O Brexit no Reino Unido, a guerra comercial de Estados Unidos x China e os milhares de refugiados das tensões políticas são alguns sintomas de um mundo em “divórcio”. Em contraponto ao tempo atual de colisões no cenário nacional e internacional, o Consórcio Nordeste deu, nos últimos seis meses, os primeiros passos de uma coalizão estratégica dos governadores da região. O movimento não é para “o Brasil ser dividido e o Nordeste ficar independente”, como na canção imortalizada pela voz de Elba Ramalho. Mas o casamento das forças políticas dos nove estados é visto como um caminho para atrair investimentos estrangeiros e gerar melhorias na gestão pública. Na análise dos especialistas, esses dois benefícios devem construir oportunidades para os empreendedores da região.
Nos primeiros seis meses do Consórcio Nordeste, a ação que mais atraiu a atenção da população e do mercado foi uma viagem conjunta dos governadores para “vender” as oportunidades da região na França, na Itália e na Alemanha. Ao abraçar essa missão, os chefes do executivo fomentaram a comunicação e o fluxo de negócios com investidores estrangeiros. Nessa agenda ficaram claros os principais potenciais de captação de recursos e de realização de negócios para a região.
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“Eles estão muito interessados por parcerias público-privadas. Tem muita gente querendo conversar sobre isso na área de infraestrutura, seja rodoviária ou portuária. A potencialidade do Nordeste de energia limpa é muito grande, é a maior do Brasil. Isso também desperta os investidores da área solar e eólica”, afirmou o governador Paulo Câmara. Ele pontua ainda que os investidores estão de olho nos polos em desenvolvimento já aquecidos do Estado, como o automotivo. “No caso de Pernambuco, na visita à Itália, as perguntas são em torno da Fiat Chrysler Automobiles, por exemplo”.
Em 2020, em mais um passo de estruturação dessa coalização de governadores, o grupo inaugurou uma sede em Brasília e monta uma agenda de retorno à Europa. A Espanha, que ficou de fora na primeira missão, deve ser um dos destinos. Outra meta seria o mercado chinês, mas a epidemia do coronavírus adiou os planos. “A China é onde está o dinheiro. É um polo óbvio em que temos que estar presentes. Mas temos que aguardar o desenrolar dessa crise”, afirmou Câmara.
De acordo com o presidente do Iperid (Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais e Diplomacia) e cônsul da Eslovênia, Rainier Michael, o movimento externo dos governadores é tipicamente de paradiplomacia. Trata-se de uma espécie de diplomacia que corre em paralelo ao poder federal, sendo conduzida pelas autoridades municipais e estaduais. “Há uma série de questões culturais, de turismo e de economia que os Estados podem e devem conversar e que o Consórcio do Nordeste é um caminho muito importante para isso”.
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O cônsul avalia que para potencializar os ganhos econômicos e sociais desse caminho aberto pelos governadores é preciso mais ação da iniciativa privada e mais velocidade na comunicação do Consórcio Nordeste com o corpo diplomático presente na região. “Os empresários têm que ser a locomotiva desse consórcio e trabalhar de forma conjunta com os governadores”. Ele defende que haja uma organização no entorno de entidades representativas como a Fiepe para despertar uma integração empresarial com essa nova estrutura regional. “Tem que ter uma proximidade empresarial e pública para que possamos tirar maior proveito desse processo”.
Para o economista Edgard Leonardo, professor do Centro Universitário Tiradentes (Unit) e das Faculdades Integradas Barros Melo (Aeso), além da capacidade de atração de investimentos, a integração poderá resultar em oportunidades de exportação para empresários da região. “Ao fazer essas viagens, é possível oferecer produtos daqui, como carne de frango e frutas. Podemos aumentar exportações para destinos que podem estar sendo negligenciados. Além disso, existe a possibilidade de acertar mercados para produtores que trabalham em menor escala. Muitos pequenos empresários que não têm porte para o mercado externo, podem se unir para ter volume de exportação”.
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Apesar das vulnerabilidades climáticas da região, é nos negócios relacionados ao meio ambiente que estão nascendo grandes oportunidades para o Nordeste. A Caatinga, que abriga o semiárido mais populoso do mundo, é alvo de interesse de investimentos estrangeiros. “No Brasil muitas políticas avançaram na Amazônia e na Mata Atlântica nas últimas décadas. No bioma da Caatinga, no entanto, a partir de uma articulação coordenada, há um potencial para garantir recursos para sua preservação e para desenvolver algumas atividades de produção”, aponta o secretário de meio ambiente de Pernambuco, José Bertotti.
Ainda na pasta ambiental, as oportunidades relacionadas à produção de energias renováveis são a outra bandeira com maior interesse estrangeiro. Para se ter ideia do potencial desse setor, Pernambuco recebeu, em 2019 o anúncio da empresa hispano-brasileira Solatio Energia que vai investir R$ 3,5 bilhões para construir a maior fazenda de energia fotovoltaica do País. A partir de 2021 vai gerar mil empregos no Sertão durante a sua construção. A capacidade instalada da fazenda solar será de 1,1 GW.
