Ninho de Palavras

Ninho de Palavras

Bruno Moury Fernandes

Cuidado (por Bruno Moury Fernandes)

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Há, ali, no teu silêncio, na imagem dolorida da tua carne definhando sobre a cama, ainda assim, o cuidado. Há no teu cheiro e nos cabelos brancos que lambem minhas mãos, um cuidado. Há no embalo que tua presença proporciona, um cuidado. Não mais ouvir a história do teu joelho, a linha do trem sobre a qual caminhavas até chegar na escola, o dia do teu casamento, e a banana batida com leite condensado e farinha láctea que, infelizmente, não mais é preparada pelas tuas mãos, mas há nisso tudo, mesmo assim, o sabor do cuidado.

Essa falta de lucidez, essa falta de memória, essa falta de compreensão, efeitos de uma longeva vida, tudo isso cuidou de mim. Essa falta de conversa – das nossas brigas e conversas –, esse desapontamento com as fendas que a navalha do tempo abriu nas montanhas rochosas do teu rosto, tudo, absolutamente tudo, cuidou de mim.

Esse olhar vago que atravessa o meu, essa tristeza estampada na face enrugada, essas mãos cansadas com veias demasiadamente desenhadas e expostas, essas feridas que não cicatrizam, tudo, tudo, tudo fala sobre mim, cuida de mim.

Essa música que toca ao fundo e me enlouquece porque uma lágrima escorreu do canto do teu olhar, denunciando que você ainda está ali, conquanto perdido seja esse olhar, joga-me na cachoeira do tempo, levando-me para o teu colo de espumas, que desde sempre cuidou de mim.

Essa despedida que se aproxima, essa certeza da ruptura da nossa caminhada, essa maratona lenta dos ponteiros do relógio, essa ânsia pela interrupção do sofrimento físico, tudo cuida de mim. Esse banho diário dos raios de sol que atravessam a janela do teu quarto a iluminar teu corpo, imóvel, prostado em cima da cama, refletindo no metal do tubo de oxigênio o verde que nos deixa esperançosos com a proximidade do descanso merecido. Não merecias isso. E o teu não merecer de dor também cuida de mim.

Arranca-te daqui. Chega! Vai caminhar num jardim florido ao lado do teu Joãozinho, de mãos dadas, e espera-me para que um dia, num final de tarde de uma rua sem saída, com as cadeiras na calçada e com crianças soltando fogos de artifício, possas fazer um novo curativo no meu dedo machucado, eternamente agradecido e ansioso pelos cuidados teus.

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