos diversos investimentos nas regiões centrais, é necessária articulação entre eles e as atividades já estabelecidas nesses bairros. A conexão com toda a região metropolitana, o controle urbano e a segurança pública adequados a um ambiente histórico como o Centro do Recife não vão acontecer sem um planejamento de longo prazo que oriente a transformação da cidade e garanta a sustentabilidade dessa dinâmica.
No segundo semestre está prevista a apresentação do plano O Centro do Recife – Na Rota do Futuro (Plano Estratégico para a Área Central da Capital mais Antiga do Brasil). O documento está sendo elaborado pela Aries (Agência Recife para Inovação e Estratégia), que tem como consultores masters o economista Sérgio Buarque e o urbanista Washington Fajardo. A agência foi responsável também pela elaboração do Plano Recife 500 anos.
A remontagem das peças do quebra-cabeças em uma cidade funcional para seus habitantes e atrativa para os turistas segue como um desafio. Mas é inegável que as peças estão se movendo. Vários estudos estão sendo lançados ou em desenvolvimento. Alguns novos projetos estão sendo apresentados. Após algumas décadas de pouquíssima expectativa, luzes de esperança vão se acendendo rua a rua no Centro do Recife.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais. Assina ainda as colunas Gente & Negócios e Pernambuco Antigamente (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)