“Essa é uma das linhas estruturadoras que o Consórcio Nordeste articula. Há uma política global de enfrentamento das mudanças climáticas, com a necessidade de transformação da matriz energética. No esforço de diminuir o peso dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, o Nordeste desponta como grande produtor de energia solar e eólica”, aponta Bertotti. Ele ressaltou que hoje a energia que vem dos ventos já é a fonte de 30% de todo o consumo do Nordeste.
“A redução do custo de geração dessas novas fontes de energia deve atrair empreendimentos e grandes fluxos de investimentos. Não só de plantas de captação, mas também indústrias de equipamentos e montagem de placas solares”, prospecta Bertotti. Os alemães seriam os principais interessados em investir nesse setor.
Não são apenas os empresários que podem ser favorecidos, os estudantes também devem se beneficiar com essa ação paradiplomática. Inicialmente, o Programa Ganhe o Mundo já atraiu interesse da França, por exemplo. Até então os convênios foram feitos apenas com países de língua inglesa, espanhola e alemã. Tanto o governador como os especialistas entrevistados apontam que essa sinergia internacional do Consórcio Nordeste tende a promover o intercâmbio de docentes, estudantes e pesquisas com as universidades da região.
GESTÃO
Além da atuação externa, uma ação interna do Consórcio Nordeste já deu resultados concretos: as compras corporativas. A primeira realizada em conjunto dos nove estados da região foi de medicamentos para suprir as necessidades dos sistemas de saúde. A licitação representou uma economia de 30% dos recursos públicos. Se cada Estado adquirisse os mesmos produtos individualmente, o valor total seria de R$ 166 milhões. Feita de forma coletiva, o custo da compra caiu para R$ 118 milhões. Uma economia de R$ 48 milhões.
“Todos os estados estão numa situação fiscal complicada. Alguns com grande comprometimento do orçamento estadual. Quando se criam possibilidades de melhorar a gestão, com economia na compra e intercâmbio administrativo para troca de boas práticas, é possível permitir uma folga de caixa. Com isso, ter maior capacidade de investimento, seja em infraestrutura ou em áreas sociais básicas, como saúde e segurança”, analisa Edgard Leonardo. Além da compra coletiva, o economista destacou a possibilidade de ganho de escala dos Estados em contratação de serviços em conjunto e na realização de projetos de infraestrutura unificados.
Uma ação coordenada dos governadores para melhorar as contas estaduais tem sido de fazer coro em prol do Pacto Federativo. Bandeira de campanha do presidente Jair Bolsonaro, que defendia “Mais Brasil e menos Brasília”, a melhor distribuição de recursos públicos, na verdade, tem sido uma demanda dos estados. “O ano de 2019 foi o que menos recebemos recursos de convênios por parte do Governo Federal. Não temos mais acesso à operação de crédito com o aval da União, temos que buscar via organismos internacionais sem aval, isso encarece. Cada vez mais os recursos federais estão mais concentrados na União, a distribuição não está ocorrendo”, criticou Paulo Câmara.
Nesse momento de polarização do País, que já se estende há alguns anos e que jogou toda a região na oposição, o papel do Consórcio Nordeste ganha uma relevância maior, segundo o cientista político e professor da Unicap Juliano Domingues. “Política é, basicamente, organização e pressão. Em tempos de ajuste fiscal e escassez de recursos, uma iniciativa dessa natureza otimiza esforços com o potencial de se refletir em políticas públicas regionais. Se isso acontece, podem ser colhidos frutos eleitorais. Mas isso dependerá fundamentalmente da capacidade de organização e pressão desse grupo”.
DESAFIOS
Dois fatores críticos são os principais desafios de continuidade do Consórcio Nordeste, segundo os especialistas: as disputas por investimentos entre os estados e os possíveis desalinhamentos políticos entre governadores que podem surgir após as próximas eleições. “O principal desafio é a conciliação de agendas e propósitos. Há demandas comuns, porém elas não podem ser mais relevantes do que as especificidades, o que não é algo fácil de ocorrer, sobretudo quando se tem em mente as próximas eleições”, afirma o cientista político Juliano Domingues.
A atuação conjunta dos governadores é uma antítese da histórica guerra fiscal em busca de investimentos em seus territórios. Para Edgard, superar essa disputa que acontece quando dois ou mais estados brigam pela atração do mesmo empreendimento por meio de incentivos fiscais, é um dos desafios da sustentabilidade do Consórcio Nordeste. “Qualquer grande acordo tem por natureza o risco de interesses de cada um desses entes. Se não forem muito bem trabalhados democraticamente, os elementos de natureza político-partidária ou briga por investimento são ameaças”, declarou o economista.
Unida, a região se apresenta como um lugar com o PIB do tamanho da Colômbia, uma população que seria a 24ª maior do mundo – entre a África do Sul e a Itália – e um território maior que qualquer país da União Europeia. De acordo com Edgard, esse matrimônio dos governantes sinaliza para a retomada do pensamento de Celso Furtado, no final dos anos 50, com a criação da Sudene. Aponta para a necessidade de os próprios nordestinos repensarem o desenvolvimento do Nordeste.
*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)