Clóvis Cavalcanti, pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco e professor da UFPE não gosta do termo “retomada econômica verde”. Para ele o que é preciso é uma mudança de paradigma de desenvolvimento. Nesta entrevista concedida à Revista Algomais, o presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco) e ex-presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica fala sobre a relação entre a atual crise com o impacto ambiental promovido pelas atividades produtivas e sugere algumas alternativas para mudar o rumo. Ideias que não são apenas suas, mas que já ganharam força na academia, no meio empresarial e até político.
A atual crise econômica e sanitária teria raízes no modelo de desenvolvimento econômico atual, de alto impacto no meio ambiente e na maioria dos setores ainda sem ser caracterizado pela sustentabilidade ambiental?
CLÓVIS CAVALCANTI – Penso que sim. Em 1992, um grupo de cientistas fez um alerta a esse respeito em edição da revista científica BioScience. Repetiu-o, atualizado, 25 anos depois, em 2017, na mesma BioScience. São usados dados de pesquisas respeitáveis. O grupo de cientistas que elaborou esses avisos está indicado no site ScientistsWarning.org, que atua em cooperação com a Alliance of World Scientists. O elenco de nomes envolvidos nessa iniciativa inclui mais de 70 por cento dos detentores vivos de Prêmio Nobel das ciências. Daí por que, confio no que grupo tão respeitável argumenta. A percepção é de que o paradigma de desenvolvimento dos países ricos só poderia culminar, por motivo de uma percepção ecológica do fenômeno, em colapso do ecossistema global.
De fato, como o sistema econômico exerce dupla pressão sobre o meio ambiente (suga recursos – alguns deles inequivocamente esgotáveis, como é o caso do petróleo – e joga na natureza a todo instante a sujeira que, em derradeira instância e do ponto de vista termodinâmico, resulta de tudo o que o homem, e qualquer outro ser vivo, faz), o processo global de desenvolvimento tem considerável custo ecológico. Representa ameaça à própria sobrevivência da humanidade, embutindo uma catástrofe planetária que, de toda forma, parece inevitável, se não se muda o curso dessa civilização, conforme argumentou Celso Furtado, em 1974, no seu livro O Mito do Desenvolvimento Econômico.
É como, por sua vez, diz o pai do conceito de “pegada ecológica”, meu amigo William Rees, professor das Ciências Ambientais na Universidade de British Columbia (Canadá), “A empresa humana está em uma ultrapassagem potencialmente desastrosa, explorando a ecosfera além da capacidade regenerativa dos ecossistemas e fazendo os sumidouros naturais do planeta transbordar”. Grande responsabilidade disso é por ele atribuída à capacidade das políticas neoliberais de desmontar perigosamente equilíbrios ecológicos planetários. Não tenho nenhuma dúvida a esse respeito. Até porque alertas sobre as ameaças já foram dados pelo maior entomologista vivo, Edward Wilson, professor de Harvard, e pelo astrônomo-real do Reino Unido, meu amigo Martin Rees, professor de Cambridge e membro da Casa dos Lords e da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano.
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Há perspectivas de uma “retomada verde” da economia mundial para reverter o grave cenário de crise que enfrentamos?
CLÓVIS CAVALCANTI – Retomada de quê? Do crescimento econômico? Convém ressaltar que o crescimento da economia não pode se sustentar indefinidamente, se o ecossistema não cresce e é finito. Afinal, só existe atividade econômica se existir um ecossistema que a acolha. Daí que, tal retomada deveria ser, no meu entendimento, a introdução de um novo paradigma de desenvolvimento, como o que prevalece no Reino do Butão desde 1972, de promoção da felicidade humana e do bem-estar de todos os seres sencientes, com uso moderado e prudente dos recursos (finitos) dos ecossistemas. Essa possibilidade existe. Fiz parte de um grupo de experts internacionais que compôs uma comissão instituída pelo governo do Butão, a convite deste, destinada a preparar relatório para a ONU, atendendo pedido de Ban Ki-moon, então seu secretário-geral, explicando em que consiste esse novo paradigma, baseado no conceito da Felicidade Nacional Bruta, formalizado pelo rei do país em 1979. Meu grupo foi ao Butão em janeiro-fevereiro de 2013, depois de reunião em New York em outubro de 2012, resultando do trabalho da comissão o documento Happiness: Towards a New Development Paradigm, finalizado em dezembro de 2013.
Retomada verde, para mim, às vezes, é uma espécie de camuflagem para que se continue com o mesmo projeto de crescimento econômico a todo custo, de enormes custos ecológicos.
Nos EUA, o Partido Democrata abraçou a bandeira do Green New Deal, que une o conjunto de reformas sociais defendidas por Franklin Roosevelt na Grande Depressão com a economia de baixo consumo de carbono. Qual o sinal disso para a economia global?
CLÓVIS CAVALCANTI – Trata-se de uma sugestão sensata para que se reformule o modelo vigente, com mais atenção para dimensões sociais e ecológicas do processo econômico no mundo hoje. Mas algo ainda tímido, na medida em que poderosos interesses econômicos não podem ser contrariados. Razão pela qual se fala em green (verde). Afinal, niguém se opõe em tese a um “esverdeamento” das ações humanas.
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Uma das iniciativas locais recente foi a carta lançada por ex-presidentes do Banco Central e ex-ministros da Fazenda, que defendem ações do setor público e da iniciativa privada na construção de uma economia de baixo carbono. E ressaltam que “a descarbonização significa a valorização da nossa economia no longo prazo, uma consideração cada vez mais importante para investidores internacionais”. Qual a sua avaliação sobre essa manifestação? Já é possível identificar uma maior sensibilização da classe empresarial para essa questão?
CLÓVIS CAVALCANTI – Manifestação benvinda. Temos que trabalhar para reduzir o uso de combustíveis fósseis, vilões (com o desflorestamento) do perigoso efeito-estufa. Na verdade, todo o modelo de consumo tem que ser revisado. Ele leva à produção de artigos como os automóveis que são a negação da descarbonização. Um modelo de sobriedade é o mais recomendado. Significa viver com conforto nos limites do possível – assim reduzindo a pegada de carbono. No Butão, combate-se o consumismo. Não existem cartazes de qualquer tipo de propaganda no país, por exemplo. Os refrigerantes foram abolidos. O interesse da política é também contribuir para a existência dc uma população saudável. Vale notar que até a semana passada, menos de 400 pessoas tinham sido infectadas pelo novo coronavírus, e não havia nenhuma vítima fatal da pandemia no país.
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Como o Brasil e o Estado de Pernambuco têm se relacionado com a agenda da economia verde na sua análise?
CLÓVIS CAVALCANTI – O Brasil como um todo nada tem feito de substantivo com respeito a essa “economia verde”. Pelo contrário, o verde do país corre sérios riscos de desaparecimento. Já o estado de Pernambuco, desde que Sérgio Xavier foi chamado por Eduardo Campos para assumir a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (em 2010), tomou rumo bem diferente. Há um pensamento ecologista em ações do governo pernambucano, como na mitigação do passivo ambiental e humano que se criou em Suape desde que esse projeto foi concebido e posto em prática. No país, a governança ambiental relativamente boa, que existia até 2005, foi substituída por um processo que é hoje de clara destruição do arcabouço vigente até aquele ano. Estamos à deriva, sem rumo quanto a compromissos como o dos Acordos de Paris, de 2015. Pior: ameaçam-nos graves crises associadas à mudança climática, à perda da biodiversidade, aos desequilíbrios ecológicos que podem suscitar o surgimento de novos vírus muito agressivos.