“Dá para aplacar a fome e ganhar muito dinheiro com a biodiversidade brasileira” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“Dá para aplacar a fome e ganhar muito dinheiro com a biodiversidade brasileira”

Num momento em que se discute os caminhos para Pernambuco e o Brasil saírem dessa crise sanitária e econômica, a química de produtos naturais Cláudia Sampaio Lima aponta o uso racional e sustentável da biodiversidade brasileira como solução. Cláudia, que é professora da UFPE, alerta que existe um mundo de oportunidades em bionegócios que podem beneficiar de pequenos produtores às grandes indústrias, mantendo a floresta em pé. Para isso é necessária a união da sociedade, da academia e do governo. E é com essa filosofia que o ITCBio (Instituto Tecnológico das Cadeias Biossustentáveis) foi criado. Nesta conversa com Cláudia Santos, Cláudia Lima que é diretora do instituto, fala dos projetos da entidade, analisa os gargalos da inovação no País, cuja iniciativa privada não costuma investir em pesquisa, e aponta saídas com a bioeconomia.

Na sua opinião quais os principais gargalos para o desenvolvimento da inovação no Brasil e, especialmente, em Pernambuco?

No Brasil temos um problema muito sério de comunicação entre universidades e empresas. Fora do País, quem investe em inovação é a iniciativa privada. Tive a oportunidade de conhecer alguns centros de pesquisas, tanto na Europa quanto nos EUA, e o que observei é que a inovação é financiada pelas empresas que precisam se colocar no mercado e lançar novos produtos. E quem é que pode colocar as empresas à frente do mercado? São as universidades, são as cabeças pensantes que trabalham fazendo pesquisa básica, mas também pesquisa aplicada. Existe uma preocupação dos governos no exterior de também incentivar a pesquisa pública. Mas no Brasil, o que acontece é que o governo financia tudo: pesquisas básica e aplicada.

Por que São Paulo tem um nível de comportamento empreendedor mais arrojado que as outras cidades brasileiras?

É porque lá as universidades são financiadas pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), existe um polo industrial muito forte e uma parte dos impostos das empresas vão para essa fundação, para as universidades, para financiar projetos de pesquisa. Ou seja: impostos são revertidos em ciência e inovação.

O que impede uma maior participação da iniciativa privada nos investimentos de ciência e pesquisa e da academia em atuar com inovação com as empresas?

Professor universitário tem a mania de achar que a sua pesquisa é a coisa mais importante do universo. Eles pensam algo como: “quem tiver interesse que venha até a mim porque eu tenho vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais”. Só que a comunicação dessa forma não funciona. Por outro lado, as empresas têm muita pressa, não financiam pesquisa básica, eles querem a solução pronta, não entendem que existem pesquisas que estão patenteadas, que levaram 15 anos, com muita gente trabalhando. É aquela história de tentativa e erro, tentativa e acerto. E, muitas vezes, a pesquisa leva 15 anos porque os recursos são minguados, não há como pagar uma equipe.

Por que outros países do Brics, como a Índia, Rússia, China, desenvolveram vacinas contr a Covid e o Brasil, não?

Ouvi uma frase, já conhecida, que me bateu muito forte esta semana: brasileiro tem síndrome de vira-lata. Não valorizamos o trabalho local. Será que o Brasil não tem condições de desenvolver a vacina? Ele tem e já tinha há muito tempo. E por que o Brasil não estava fabricando vacina e o IFA (insumo farmacêutico ativo)? Por falta de incentivos. Fazia-se o feijão com arroz, e muito bem- -feito, porque erradicamos muitas doenças com vacinas do Instituto Butantan, da Fiocruz. Veja, eu tenho mestrado e doutorado em farmácia, faço palestras há muito tempo sobre insumos naturais nas quais sempre digo: se houvesse um bloqueio internacional, o País iria morrer doente.

O que é o ITCbio?

O instituto foi concebido dentro da UFPE, com trabalhos multidisciplinares. Todavia, não foi muito bem na universidade porque um grupo de professores ficou incomodado com essa situação de a pesquisa ser levada para a sociedade. Eu digo para meus alunos: “temos a obrigação de devolver para a sociedade os investimentos que ela fez em nós porque o meu salário e a universidade de vocês quem paga é a sociedade”. Como a gente pode retribuir, ao menos, minimamente, esse investimento?

É fazendo ciência de qualidade e levando para a sociedade. Com esse pensamento, aprovamos dois grandes projetos com a Sudene, envolvemos num deles mais de 60 pessoas e atuamos em três Estados – Pernambuco, Bahia e Piauí – com projetos colaborativos. Foi a partir deles que nasceu o ITCbio (Instituto Tecnológico das Cadeias Biossustentáveis).

