Especialistas apontam que crescimento se deve ao avanço dos critérios diagnósticos, ao maior acesso aos técnicos de saúde e à conscientização da população. Mas há profissionais que enxergam nesse aumento uma tendência à medicalização do comportamento humano e a transformação das emoções em transtornos.
*Por Rafael Dantas
Talvez você tenha percebido uma presença maior de estudantes no espectro autista nas escolas ou mesmo nas ruas. Ou notado mais diagnósticos de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e dislexia, inclusive em adultos. Essas são algumas das principais condições neurodivergentes representadas pelo símbolo do infinito colorido ou pelo quebra-cabeça, este último associado ao autismo. Enquanto essas imagens ganham espaço em campanhas na mídia, essa população também se destaca em produções audiovisuais de sucesso, como The Good Doctor ou Uma Advogada Extraordinária. Mas, afinal, onde estavam essas pessoas décadas atrás?
Em apenas um ano, o número de alunos com autismo matriculados nas escolas brasileiras aumentou 48%, de acordo com o Censo Escolar de 2023. O crescimento dos diagnósticos dessa condição é uma tendência global, conforme aponta o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. Na década de 1970, o autismo era identificado em cerca de 1 em cada 10 mil crianças. Em 1995, essa proporção subiu para 1 em cada 1.000 e, em 2023, alcançou 1 em 36, evidenciando uma evolução significativa nos índices.
Os dados referentes ao tamanho da população no TEA (Transtorno do Espectro Autista), por exemplo, ainda são desconhecidos. Porém, esse tema foi incluído na última pesquisa do Censo Demográfico 2022, ainda não divulgado.
A população neurodivergente é formada por pessoas que apresentam autismo, TDAH, dislexia, síndrome de Tourette, entre outras condições. Esses grupos são caracterizados por apresentarem diferenças no funcionamento cerebral que afetam áreas como percepção, processamento de informações, comportamento e interação com o ambiente. Essas diferenças podem incluir desafios em algumas habilidades, como atenção, leitura ou interação social mas, também, pontos fortes únicos, como criatividade, memória ou resolução de problemas.
Apesar da maior percepção da presença dessa população na sociedade e dos expressivos números de novos diagnósticos, há diferentes interpretações para explicar esse crescimento. A corrente científica majoritária considera três fatores principais: a amplitude dos diagnósticos, o maior acesso aos profissionais de saúde e a conscientização da população.
“Neurodiversidade é um conceito que reconhece a variabilidade do nosso funcionamento neurológico. Temos os marcos do desenvolvimento mas todos não seguem o mesmo padrão”, afirma Victor Eustáquio, sócio-fundador da Somar Special Care, psicopedagogo e especialista em neurociência. “Eles sempre existiram. O que mudou foi a percepção”, avalia.
Os pilares apontados pelo especialista são os avanços dos critérios de diagnósticos. Esse aperfeiçoamento seria uma das razões para o crescimento do número de pessoas diagnosticadas, incluindo os casos mais leves. Anteriormente, por exemplo, só seriam reconhecidos como autistas os quadros mais severos. Hoje percebe-se um panorama que considera perfis moderados e leves.
Os outros pilares apontados pelo psicopedagogo são justamente o maior acesso da população aos profissionais de saúde. Se anteriormente o comportamento distinto do filho era negligenciado pela família ou, nos casos mais graves, até escondido da sociedade, a procura pelos médicos foi ampliada nas últimas décadas.
Os investimentos mais massivos em comunicação midiática, seja pelo jornalismo ou no entretenimento, e nas campanhas educativas teriam levado também a sociedade a enxergar essa população que era invisibilizada. O Dia do Autismo, do TDAH, da Dislexia… entre tantas outras datas ajudaram a popularizar o tema.
No caso brasileiro, um marco importante foi a entrada em vigor da MBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), no ano de 2015. Considerada decisiva para a visibilidade e os direitos das populações neurodivergentes no Brasil, a lei reconhecia as pessoas no Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras condições neurodivergentes como parte do grupo de indivíduos com direitos ao acesso mais amplo a políticas de inclusão e suporte.
