Bruna Pedrosa, curadora da exposição sobre o artista plástico conhecido por suas esculturas de figuras longilíneas em alumínio e pelo painel Revoluções Pernambucanas, fala da trajetória dele e da importância da sua obra. Também ressalta a necessidade dele ser mais reconhecido no Estado e no País. (Foto: Arnaldo Carvalho)
A exposição 100 anos de Corbiniano Lins – A Festa! que está no shopping RioMar é uma excelente oportunidade para conhecer um pouco mais esse que é considerado um dos mais talentosos e importantes artistas plásticos de Pernambuco e do País. Negro, de origem humilde e nascido em Olinda, ele trabalhou com desenho, pintura, azulejaria, obra em arame, entalhe, gravura, serigrafia, tapeçaria, mas é mais identificado por suas esculturas. Elas foram produzidas com uma técnica muito particular, em que esculpia no isopor com faca de cozinha que era enterrado numa caixa de madeira, onde derramava o alumínio fundido. Os recifenses que não ouviram falar de Corbiniano, mas veem no dia a dia, monumentos criados por ele como Revoluções Pernambucanas, na Av. Cruz Cabugá, ou O Mascate, na Praça do Diário, ou mesmo algumas esculturas de mulheres na entrada de prédios da cidade, certamente vão reconhecer nas peças expostas seu traço fino e figuras longilíneas característicos do artista.
Cláudia Santos conversou com a curadora da exposição Bruna Pedrosa, que falou sobre a mostra e a vida de Corbiniano. Ela destacou a participação dele no Ateliê Coletivo nos anos 1950, liderado por Abelardo da Hora, e que contava com artistas como Zé Claudio, Brennand e Samico. Apesar de sua importância, Bruna ressalta que Corbiniano ainda não desfruta de um reconhecimento como os demais colegas de seu tempo e credita isso ao racismo. Salienta, por exemplo, a lacuna existente em relação a livros sobre ele e o fato de suas obras não serem expostas em locais como museus.
O que o público vai conferir nessa exposição, 100 anos de Corbiniano Lins – a Festa?
Trouxemos um pouco de cada linguagem, uma pequena amostra de cada uma das técnicas desse artista que é conhecido pelas esculturas, mas tem outras linguagens e era bom em tudo. É impressionante! A festa — do título da exposição — remete à celebração do seu centenário e a um texto de Hermilo Borba Filho em um álbum com 10 serigrafias de Corbiniano que encontramos durante a pesquisa de curadoria. Neste álbum, intitulado Recife, de janeiro a janeiro, são retratadas manifestações da cultura popular, frevo, maracatu, caboclinhos, mostrando que somos um povo festeiro.
Além do texto curatorial explicando essa temática, a exposição traz uma linha do tempo com marcos biográficos e principais obras, um texto chamado Técnicas e Temas e, em seguida, mostramos pelo menos uma obra de cada técnica usada por Corbiniano: desenho, pintura, azulejaria, obra em arame, entalhe, gravura, serigrafia, tapeçaria até chegar às esculturas.
A figura feminina é bastante representada em suas esculturas em formas sinuosas e elegantes. Qual a relação das mulheres com a arte de Corbiniano Lins?
O primeiro acesso dele ao universo artístico e artesanal da manualidade foi por meio das mulheres da família, que eram costureiras e trabalhavam com tapeçaria. Filho de um holandês que morreu quando ele tinha meses de vida, Corbiniano foi criado pela mãe e pelas tias e irmãs em Olinda. Começou a ajudá-las na tapeçaria aos 8 anos de idade e passou a se interessar pelo desenho copiando as gravuras dos tapetes.
As mulheres foram importantíssimas nessa primeira formação, por isso ele tem uma relação forte com a representação da figura feminina. Quando adulto e mesmo casado, Corbiniano se relacionou afetivamente com muitas mulheres, era um boêmio como a maioria dos homens e artistas da época. Havia também as mulheres que posavam para seus desenhos e esculturas. Daí a diversidade de corpos em sua obra, mesmo predominando as figuras longilíneas, pernudas, de bumbum e seios fartos.
Conviveu com mulheres artistas como Teresa Costa Rêgo e Ladjane Bandeira. Sempre expressou sua gratidão reconhecendo a importância de ter convivido com mulheres que também eram artesãs, artistas, em uma época ainda mais difícil que hoje, quando os homens sempre estavam à frente ocupando os espaços, sobretudo nas artes. Acho que tem essa admiração dele pelas mulheres dessa forma mais ampla possível, da mãe, às esposas, filhas, às modelos, às artistas, a todo o universo feminino com que ele conviveu tanto. Então, pelo fato dele estar rodeado de mulheres, de ouvi-las e observar suas personalidades conseguiu captar o universo feminino de forma profunda.
