Pernambucanos que moram ou visitam o País asiático contam como se surpreenderam com a eficiência dos transportes e da segurança pública, falam da cordialidade do povo chinês e da disposição do País de fazer trocas com o mundo, e que Pernambuco pode aproveitar essas oportunidades.
*Por Rafael Dantas
Com a segunda maior população do mundo, recém-ultrapassada pela Índia, e caminhando para superar a economia americana, a China avança para assumir um papel cada mês mais global com o plano One Belt, One Road, a conhecida Nova Rota da Seda. O gigante asiático há anos já é o maior parceiro comercial do Brasil. Pernambuco, no entanto, apesar de abrigar o Consulado Chinês no Nordeste, tem ainda um intercâmbio tímido de negócios e trocas culturais. Para indicar oportunidades que poderiam estar no horizonte do Estado e para desvendar um pouco do mistério desse País, por trás das suas muralhas, a Algomais traz nesta edição os olhares de quatro pernambucanos que moram ou passaram recentemente pelo solo chinês.
Um primeiro aspecto para tentar compreender o gigante asiático é que existem “várias Chinas” dentro do mesmo País. Se no Brasil, a vivência e a dinâmica entre as regiões – e mesmo dentro dos Estados – são muito distintas, isso não é diferente do lado de lá. Uma unanimidade no olhar dos pernambucanos Gilberto Freyre Neto, João Cumarú, Dayvid Almeida e Emanuel Leite é da recepção muito acolhedora do povo chinês ao estrangeiro. Mas não foi a única. A eficiência dos transportes, a segurança pública e a abertura para fazer trocas com o mundo, gerando um universo de oportunidades, são alguns aspectos que saltaram aos olhos desses visitantes.
“Culturalmente somos muito diferentes. O idioma se torna uma barreira. Mas um componente que é admirável do povo chinês é a receptividade e a abertura que eles têm de tentar nos compreender e também se fazerem entender”, explica o pesquisador associado e professor da International College of Football, da Universidade de Tongji, em Xangai, Emanuel Leite. O docente conta que mesmo quando os chineses não dominam o inglês, eles usam aplicativos de tradução e fazem todo o esforço para estabelecer a comunicação.
A receptividade e, inclusive, a abertura nas reuniões de apresentação de negócios também surpreenderam o consultor Gilberto Freyre Neto, que é ex-secretário de Cultura e ex-secretário-executivo de Relações Internacionais de Pernambuco. Ele esteve duas vezes neste ano na China para participar de workshops de formação, com visitas técnicas. A primeira foi patrocinada pelo governo chinês, focada em comércio exterior para países de língua portuguesa. A segunda, por meio de um programa de sustentabilidade do BRICS PartNIR Innovation Center (Centro de Inovação de Parcerias do BRICS).
“Eu me senti extremamente acolhido pelo chinês, com toda dificuldade da diferença cultural. Fui muito protegido por eles. Não só por aquele que me recebeu, mas também pelos que estavam transitando na rua e não tinham ideia de quem eu era e que me viam ‘perdido’. Chegavam com um tradutor, perguntavam se estava precisando de ajuda. Eles nos colocavam dentro de um táxi e, às vezes, chegavam a pagar a corrida. Isso aconteceu mais de uma vez”, conta, surpreso, Gilberto Freyre Neto, que esteve em diferentes cidades da província de Fujian, que fica no sudeste da China.
TERRA DAS CIDADES DO PASSADO E DO FUTURO
O designer Dayvid Almeida recebeu no ano passado um convite pelo Linkedin convidando-o para uma seleção para uma empresa do exterior. Meses depois, ele embarcava para o sudeste da China, para Xangai. O pernambucano atua, hoje, como designer de exterior de automóveis da startup chinesa Jiyue, que integra o grupo Geely, dono de empresas como a Volvo e a Lotus.
