Cicatrizes Invisíveis: A Busca Por Harmonia E Autenticidade - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
Cicatrizes invisíveis: a busca por harmonia e autenticidade

Revista Algomais

*Por Murilo Vasconcellos

Imagine uma cena: um soldado volta da guerra com o rosto desfigurado e, ao se ver no espelho, mal reconhece o próprio reflexo. Um cirurgião plástico o opera, restituindo traços que ele acreditava ter perdido para sempre. Para a sociedade, esse soldado é uma “vítima” que precisa de uma segunda chance, e o médico que o reconstrói é visto como um verdadeiro herói. Mas, e se a história fosse um pouco diferente? E se, no lugar de um soldado, fosse uma pessoa comum, alguém como você, ou seu vizinho, que deseja corrigir algo que o incomoda profundamente, ainda que outros considerem um detalhe? O que diferencia uma cirurgia que vemos como "necessária" de uma que consideramos "supérflua"?

A verdade é que, por trás de cada decisão de buscar uma cirurgia plástica, seja ela reconstrutiva ou estética, há uma história — e talvez seja hora de revisitar essa linha tênue entre o que julgamos necessário e o que chamamos de fútil.

A cirurgia plástica tem uma origem antiga e poderosa. É interessante lembrar que os primeiros registros de técnicas cirúrgicas para restauração física vêm do Egito Antigo, há cerca de quatro mil anos. No entanto, o termo "plástica" deriva do grego plastikos, que significa "moldar" ou "dar forma". Desde então, esse "moldar" tem ultrapassado questões de aparência e adentrado profundamente o campo da identidade e da essência humana. Durante a Primeira Guerra Mundial, as técnicas reparativas de cirurgia plástica passaram a ser desenvolvidas para tratar soldados feridos, restaurando funções e formas de seus corpos. Para eles, essas cirurgias eram nada menos do que um retorno à vida.

Avançando algumas décadas, chegamos aos dias de hoje, quando essa especialidade permite que milhares de pessoas, todos os anos, realizem intervenções que transformam sua relação com o próprio corpo e, mais importante ainda, com o próprio ser. O conceito de cirurgia plástica, que um dia foi associado quase exclusivamente à reparação de traumas, expandiu-se. Hoje, ele abrange também a possibilidade de corrigir características que, para quem convive com elas, são verdadeiras “cicatrizes” emocionais, uma fonte de desconforto diário.

Mas a sociedade ainda parece ter uma espécie de “hierarquia” moral quanto à cirurgia plástica. Quando se trata de um trauma visível, como uma queimadura ou uma deformidade, é fácil para muitos entender o impacto da cirurgia. Mas e quando essa cicatriz não é física e, sim, uma percepção? Uma assimetria no rosto, uma cicatriz de acne, um desvio na estrutura do nariz — para quem vive com essas características, o impacto emocional pode ser tão significativo quanto o de uma lesão adquirida em um acidente. E, no entanto, ainda há quem julgue essas cirurgias com desdém, como se fossem apenas “caprichos” estéticos.

A verdade é que, em ambos os casos, estamos lidando com algo muito mais profundo: a necessidade de nos sentirmos completos e em harmonia com a nossa imagem. O que a cirurgia plástica moderna oferece não é apenas um tratamento físico, mas uma chance de resgatar a autoestima, a segurança e o bem-estar emocional que se perde quando não estamos em paz com nossa aparência. Esse "reparar" ou "corrigir" toca na essência do que nos faz sentir autênticos e confiantes.

Como cirurgião plástico, vejo pacientes que chegam ao consultório carregando histórias emocionais, expectativas e, muitas vezes, anos de insatisfação silenciosa. Para eles, a cirurgia é uma ferramenta de libertação, uma oportunidade de se reconciliar com a imagem no espelho. E para esses pacientes, o efeito transformador é muito mais do que um nariz mais reto ou uma pele mais lisa. É a chance de viver com autenticidade, de deixar de se esconder, de estar confortável em sua própria pele.

É preciso compreender que o impacto psicológico de uma cirurgia que “corrige” algo estético pode ser tão intenso e transformador quanto o de uma cirurgia reconstrutiva. Estudos psicológicos mostram que a autoestima e a saúde mental estão intimamente ligadas à maneira como nos vemos e ao quanto estamos em sintonia com a nossa imagem. Ignorar essa relação é minimizar o impacto real que uma “imperfeição” pode ter no cotidiano de uma pessoa. Quantas vezes, por exemplo, uma orelha proeminente leva uma criança ou adolescente a sofrer bullying? Ou uma cicatriz no rosto leva alguém a evitar fotos, espelhos, encontros?

No fundo, estética e reconstrução são duas faces de uma mesma moeda. O que buscamos é oferecer às pessoas a chance de se sentirem inteiras e felizes consigo mesmas. A beleza, afinal, é uma construção pessoal e única. O que pode parecer um detalhe insignificante para alguém, pode ser um peso imenso para quem convive com isso diariamente.

No meu trabalho, vejo que a cirurgia plástica oferece uma nova visão de si mesmo. Não é sobre alcançar um padrão ou uma perfeição inalcançável. É sobre criar uma versão autêntica e confortável de quem somos. E isso é libertador. É um ato de autocuidado e um passo em direção a uma vida mais leve.

Estamos vivendo uma nova era da cirurgia plástica. O foco está menos na aparência e mais no bem-estar que ela proporciona. Que possamos todos compreender e acolher essa busca por autoconfiança, sem julgamentos, pois a verdadeira beleza não está apenas no reflexo, mas na paz que sentimos ao nos olharmos e nos reconhecermos.

Murilo Vasconcellos é  cirurgião plástico, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

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