*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais
Francisco Cunha e outros analistas defendem a reconstrução do diálogo na sociedade brasileira, que sofreu as consequências da polarização radical nos últimos anos. Também propõe a adoção da preservação ambiental como um ativo importante para o País se desenvolver.
O que esperar de 2023? Todo final de ano traz consigo as previsões para o novo ciclo que se aproxima, em geral com estimativas de crescimento do PIB, apontamento das macrotendências econômicas e a indicação de reformas necessárias. No entanto, após todas as crises que vieram com a pandemia e, principalmente, com o tensionamento da polarização que tomou o País, os desafios prioritários são outros. No Painel de Fim de Ano da Agenda TGI 2023, Francisco Cunha defendeu que os próximos passos para o desenvolvimento do Brasil passam pela reconstrução do diálogo na sociedade e a valorização dos nossos ativos ambientais.
Citando o pensador positivista Augusto Comte, Francisco Cunha trouxe nas conclusões da sua palestra anual uma frase que inspirou o lema da nossa bandeira: “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Na construção desse que é um dos nossos principais símbolos nacionais, o amor ficou de fora, restando apenas a Ordem e Progresso. Simbolicamente, o consultor defende que é justamente esse sentimento esquecido um elemento crucial para superar a rachadura que divide o País de forma tão visível.
“Nós infelizmente esquecemos o amor na nossa bandeira. Isso é muito importante porque entramos numa disfuncionalidade impressionante. Um país rachado ao meio não vai a canto nenhum. Não podemos construir uma nação na discórdia e no ódio. Não há possibilidade disso chegar a nenhum lugar, apesar de todo o potencial que temos. Temos que desarmar os espíritos. O barco, quando afunda, não afeta só a parte que odeio. Ele afunda por completo”, provocou o consultor nas reflexões finais.
O racha do País pode ser ilustrado pela diferença mínima de votos entre os candidatos Jair Bolsonaro e Lula da Silva nas eleições de 2022 ou pelo mapa que apontou o Brasil separado entre azul e vermelho. De um lado todo o Nordeste, quase todos os Estados do Norte e Minas Gerais, com vitórias do presidente eleito, enquanto Sudeste, Sul e Centro-Oeste apontaram a preferência por Bolsonaro. Os assassinatos de eleitores por motivações políticas ao longo do ano e a não aceitação do resultado das urnas, com incitação a um golpe militar, são outras faces da fratura social brasileira.
“2023 será o ano de reconstrução das pontes na política. As pontes institucionais foram muito queimadas. A ponte entre os poderes foi muito machucada. Entre o Executivo e o Judiciário foi basicamente interditada. Isso é ruim, pois o Brasil tem muitas questões que acabam no Judiciário. Quando a ponte não funciona bem, isso gera dificuldades para que a agenda de governabilidade realmente avance. A ponte com o Legislativo foi interditada em 2019, sendo reconstruída em 2021, mas com bases muito ruins. O pedágio do Orçamento Secreto não era possível pagar. As pessoas falam muito na necessidade de reformas, mas o que considero mais importante é reconstruir essas pontes. Se conseguir isso já será excepcional”, defendeu o economista Paulo Dalla Nora Macedo.
De forma simplificada, ele defende como prioridade para o primeiro ano do terceiro mandato de Lula a volta ao clima de normalidade entre os poderes. “Penso que para que essa ponte com Legislativo e Judiciário dê certo, será preciso reconstruir os diálogos políticos entre direita, esquerda, centro-direita e centro. Isso é pré-condição. Só conseguiremos avançar se esses diálogos forem construídos. Sou otimista. Na minha cabeça existe um grupo 25% radical e extremista que não terá diálogo. É um pedaço do Senado e da Câmara extremista”, avalia o economista.
Em referências às palavras de Comte, mencionadas na Agenda TGI 2023, Dalla Nora considera ser justamente a dimensão da afetividade que tem a capacidade de permitir a comunicação entre os diferentes pensamentos no País. “As forças que compõem os outros 75% podem ter suas diferenças políticas, mas o que os une é o afeto. Em todo momento de muita tensão, como nos Estados Unidos, após a Guerra da Secessão, o afeto foi fundamental para construir unidade. Entendo que as pessoas têm habilidades adequadas para certos momentos e hoje vejo que Lula tem características adequadas, de habilidade pessoal, para esse momento”, afirma Dalla Nora.
MEIO AMBIENTE COMO FIO CONDUTOR DO DESENVOLVIMENTO
Se a agenda ambiental do País foi, por muito tempo, derrotada pelo desenvolvimentismo predador, hoje ela nasce como a protagonista na nova apresentação internacional do Brasil, como exposto na COP 27 (Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que aconteceu no Egito. A aposta em atividades econômicas sustentáveis, considerando a biodiversidade brasileira, promete ser a grande aposta não apenas para 2023, mas para os próximos anos.