O gigante asiático não estava nos planos e nem nos sonhos do pernambucano. Mas a oportunidade bateu na porta dele. Se havia alguma desconfiança de como seria a vida na China, a vivência o surpreendeu. “Tem tanta coisa boa pra falar da China, tantas experiências bacanas! No quesito de semelhança cultural com Pernambuco, é um país rico de tradições folclóricas. Festivais como o Barco do Dragão (uma competição de barcos nos rios do País) e o Ano Novo Chinês são uma demonstração da riqueza de tradições milenares. O contraste entre prédios ultramodernos e templos milenares num mesmo local também surpreende. Sinto uma certa semelhança com o Recife Antigo, um sítio histórico que tem referência em desenvolvimento digital”.
A diferença das cidades do futuro planejadas com condomínios de arranha-céus, conectados com a mais avançada tecnologia do mundo, com os tradicionais vilarejos que vivem da agricultura no interior chinês foi percebido por Gilberto Freyre Neto. Em suas incursões fora do circuito oficial, ele percebeu a preocupação do País na manutenção das atividades rurais, com forte associação ao turismo mais tradicional e à sustentabilidade dessas regiões que se afastam um pouco das metrópoles.
“São territórios ricos culturalmente que têm tradicionais plantações de chá ou arroz, por exemplo. Eles vão contar a história do chá ou do arroz a partir daquele município. Existe um pequeno centro de referência, quase um museu, em que conta a narrativa de como o desenvolvimento econômico chegou naquele município, qual foi o papel da governança e o que o Partido Comunista desenvolveu para desdobrar essa estratégia de desenvolvimento em ações práticas, como a comunidade se apropriou da política, como o turismo entra nesse circuito”, explica o consultor, que visitou vilarejos de até 500 quilômetros distantes do seu roteiro oficial na cidade de Xiamen.
Ele descreve um cenário em que a agricultura tradicional permanece, mas com uso de tecnologia. Um ambiente limpo e preservado, em que os rios são o habitat das carpas, uma espécie muito sensível à poluição. Com construções milenares ainda ativadas (como os tulous, residências comunitárias tradicionais, em configuração circular ou quadrangular), seja para atividades econômicas, moradia ou para visitação, em conexão como o turismo local.
Se o respeito às tradições e culturas milenares são fatores notáveis nesse olhar dos pernambucanos no território chinês, a eficiência do transporte que conecta o País continental foi mencionada por todos. Ninguém deixou de comentar sobre o metrô, com alta capilaridade no País e velocidade de dar inveja mesmo aos países mais desenvolvidos do mundo.
O pesquisador João Cumarú, mestrando em Política e Diplomacia Chinesa na Universidade de Fudan, em Xangai, passou cinco meses neste ano no país asiático, onde desenvolveu estudos sobre sustentabilidade. Anteriormente, em 2019, esteve em uma missão na mesma província, a convite do Consulado Chinês, quando trabalhava para o Governo de Pernambuco. Além da segurança de transitar pelas cidades do País, a facilidade na locomoção é algo de alto impacto na qualidade de vida do povo chinês e que ele sente falta no Brasil.
“Eu voltei dizendo que ia sentir falta de duas coisas: a segurança, que é incrível, e o transporte. O metrô de Xangai é maravilhoso, impecável. Poucas vezes eu andei de carro lá. Eu tinha a opção de pedir táxi, mas poucas vezes usei. O metrô cobre a cidade toda, é um preço acessível. Uma vez cheguei a ir de Xangai para uma cidade que tinha uma distância entre o Recife e Tamandaré (cerca de 100 km). Devo ter pago uns R$ 30 e fiz o trajeto em 25 minutos. Há um sistema de bike também, que é muito bom, em que você pode pegar a bicicleta e deixá-la em praticamente qualquer lugar após o uso. Então, basicamente, eu me locomovia de bicicleta ou pelo metrô”, relata o pesquisador.