Focamos em bioeconomia. A proposta do ITCbio é atender a sociedade, sem discriminações, desde agricultores familiares que precisam de um apoio em inovação até grandes indústrias. A sociedade é quem precisa de ciência, tecnologia e inovação e a partir dessa demanda, o ITCbio busca, com especialistas das universidades e dos institutos de pesquisas, ferramentas para resolver os problemas demandados. Sempre digo que ao se reunirem três ou quatro pessoas de áreas distintas para analisar um mesmo problema, cada uma terá um toque diferente. Se você consegue trabalhar de forma colaborativa, ouvindo todos os parceiros, você consegue uma solução muito mais ampla. A essência da bioeconomia é utilizar ferramentas científicas tecnológicas para apoiar cadeias produtivas sustentáveis, desde o básico, a produção do alimento, do bioinsumo até o consumidor final, passando pelas empresas.

Você poderia falar um pouco dos projetos que desenvolvem?

Temos uma diversidade grande de projetos. Vou falar de um simples, mas que promoveu uma diferença para a sociedade: o Jequiá Sustentável. O Jequiá é uma área do Recife que tem a única torre intacta de atracação do Zepelim do mundo. Existem três comunidades com vulnerabilidade socioeconômica muito alta que habitam o entorno do parque, que tem um conteúdo histórico fabuloso, mas, por não ter investimento, parecia um local abandonado. O que as pessoas fazem com um terreno que parece abandonado? Normalmente jogam lixo.

Fizemos um trabalho nas comunidades e instauramos hortas suspensas de espécies orgânicas e medicinais junto com a Secretaria de Meio Ambiente do Recife. Elas eram suspensas porque, dessa forma, ficam protegidas de animais, e o solo estava contaminado com lixo, depositado por décadas, e possuía uma quantidade grande de ferro que seria prejudicial às plantas. Fizemos oficinas de como plantar, de gestão financeira, apoiamos as crianças, realizamos colônia de férias, aula de educação ambiental. Com a pandemia houve uma paralisação do projeto que esperamos retomar. Estamos em contato com o gabinete da vice-prefeita para retomarmos e ampliarmos o projeto.

Também temos uma parceria com o Instituto Senai Inovação Biomassa do Mato Grosso do Sul, para executar análises de biomassas para cosméticos. [Biomassa são resíduos agrícolas, como o bagaço da cana, que podem dar origem a insumos de alto valor para fabricação de produtos como cosméticos, alimentos, fármacos]. Nessa área de cosméticos também temos a colaboração já formalizada com a Natura, para a qual fizemos um desenvolvimento tecnológico. Isso nos deu o direito de sermos fornecedores oficiais da empresa.

Trabalhamos também com capacitações. Temos um projeto, inclusive, de capacitação sustentável para apoiar comunidades na geração de renda e também atuamos na área acadêmica. No ano passado, realizamos o evento online internacional Biofito – Biocosméticos e Fitoprodutos, no qual conseguimos reunir mais de 14 mil pessoas de 30 países. Apresentei uma palestra sobre bioeconomia e biomas brasileiros. O Brasil tem a maior biodiversidade do planeta e o mercado desses ativos é gigantesco.

O que falta para o País criar inovação a partir desses biomas?

Voltamos à síndrome de vira-lata: valorizamos muito mais a flora de outros países do que a nossa. O primeiro medicamento para a malária veio do Brasil, descoberto pelas missões jesuítas na época das capitanias hereditárias. Os religiosos perceberam que os indígenas não morriam de malária porque produziam um determinado preparado com uma árvore, que na época tentaram levar para a Europa. Mas, ao fazerem isso, vários jesuítas morreram na fogueira acusados de bruxaria. Até que um lorde inglês e a mulher adoeceram de malária e um cientista disse que possuía um remédio que não era o produzido pelos indígenas. Após curar o lorde, ele confessou que usara o remédio vindo do Brasil. Ele foi condecorado e conseguiram depois reproduzir o medicamento e achar a fórmula que nada mais é do que o quinino, que veio das florestas brasileiras, e que hoje faz parte da água tônica que a gente toma.

Bom, depois do evento, estamos lançando o projeto que é um embrião do ITCbio e que agora está tomando uma dimensão muito grande que é o primeiro hub tecnológico chamado BioHub Connect que vai interligar universidades, empresas, governos. Vai permitir que universidades, institutos, empresas, pessoas que trabalham com inovação e com tecnologia no Brasil e depois com o resto do mundo, se conectarem e valorizarem a biodiversidade brasileira. Ele foi desenvolvido com a missão de promover a sustentabilidade real em todas as regiões do Brasil, transformando a nossa biodiversidade em bionegócios (negócios sustentáveis).

Eu li uma matéria em que um pesquisador amazonense dizia que em termos de bionegócios, o Amazonas ocupa cerca de 0,2% do mercado. Veja: dos seis biomas existentes no Brasil, o mais conhecido é o amazônico e ele representa apenas 0,2% do mercado internacional de produtos sustentáveis. Precisamos aprender a valorizar a prata local. Nós compramos produtos de fora e não exportamos o valor que a gente tem. E não é sair depredando, não, é fazer o uso racional, manter a floresta em pé, para ter os ativos dela e conseguir aplacar a fome das pessoas e, de quebra, ganhar muito dinheiro, porque dá para gerar renda com a biodiversidade brasileira.

Assine a Algomais e leia a entrevista completa na edição 182.4: assine.algomais.com

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