O nosso Carnaval, bem brasileiro, só assumiu uma grande forma social após a completa adesão do elemento africano como importante agente co-formador da festa, a mais pública, a mais participativa a nível nacional, sendo também a mais criativa e de maior transformação sócio-cultural.
Os muitos motivos africanos presentes no Carnaval brasileiro servem para reforçar de maneira definitiva a atuação de danças, instrumentos musicais, roupas e adereços que, já elaboradas, são vistas e sentidas nessa realidade que é afro-brasileiro.
Um conjunto de matrizes africanas e também de forte presença afro-islâmica está por vários motivos presentes em festas públicas, cumprindo calendários originais, quase sempre determinados por temas religiosos ou hierárquicos, lembrando organizações políticas, litúrgicas, com as presenças de reis, rainhas, príncipes africanos, numa produção sincrética, já integrante da civilização brasileira.
Esses cortejos mostram centenas de pessoas tocando instrumentos musicais, cantando, dançando, usando roupas, insígnias, adereços, ,preservando cardápios ,marcando os sentidos religiosos dos grupos ou revelando também aspectos sócio-políticos.
Essas memórias se ampliam e renascem em verdadeiras explosões de africanidade no nosso carnaval contemporâneo.
Assim, são os Maracatus, grupos tradicionais e centenários, que no início saiam para comemorar Nossa Senhora do Rosário e depois passaram ganhar o tempo do Carnaval, desfilando em especial na cidade do Recife. Os Maracatus reúnem personagens que representam a corte real africana, formada por rei, rainha, príncipe e damas, incluindo-se um personagem muito importante para o grupo que é a dama do passo, ou seja, aquela pessoa que carrega a Calunga (boneca ou boneco negro vestido, portando coroa e peruca). A Calunga é um totem, podendo ser representada por uma escultura em madeira, uma boneca de pano ou mesmo uma boneca em material plástico. É a Calunga o poder religioso dos deuses africanos, notadamente os Orixás, protegendo o grupo de Maracatu e mostrando publicamente o sentido do ritual que congrega todos os participantes do desfile.
Na verdade, são os orixás que fazem o sagrado nos maracatus de baque virado ou os maracatus de Nação e assim cada calunga é um orixá. Destacam-se nos maracatus os orixás Xangô, Iansã, Oxum e Iemanjá. Cada calunga recebe obrigação de sangue, com oferecimento de carneiro, bode, cabra, galinhas, pombos entre outros; comidas com dendê como os acarajés, o begueri, que é feito com quiabos e muitos outros preparos que acontecem nas cozinhas dos terreiros. Tudo que é oferecido as calungas é partilhado com os participantes dos maracatus e dos terreiro, e desta maneira as carnes são preparadas, bem temperadas e consumidas por todos , o que se dá também com as demais comidas , numa verdadeira comunhão entre o homem e o sagrado.
Nos maracatus africanos ainda aparecem cordões de baianas, o porta-estandarte que leva com muita dignidade um rico estandarte de veludo, franjado em fios de ouro ou de material dourado, quase que totalmente rebordado de miçangas e lantejoulas, vidrilhos, sempre nas cores do grupo, tendo como motivo central e principal um símbolo, quase sempre um animal, uma flor ou um astro, recebendo ainda legenda escrita com o nome da agremiação.
É assim na união da festa com a fé com um sentimento de sagrado dominante vive-se um carnaval extensão dos terreiros de Xangô, manifestações das mais legitimas do patrimônio cultural afro-pernambucano.
*Raul Lody é antropólogo