Para João Cumarú, há dois elementos da cultura chinesa que ajudam a explicar a distância tão grande entre esses feitos que diferem do Brasil: o planejamento e a coletividade. “Estamos tratando de um País em uma sociedade muito complexa, que tem a complexidade construída ao longo de séculos, de uma civilização milenar. É interessante quando a gente observa o senso de coletividade que existe na sociedade chinesa, que eu diria que é algo que existe em algumas sociedades asiáticas. Muitos especialistas falam que foi esse senso de coletividade que conseguiu segurar a onda no início da pandemia”.
PLANEJAMENTO, INTERNACIONALIZAÇÃO E OPORTUNIDADES
“Planejar faz parte da cultura deles. A China hoje é uma exímia planejadora”, destacou Gilberto Freyre Neto. “Eles não são de desistir no meio do caminho. Para atingir um determinado objetivo eles fazem o planejamento, começam a execução, se existir alguma coisa que os forcem a um novo planejamento, vão parar, replanejar e continuar”. De forma humorada, o consultor diz que o programa One Belt, One Road é um plano para mais 1,5 mil anos, em referência ao período que durou a antiga Rota da Seda, interrompida com a queda do Império Bizantino, em 1453. O ambicioso projeto de infraestrutura e desenvolvimento para promover a conectividade econômica por meio da construção de rotas terrestres e marítimas e cooperação internacional é um dos sinais do novo posicionamento que o país planejou para a sua relação com o mundo.
“O que me surpreende é estar no nível em que está e nunca ter contado nada a ninguém. E agora está contando para as pessoas. O fato de eu estar indo para a China em dois cursos e ter acesso a essas informações é uma mudança de comportamento da China. A China quer fazer mais parte do mundo do que a gente acredita”, disse Gilberto Freyre Neto.
O professor Emanuel Leite, por exemplo, estuda o Plano de Desenvolvimento de Médio e Longo Prazo do Futebol na China. Não é por acaso. O país pretende avançar no esporte mais popular do mundo, que cresceu muito no interesse do povo chinês nos últimos anos. O longo prazo desse documento é outro fator que impressiona: 2016-2050. Um horizonte que é esportivo, mas também de negócios e da diplomacia.
“Embora o futebol não seja o esporte mais popular na China, mas já é extremamente popular aqui, especialmente entre os esportes coletivos. Uma pesquisa da Nielsen Sports, de 2017, apontou que 237 milhões de chineses colocavam o futebol como seu esporte favorito. Isso significa que o maior mercado consumidor do futebol do mundo é a China. O país identificou uma perspectiva no futebol, por ser a maior indústria global dentro do setor esportivo e que precisa criar o hábito de consumo e da prática do esporte para termos uma seleção forte a médio e longo prazo”, afirma o autor, que lançou o livro China, Football and Development: Socialism and Soft Power.
Pesquisador na área esportiva, o docente avalia que há oportunidades de intercâmbio promissoras entre o futebol pernambucano e o chinês. Mas os pontos de contato potenciais do Estado com o Gigante Asiático são muito maiores. “Eu acho que Pernambuco ainda está muito aquém do que poderia ser das relações com a China. A China já é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009, já vai fazer 14 anos, e este ano vai ser de novo. O país tem muito interesse em vários setores no Brasil e a perspectiva cultural deles é de que a China só vai ser próspera se todos forem prósperos. Porque chega um momento em que não tem como ser um país hiperdesenvolvido e conseguir manter esse nível se os seus parceiros não conseguem manter também o nível de desenvolvimento”.
Com a Nova Rota da Seda, o país asiático tem grande interesse em investimentos em infraestrutura. Na perspectiva de Emanuel Leite, tanto o Porto de Suape como a Transnordestina poderiam ser portas de entrada para investimentos mais robustos chineses no Estado, além de ser porta de saída para exportação de mais produtos pernambucanos. “A ferrovia Transnordestina, que até hoje não está saindo do papel, seria fundamental para poder exportar produtos por Suape. Mas Pernambuco parece estar ainda um pouco de costas para esse potencial de relação com a China”.