“Havia muitas pessoas neurodivergentes, sim, antes disso. Mas, elas não estavam abraçadas por essas leis de proteção, pelo direito ao tratamento. Além disso, só era considerado com TEA aquele paciente bem caracterizado. Mas hoje a gente sabe que o espectro autista é muito mais abrangente”, declarou o fundador e diretor executivo da Clínica Mundos, Leonardo Lyra.
Antes das leis e do avanço da comunicação, essa população não era percebida pela sociedade. “Muitas vezes essas pessoas estavam escondidas em casa pelas famílias, sofrendo em silêncio, ou eram aqueles indivíduos que tinha uma série de limitações mas tinham que se adequar ao ambiente normal. Isso não é incomum. Se fizermos esse exercício de parar um pouquinho e refletir, vamos lembrar daquele amiguinho da escola ou alguma pessoa próxima que poderia ser neurodivergente. Os dados atuais indicam que em cada sala de aula vamos ter pelo menos uma criança com essa característica”, afirmou Leonardo.
DESAFIOS EDUCACIONAIS
O avanço da população neurodivergente nas escolas é perceptível aos pais e um desafio às instituições. Se antes eram invisíveis, não chegavam às escolas ou dentro das salas de aula não tinham o devido apoio, hoje, a atenção educacional voltada para essas crianças está muito mais sofisticada. “Agora a gente tem muito mais conhecimento, mais embasamento e mais diagnóstico. Entendemos que essa quantidade de crianças já existia. Mas elas sofriam bullying, eram repetentes. Elas estavam lá, mas não eram vistas dentro da sua necessidade”, avalia a Gabriela Camarotti, diretora pedagógica da Escola Vila Aprendiz.
Com 16 anos de atuação, a escola percebeu o aumento da procura das famílias com diagnósticos de autismo, TDAH, entre outras neurodivergências. “A Vila nasceu com o pilar da personalização da educação. Nosso objetivo lá atrás já era conseguir fazer a trilha de desenvolvimento mais personalizada por aluno. Mas percebemos, sim, um aumento significativo das crianças neurodivergentes com as mais diversas necessidades”, constata a diretora. 7A instituição, portanto, desenvolveu uma abordagem pedagógica personalizada, que integra psicologia e educação especial, promovendo um ambiente acolhedor e inclusivo. O maior vínculo com as famílias das crianças e o investimento em capacitação contínua em neurociências e educação especial, inclusive com visitas anuais a escolas em São Paulo, para aprender novas práticas, estão nos esforços da escola. “Todo cérebro aprende, mas precisamos unir esforços para encontrar o caminho certo para cada criança.”
É crescente também a presença de estudantes autistas no ensino superior brasileiro, com mais de 6 mil matrículas em 2023. O número, que revela um crescimento de 500% em relação à 2017, reflete avanços nas políticas públicas de inclusão no País.
VIDA PROFISSIONAL
Ao perceber as potencialidades e as diferentes formas de aprender da população neurodivergente, Victor Eustáquio destaca que muitos autistas, por exemplo, conseguem desempenhos superiores. “Isso nos dá oportunidade de olhar pessoas diferentes que aprendem de forma diferente. Muitos deles, inclusive, têm um potencial que vai acima da linha média para o aprendizado, como o seu hiperfoco”.
Diante dessa percepção do perfil dos jovens neurodivergentes que conseguem se formar e iniciar uma vida profissional, há empresas que já estão atentas à acioná-los como um diferencial competitivo. “Hoje temos um mercado de trabalho que se direciona para a neurodiversidade. Acabam se apropriando de forma bem positiva nas empresas. Uma empresa que se propõe a contratar pessoas com neurodiversidade, em geral, olha as individualidades, entende e valoriza os potenciais de cada um. Acaba sendo uma empresa com menos demissão e com maior potencial de crescimento na ótica tecnológica”, afirmou o sócio-fundador da Somar Special Care.