Como foi sua trajetória artística? O primeiro contato com a arte foi, então, com a família, em Olinda?
Sim, em Olinda, na primeira infância com as mulheres da casa, ele começa com tapeçaria e desenho. Na segunda infância, vai para o Recife e aprende outras técnicas, estudando em uma instituição pública federal, a Escola Técnica de Artes e Artífices. Na década de 1950, quando chega no Ateliê Coletivo, junto com Abelardo da Hora e outros artistas da época como Celina Lina Verde, passa do desenho para a arte tridimensional.
Então, experimenta a escultura no barro, depois em terracota, em gesso e cimento até chegar à técnica da forma perdida, pela qual ele é mais conhecido. Nessa técnica, ele esculpia em tamanho natural no isopor usando uma faca de cozinha e palitos de churrasco, enterrava esse isopor numa caixa de madeira e derramava o alumínio, que ocupava o lugar do isopor se transformando nas famosas esculturas de alumínio fundido. Essa técnica vem da Europa, outros artistas já a usaram, mas poucos se identificaram tanto com ela quanto Corbiniano. Ele apaixona-se por ela, dando continuidade de forma mais profunda.
Como um homem pobre, negro de Olinda, tornou-se um dos mais importantes artistas plásticos de Pernambuco e do Brasil?
Por mérito da sua arte. Apesar de seu talento, sua trajetória é marcada por apagamentos do racismo. Há uma lacuna bibliográfica impressionante sobre ele, mesmo tendo esculturas e obras públicas espalhadas no Recife e em outros Estados que são cartões postais como A Sereia em Maceió e a Iracema em Fortaleza.
É comum encontrarmos livros sobre outros artistas como Abelardo da Hora, Brennand, Samico, mas sobre Corbiniano você não acha. Eu tive a oportunidade, a honra, de conhecê-lo pessoalmente e conviver com ele nos seus últimos cinco anos de vida. Então tive um tempo de conversar e ouvir suas histórias. Fica a dica para os pesquisadores, para outros curadores e críticos, que precisamos nos reunir, juntar o material que cada um escreveu individualmente, e copilar artigos e textos numa publicação que dê conta de realmente abarcar tudo, a parte histórica, política, biográfica e artística de Corbiniano. Há um rico material audiovisual sobre ele, o documentário Corbiniano, de Cézar Maia, filmado entre 2012 e 2014 e apresentado no Cine PE. Quem for à exposição vai poder ver.
Além dessa lacuna bibliográfica, de que forma o racismo marca a história de Corbiniano?
Ele passou por diversos constrangimentos como ter que entrar pela porta dos fundos nos salões, mesmo sendo premiado. Já chegou várias vezes para receber prêmio e ouviu “você é negro, não entra pela porta da frente”. No período da ditadura, era revistado inúmeras vezes quando estava bebendo no Savoy, ouvindo música com Abelardo e outros artistas.
Apesar de serem um grupo de amigos e artistas do mesmo patamar, a polícia tratava Corbiniano de forma diferente por causa da sua cor. Então ele sofreu bastante com isso, mas nunca foi de partir para a briga, tinha uma postura tranquila, era uma pessoa muito humilde, evitava se meter em confusão e obedecia para continuar mostrando sua arte e vivendo dela, pois precisava criar seus filhos.
E ele sempre conseguiu viver da sua arte?
Sim. É muito impressionante, aos trancos e barrancos no início, claro, porque não tinha uma venda tão expressiva. A primeira esposa, Josefa, também trabalhava como costureira. Os filhos sempre tiveram educação de qualidade. Os netos também. Todos estudaram, fizeram faculdade e se formaram e têm suas profissões, mas nenhum deles seguiu a carreira artística.
Apesar de muito humilde e de se submeter a tudo a que se submeteu para conseguir estar nesse meio e sustentar a família, ele tinha uma autoestima de reconhecer sua competência e a qualidade do seu trabalho. Acreditava muito em si mesmo e no próprio talento. Foi persistente, não desistiu, não parou até o final. E mesmo não estando mais aqui, ele continua dando esse suporte à família, que ainda tem um acervo e, em parte, ainda é sustentada pela venda de obras de Corbiniano. Inclusive, nessa exposição no RioMar, há obras dele à venda.
Corbiniano fez parte da geração de artistas, como Abelardo da Hora, Ladjane Bandeira, Samico, que fundou a Sociedade de Arte Moderna do Recife, o Ateliê Coletivo, o Clube da Gravura. Como ele se insere nesse momento tão interessante da arte em Pernambuco?