Apesar da concentração de investimentos chineses estar no Sudeste do País, ele avalia que mesmo estando no Nordeste, Pernambuco está atrasado em relação aos nossos Estados vizinhos, que têm sido mais ousados em se aproximar da China. Além da infraestrutura, ele destaca que há grandes oportunidades em áreas como tecnologia, em referência direta ao Porto Digital, no setor de saúde, devido ao pujante polo médico do Recife, e também no fornecimento de alimentos, devido à grande demanda chinesa, especialmente por proteína animal. “Pernambuco tem um setor muito forte de avicultura. Tem uma forte produção de ovos também e os chineses consomem muito ovo. Ainda no setor de alimentos, nós temos no Estado empresas como a Tambaú, que poderiam exportar para a China também”.
Além das empresas, há um conjunto de oportunidades para os profissionais que desejam experimentar o mercado asiático, como Dayvid Almeida. “A China é uma das portas de entrada na indústria para mim. Os profissionais brasileiros são bem valorizados em qualquer lugar do mundo, porque viemos de uma realidade que não é fácil e damos um ‘gás extra’ para executar as tarefas. Sempre ouço bons comentários aqui sobre como as pessoas enxergam os profissionais do Brasil. A China é um grande início para mim. Xangai é uma Nova Iorque da Ásia, uma cidade que liga o Ocidente e o Oriente”, afirmou o designer que pretende, no futuro, ter outras experiências profissionais na Europa e na América.
SUSTENTABILIDADE
De acordo com João Cumarú, uma das apostas do país no seu planejamento atual é sobre a transição da matriz energética, além de outras agendas que estão no centro do debate da sustentabilidade atual do Planeta. “A expectativa da China no planejamento dos planos estatais e dos congressos do Partido Comunista é de emitir menos gases poluentes nos próximos anos”, afirmou o pesquisador. Esse cenário de redução das emissões já foi previsto pelo Centro de Pesquisa sobre Energia e Ar Limpo – um think tank com sede na Finlândia, focado em energia e mudanças climáticas – para o próximo ano. “A matriz chinesa ainda tem muita dependência do carbono e ela é gigantesca. Mas a transição está acontecendo”.
Ele considera que Pernambuco e os demais estados brasileiros têm oportunidades na agenda de sustentabilidade chinesa em quatro áreas. “A China tem liderado duas políticas que andam juntas, a política florestal e a política de conservação da biodiversidade”, disse Cumarú. Ele ressalta que o país tem recuperado muitas de suas terras, tanto por reflorestamento, como tornando-as agricultáveis de novo.
O terceiro destaque é para a política energética, com um grande avanço no mercado de carbono. “Vale conferir como o governo tem atuado nesse mercado, que já está regulado no país. Além disso, há um outro ponto que favorece o Nordeste que é a questão do hidrogênio verde. O Ceará está partindo disparado nessa área”. O pesquisador ressalta ainda as práticas de digitalização das grandes cidades. “Como isso pode ser aplicado para práticas sustentáveis? Acho que a gente pode olhar também para a política de resíduos sólidos da China nas grandes cidades. Existem várias práticas nesse sentido que a gente está tentando observar do ponto de vista ambiental para trazer para Pernambuco”.
No campo da sustentabilidade, Gilberto Freyre Neto destaca ainda a resiliência das cidades aos eventos extremos do clima. Durante sua incursão pelo País, ele vivenciou a passagem de um tufão em Fuzhou, onde estava hospedado. Após a cidade receber em poucas horas 200 milímetros de chuva e a água arrastar carros nas avenidas, no outro dia, as ruas estavam totalmente limpas e organizadas, como se nem tivesse ocorrido o desastre. Além de possuir um serviço robusto de monitoramento do clima e de comunicados pelo celular para a população, após 24 horas da passagem da chuva todos os serviços da cidade estavam funcionando normalmente.
As surpresas e lições dos pernambucanos na China sinalizam os movimentos que o gigante asiático já realizou nas últimas décadas e que planeja décadas à frente. Uma trajetória que Pernambuco precisa conhecer mais para aproveitar as oportunidades que já estão sendo perseguidas por outros Estados brasileiros.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)