Apesar disso, a inclusão desses profissionais ainda é desafiante, pois a maioria das empresas nunca ofereceu uma capacitação aos seus times sobre a temática da neurodivergência. Uma pesquisa realizada pela Consultoria Maya, em parceria com a Universidade Corporativa Korú, apontou que 86,4% dos mais de 12 mil respondentes nunca participaram de treinamentos ou programas relacionados ao tema no ambiente corporativo.
Mesmo assim, a maioria dos entrevistados (65%) nesse estudo afirmou que a neurodiversidade contribui positivamente para o ambiente de trabalho. Ao todo, 35% indicaram que a presença desses profissionais na empresa promove a criatividade e a inovação e 28,6% revelam que fomenta um ambiente de aprendizado.
TERAPIAS PARA A POPULAÇÃO NEURODIVERGENTE
Com o aumento dos diagnósticos, além dos serviços de educação, houve um aumento da demanda pelos serviços de saúde. No Recife, por exemplo, o poder municipal tem investido na construção do Centro TEA - Núcleo de Reabilitação Integral para os usuários do SUS (Sistema Único de Saúde). Já foram inauguradas quatro estruturas dessas e mais três estão sendo preparadas. A demanda de atendimentos pelo SUS, com a explosão de diagnósticos e da percepção da população para a pauta, é muito elevada e dificulta o acesso da população às terapias.
A demanda por terapias aos planos de saúde também foi identificada pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). A organização registrou um aumento no atendimento a crianças e adolescentes neurodivergentes. Os dados mostram que, em 2023, 9,41% dos beneficiários de até 15 anos de idade tiveram ao menos um atendimento em áreas como terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos e fisioterapeutas. Em 2019 foram apenas 5,25%. A terapia ocupacional foi uma das que mais se destacou, com um aumento de 217% nos atendimentos, especialmente para pacientes com diagnóstico de TEA.
Tem crescido também a demanda de clínicas particulares como a Mundos e a Somar Special Care, que conseguem unir em um mesmo espaço diversas terapias. Um dos desafios das famílias, por exemplo, é de buscar atendimentos especializados para seus filhos em lugares diferentes, dificultando muito a logística. O custo dos tratamentos, no entanto, é bastante elevado.
Um dos dramas vividos pelas famílias, de acordo com Victor Eustáquio, é que muitas mães acabam parando de trabalhar para se dedicar exclusivamente aos cuidados do filho. Um problema que gera mais dificuldades financeiras e com muita frequência termina em divórcios. “Para criar uma zona de conforto, colocamos todas as terapias em um só lugar. Nossas unidades têm todos os profissionais necessários para fazer uma boa intervenção e conversarem entre si. As famílias podem deixar seus filhos e buscar no final do expediente. Isso dá mais dignidade para as mães”, afirmou o fundador da Somar Special Care, que tem cinco unidades, atendendo 600 crianças.
A Mundos, por exemplo, atende atualmente duas mil pessoas, em quatro grandes clínicas (com 400 profissionais), sendo três no Recife e uma em Caruaru. “Nosso grupo envolve um braço assistencial, como clínica, para fazer tratamento. O outro braço é educacional para treinamento de pessoas que convivem com públicos neurodivergentes. Além disso, há um terceiro que é tecnológico, criamos uma plataforma voltada ao tratamento multidisciplinar. Sentimos carência dessa ferramenta no mercado e a desenvolvemos”, explicou Leonardo Lyra.
Em meio ao aumento significativo de diagnósticos e à visibilidade crescente da neurodiversidade, é essencial ampliar o diálogo e os investimentos em políticas públicas, educação inclusiva e capacitação profissional. Reconhecer as potencialidades e os desafios dessas populações não apenas promove a inclusão, mas também fortalece a sociedade ao valorizar as singularidades, as diferentes formas de aprender, criar e inovar de cada pessoa.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)