Esse movimento tem influência da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922, com Tarsila do Amaral e outros artistas. Aqui em Pernambuco, existia essa espécie de congregação entre esses artistas, de estar um sempre fortalecendo o outro e produzindo juntos, de forma muito generosa. Assim como na música em que havia uma geração de artistas como Bethânia, Gal Costa, Caetano e Gil, havia, na mesma época, artistas exponentes do modernismo pernambucano.
Era algo incrível esse momento histórico de uma geração de artistas tão potentes, convivendo e produzindo juntos, e como a troca entre eles fortalece o trabalho de cada um. Era troca sem competitividade, algo como: “somos artistas, somos pernambucanos e somos bairristas. Vamos mostrar a nossa arte para o mundo e vamos mostrar como Pernambuco é bom, como os pernambucanos são capazes, talentosos, expressivos, criativos”. Os artistas do Ateliê Coletivo, com quem conviveu desde a escola técnica, dão a mão a Corbiniano. Abelardo, sobretudo, tem esse papel fundamental de conduzir, ensinar e apresentar outras técnicas e outras pessoas e como funcionava todo esse universo, inclusive a burocracia de inscrições nos salões.
O modernismo chegou muito forte em Pernambuco. Características das esculturas de Corbiniano como a proporção da cabeça menor que o corpo, figuras sem rosto, olhos, nariz e boca vêm do modernismo no Sudeste. As temáticas de sofrimento também são do modernismo, como a pintura Proletariado, de Corbiniano, que remete a Portinari e a outros modernistas. Os temas se repetem, são comuns a todos eles.
Qual é a importância de Corbiniano Lins para a arte pernambucana e brasileira?
É um artista ímpar a começar pela técnica da forma perdida que até hoje ninguém faz esculturas com essa técnica. Além disso, Corbiniano é um artista completo em relação às diferentes temáticas e técnicas, conseguindo ser bom em todas. Foi excelente entalhador, gravador, desenhista, escultor, colorista. Em relação aos temas, abordou o cotidiano de pescadores, carteiros, lavadeiras, profissões do nosso povo. Denunciou a miséria, a fome, na escultura Os Retirantes e em outras com essa temática social mais forte.
Qual é a importância de Corbiniano Lins para a arte pernambucana e brasileira? É um artista ímpar a começar pela técnica da forma perdida que até hoje ninguém faz esculturas com essa técnica. Além disso, Corbiniano é um artista completo em relação às diferentes temáticas e técnicas, conseguindo ser bom em todas. Foi excelente entalhador, gravador, desenhista, escultor, colorista. Em relação aos temas, abordou o cotidiano de pescadores, carteiros, lavadeiras, profissões do nosso povo. Denunciou a miséria, a fome, na escultura Os Retirantes e em outras com essa temática social mais forte.
Muitas de suas obras estão em espaços públicos. Quais as principais e como se inserem esteticamente nesses espaços?
Algumas das principais esculturas de Corbiniano já fazem parte da estética de cidades em Pernambuco e em outros estados como Alagoas, Ceará e Paraíba. Muitas vezes, as pessoas nem se dão conta de que a escultura que veem na rua é uma obra dele. No Recife, por exemplo, a escultura do Mascate na Praça do Diario é de Corbiniano, as esculturas em frente à estação central dos Correios também são dele.
No Parque das Esculturas, há obras dele junto com as de Brennand e Abelardo da Hora. Há também inúmeras obras como esculturas e painéis em prédios na Av. Rui Barbosa, Avenida Boa Viagem, Rua dos Navegantes e Casa Forte. O principal painel de Corbiniano no Recife é o das Revoluções Pernambucanas que está na Avenida Cruz Cabugá. É um painel enorme de azulejaria pintado em azul. Há obras de Corbiniano que são pontos turísticos como a Iracema, em Fortaleza.
A exposição segue até quando?
Até o dia 17 deste mês (próximo domingo). Venham à exposição! Espero que todos os pernambucanos se sintam nesse lugar de representação e de orgulho, que celebrem porque Corbiniano era uma pessoa festeira. Vamos celebrar essa memória e esse legado. Espero que o poder público reconheça e abra espaços para além dessa exposição do RioMar. Corbiniano merece esse reconhecimento. E nós merecemos vê-lo dentro dos espaços sacralizados da arte, como os museus.
Ele também precisa de reconhecimento acadêmico sobre esse trabalho e sobre essa memória que é a memória de todos nós. Não podemos tratar só no âmbito individual, não é só a vida de uma pessoa que foi Corbiniano Lins, mas é a memória da cidade, é a memória do Estado, é a memória do País, de nós pernambucanos, quem somos, quem nos representa, quem produz e leva o nosso nome adiante.