Francisco Cunha defendeu na Agenda TGI 2023 que o ativo ambiental é o grande trunfo do Brasil, mencionando o livro Brasil, Paraíso Restaurável (Jorge Caldeira). “Não podemos destruir o nosso grande ativo. O Brasil é onde mais se produz vida em todo o planeta. Isso não é pouca coisa. Nessa ótica, o Brasil é o maior País do mundo em diversidade e geração de vida. Somos uma potência ambiental e temos que entender isso. Podemos encontrar um caminho diante desses descaminhos todos que temos experimentado nesses anos todos”.
Logo após a COP 27, o jornalista Jorge Caldeira, autor do livro, destacou que a Amazônia, como a grande fonte de equilíbrio do planeta, tem tudo para ser uma grande fonte de recursos para o Brasil. Além dos US$ 3 bilhões do Fundo Amazônia, que foram congelados nos últimos anos, ele menciona que o mundo tem US$ 40 trilhões de dinheiro ambiental para gastar no País, o que equivale a mais de 20 vezes o nosso PIB.
Na análise de Tatiane Simão, fundadora e CEO da empresa Somos Todos Amazonas, a preservação das florestas e o desenvolvimento da economia associada à rica biodiversidade brasileira é a alternativa que o País tem à sua frente após ter ficado para trás do mundo em inovação industrial. “Nos últimos anos o Brasil viveu uma significativa fase de desindustrialização, e não vamos recuperar isso, pois perdemos as condições de acompanhar o progresso tecnológico por meio da inovação na área industrial. Manter a floresta em pé é a única condição de nos tornarmos relevantes na nova economia, ou seja, na economia do conhecimento baseado na biodiversidade, onde nosso País tem forte potencial para se destacar e acelerar a transição de uma economia predatória para uma economia de baixo carbono baseada em processos regenerativos, valorizando os produtos da biodiversidade alinhados com o conhecimento da academia”.
De forma prática, há um conjunto de eixos em que se pode florescer uma nova economia regenerativa no País e atrair recursos. Sérgio Xavier, ex-secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, articulador do CBC (Centro Brasil no Clima) e desenvolvedor do Projeto HidroSinergia – Lab de Economia Regenerativa do Rio São Francisco, menciona, por exemplo, os investimentos em energias renováveis (incluindo o emergente hidrogênio verde e cooperativas solares, eólicas e de biomassa), a conservação de água (com sistemas de captação de chuvas, reuso, saneamento, reflorestamentos e regeneração de bacias hidrográficas), além da agroecologia e bioeconomia (com bioindústrias que fortalecem as florestas vivas e as comunidades tradicionais). A mobilidade limpa (com biocombustíveis e veículos elétricos públicos e compartilhados) e o pagamento por serviços ambientais (com modelos cooperativos de créditos de carbono, agregando valor social e de proteção à biodiversidade) são alternativas, entre muitas outras, destacadas pelo ambientalista.
“O Brasil tem imensas potencialidades para liderar a nova economia do descarbono. Além de florestas e fontes energéticas renováveis, reúne conhecimentos, tecnologias e grande capacidade criativa para inventar novos modelos regenerativos e inclusivos de desenvolvimento. Uma inovação possível é somar diversos ativos naturais, como biodiversidade, créditos de carbono, energia limpa e ciclos biogeoquímicos diversos para estruturar uma inédita indústria circular regenerativa, agregando capacitação comunitária para elevar renda e reduzir desigualdades em todos os biomas nacionais”, afirmou Sérgio Xavier.
Ao tratar de ciclos biogeoquímicos, ele se refere a todo o percurso de um elemento químico (como o carbono) compondo ambientes (terra, ar, líquidos) e os seres vivos (vegetais e animais). Esses elementos seguem ciclos naturais formando organismos vivos, voltando para ambientes geológicos e se tornando novamente organismos. Xavier destaca que a indústria circular regenerativa é o foco de pesquisa e trabalho dos Labs de Economia Regenerativa, que estão em desenvolvimento por meio do CBC, com parceiros como o ICS (Instituto Clima e Sociedade), o InterCidadania, o Climainfo, a Ball Corporation e a própria União Europeia. “Na COP 27 apresentamos as linhas gerais e tiveram ótima repercussão”.
TENSÕES INTERNACIONAIS E CRISE ECONÔMICA NO RADAR
Tanto as tensões políticas internas, com o avanço do extremismo, como o suporte do desenvolvimento sustentável são dois fatores que estão no radar não apenas do Brasil, mas do mundo. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que eclodiu em um período de recuperação mundial da pandemia, criou instabilidade política e econômica na União Europeia o que torna as perspectivas menos otimistas da agenda verde global, na análise de Marco Alves, fellow franco-lusitano do Iperid (Instituto de Pesquisas Estratégicas em Relações Internacionais e Diplomacia).
“Essa guerra desencadeia agora uma crise energética, porque a energia se tornou uma arma geopolítica ainda mais forte do que era. A Alemanha assentou seu desenvolvimento graças a uma energia barata e hoje não será mais o caso. Se ela quiser manter sua atividade e respeitar as sanções e embargo contra o petróleo russo, terá que pagar quatro vezes mais caro seu gás para ter acesso a uma energia vinda principalmente nos Estados Unidos. Devido a esse alto custo, investidores já estão deixando a Europa e indo para China e EUA. Vamos assistir a uma queda progressiva da indústria europeia e o enfraquecimento da Europa”.
Adicionado a isso, Marco Alves destaca que a inflação no continente ainda não atingiu o seu pico, o que tem tornado a vida mais cara na Europa e criado mais tensões sociais e protestos. A recessão no continente europeu é, na análise de fellow do Iperid, o início de um declínio europeu como superpotência, que deixaria a polarização econômica global exclusivamente entre China e Estados Unidos.
Diante dessa “Realpolitik”, a política baseada em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas, Marco Alves, que atualmente mora na França, enxerga muita dificuldade para a Europa manter suas perspectivas de reduzir suas emissões de CO2 em plena crise energética. “Para compensar a falta de abastecimento de gás, estamos utilizando GNL americano, altamente poluente, que destrói as terras de onde é extraído e é transportado de barco. Estamos reabrindo centrais termelétricas funcionando a carvão, estamos retomando a aceleração de programas nucleares e reabrindo centrais que estavam fechadas. A Europa apostou numa energia barata e pouco poluente que era o gás russo e, por isso, deixou de investir massivamente, como deveria ter feito, para que a transição energética fosse mais próxima de se concretizar. Não podemos ser hipócritas, hoje, energia solar, energia eólica, biogás, mesmo se fosse multiplicado por três, estariam longe do que nós consumimos”.
Nesse contexto de dificuldades para a União Europeia de liderar a agenda ambiental, Marco Alves considera que o Brasil pode ocupar um papel protagonista. “O Brasil tem um papel histórico incrível para exercer. Em termos de soft power global, se o País conseguir reverter e preservar realmente a Floresta Amazônica, será um sinal forte e poderá ser o líder nessa ‘batalha’. Mas isso quer dizer retirar poder dos lobbies e produtores do agronegócio, orientar seu desenvolvimento para setores sustentáveis. O presidente eleito nesse sentido, a nível internacional, tem uma cota de simpatia muito alta, que talvez os brasileiros nem dimensionam, o que lhe permitirá talvez ser um interlocutor e um negociador privilegiado”.
Neste mês de dezembro, por sinal, o criador do conceito de soft power (que se refere ao poder de um país liderar outros por sua influência cultural), o professor de relações internacionais da Universidade de Harvard Joseph S. Nye comentou sobre o discurso do presidente eleito na COP 27. Para o docente, a Amazônia é a chave para Lula retomar o soft power do Brasil.
Além de enfrentar esses problemas e desafios do século 21, o fellow do Iperid defende ainda ser fundamental ao Brasil, resolver problemas típicos do Século 19, como o saneamento no País, que limita também impactos ambientais e poderia reduzir de forma importante os problemas de saúde pública.
Tatiane Simão, da Somos Todos Amazonas, aponta que diante da crise climática (o maior desafio enfrentado pela humanidade atualmente), o Brasil como o sexto maior emissor de CO2 do planeta tem grande responsabilidade no corte de suas emissões e a oportunidade para se tornar a primeira nação a zerar suas emissões, muito antes de China e dos EUA. “Nosso País está em melhor posição comparado aos outros países, sendo importante reconstruir a governança ambiental para o avanço dessa agenda, sanando problemáticas como a grilagem de terras públicas, a violência e as invasões em territórios indígenas. Por fim, avançar no sentido de evitar o desmatamento no País, nossa maior fonte de gases de efeito estufa. Precisamos zerar os desmatamentos ilegais na Amazônia e no Cerrado. A taxa de desmatamento ilegal hoje é de 90% na Amazônia e 80% no Cerrado”. Para atingir esses objetivos, ela reforça a urgência de se criar no Brasil um marco regulatório eficiente que beneficie práticas regenerativas e práticas de agricultura familiar.
O conjunto das tensões internacionais a serem superadas, no entanto, é bem mais amplo do que as consequências da Guerra entre a Rússia e a Ucrânia para a União Europeia. O avanço da extrema-direita, com ferramentas muito semelhantes às utilizadas no Brasil, a disputa de gigantes, protagonizada por Estados Unidos e China, e o risco de novas pandemias (problema que tem uma relação direta com o desequilíbrio ambiental e as conexões muito mais rápidas da economia global) são fatores que permanecem no radar dos analistas.
Alguns dilemas do mundo contemporâneo já têm soluções visíveis a serem traçadas, embora não tão fáceis de serem implantadas, enquanto outros, sequer têm essa perspectiva. O mundo que já foi citado como líquido, em descontrole e até de que se desmancha no ar, caminha com o desafio de equilibrar sua característica de ser quase que “multiexplosivo”, dado o volume de conflitos e desafios que se acumulam.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Gente & Negócios e Pernambuco Antigamente. Jornalista há mais de 10 anos, ele é fellow do Iperid, especialista em Gestão Pública, mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (UFRPE) e doutorando em comunicação pela UFPE (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)