Reconstrução pós-pandemia: Desafios do Governo Raquel Lyra em Pernambuco

*Por Rafael Dantas, repórter da Algomais

Pernambuco tem pela primeira vez uma mulher eleita governando o Estado. Raquel Lyra assumiu nesta semana a liderança do Palácio do Campo das Princesas, encerrando um ciclo de 16 anos do PSB, em um momento de muitas dificuldades econômicas e sociais no País. Além da crise interna que rachou o Brasil em dois polos, os desafios ambientais se acumulam diante do avanço das mudanças climáticas. Durante o Painel Anual da Agenda TGI, o consultor Francisco Cunha apontou algumas das prioridades de desenvolvimento do Estado que podem nortear as ações públicas nos próximos anos.

VISÃO PARA 2037

Na Agenda TGI e no documento Pernambuco Além da Crise, produzido pela TGI em parceria com a Algomais e Rede Gestão e enviado aos candidatos ao Governo nas eleições 2022, o consultor apresentou a Visão de Pernambuco para 2037 (quadro abaixo), que tem como pilares o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida, com a promoção da justiça social, da responsabilidade ambiental e investimentos robustos em educação, ciência, tecnologia e inovação. Essa visão de longo prazo destaca também o desafio do Estado de fomentar o empreendedorismo e de avançar na eficácia na gestão pública.

“Depois de muitas discussões de diversos especialistas chegamos à seguinte conclusão, pensando na visão de longo prazo: a visão começa pela importância do incentivo à ciência, tecnologia e inovação, articulado com o reforço ao empreendedorismo dinâmico e à gestão pública. Isso só pode ser desenvolvido com CT&I. Não é possível avançar além do que se tem, se não tiver articulação adequada com a academia e institutos de pesquisa. Isso tem que ser o local de onde parte a motivação para o aperfeiçoamento”, defendeu Francisco Cunha. Francisco Cunha considera estratégico preparar as bases para um salto de qualidade capaz de adequar o modelo de desenvolvimento de Pernambuco às novas exigências políticoeconômico- sociais-ambientais, nacionais e internacionais.

Uma novidade do Painel Anual da Agenda TGI, porém, foi expor os desafios considerados estratégicos para os próximos quatro anos, que compreendem esse período da gestão de Raquel Lyra. Francisco Cunha apresenta como sugestões para a governadora: “Preparar as bases para um salto de qualidade capaz de adequar o modelo de desenvolvimento estadual às novas e acentuadas exigências político-econômico-socio-ambientais, nacionais e internacionais, decorrentes da pós-pandemia, da nova geopolítica mundial e das mudanças climáticas aceleradas”.

CONTAS PÚBLICAS EM EQUILÍBRIO

Para conduzir o Estado a essa transição do modelo de desenvolvimento, um dos fatores positivos que Raquel Lyra deve encontrar é o equilíbrio fiscal. Enquanto o Estado tem importantes problemas a serem superados nos próximos anos, como destacamos na série Desafios do Desenvolvimento de Pernambuco, no que diz respeito às contas públicas, Raquel Lyra assumirá um cenário reverso do nacional. Enquanto no País houve expansão da dívida nos últimos anos, no contexto local ela foi reduzida a patamares históricos.

“Pernambuco tem um ponto relevante na passagem de governo que temos que destacar, que são as contas públicas, pois atingiu o seu menor endividamento em 21 anos. Pernambuco reduziu a dívida pública estadual que caiu de 53,18% em 2019 para 21,5% em 2022. Isso é muito importante, porque o Estado está com o menor endividamento da sua história recente e a capacidade de crédito restaurada”, destacou o consultor Francisco Cunha.

Para se ter ideia do respiro que esse ajuste de contas proporciona para o Governo do Estado, a dívida pública pernambucana chegou a ser de 130,7% do PIB no começo do século. Esse endividamento reduziu para 38,3% em 2011. Ela voltou a subir, chegando a 72,5% em 2015. Nesse momento inicia uma trajetória decrescente até o patamar atual. “Isso é importante, porque o governo encerra esse ciclo com dinheiro no caixa e o Estado pode contrair outras dívidas para investimento”, ressaltou Francisco Cunha.

MERCADO GLOBAL PASSA POR SUAPE

A conexão do Estado ao mercado global tem em Suape um dos protagonistas. O principal polo de atração de investimentos do Estado, o Complexo Industrial e Portuário de Suape, também tem um caminho traçado para os próximos anos. Os anúncios dos investimentos bilionários do segundo terminal de contêineres pela Maersk (R$ 2,6 bilhões) e do novo Terminal Regás que será explorado pela holding brasileira OnCorp (R$ 2 bilhões), além da construção da Transertaneja, empreendimento da Bemisa que conectará Suape a Curral Novo, no Piauí (que mobiliza R$ 5,7 bilhões da ferrovia, mais R$ 1,5 bilhão para o Terminal de Granéis Sólidos Minerais) são os protagonistas do novo ciclo dessa região.

“A chegada do segundo terminal de contêineres deve baixar os custos de Suape. Outro fator importante foi a retomada da autonomia do Porto, 10 anos depois”, destaca Francisco Cunha.

Suape está inserido também numa das grandes tendências globais que é o hidrogênio verde (H2), com a perspectiva de instalação de um polo dessa fonte energética. Com a demanda mundial elevada desse combustível, a produção pernambucana tem grande potencial de exportação para a Europa e mesmo de atrair para o Complexo mais indústrias que utilizem o H2. A consolidação desses investimentos no Estado, com atração de novos players e acompanhamento dos que já foram anunciados, é um dos desafios no horizonte da nova governadora que estão antenados com a internacionalização da economia de Pernambuco.

Na capital pernambucana, uma das expectativas da gestão é o apoio ao Porto Digital, principal polo tecnológico, conectado ao mercado global, que tem sofrido especialmente com a escassez de mão de obra. Na contramão das demais atividades econômicas, é a ausência de profissionais que cria riscos ao setor e que deve estar na agenda de prioridades do Governo do Estado.

FORTE DESAFIO SOCIAL

Os últimos relatórios sobre os cenários socioeconômicos do País expõem que entre todas as metas dessa visão, a justiça social é onde está o maior desafio. No Ranking da Pobreza (2021), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas, Pernambuco aparece como o 4º lugar no País, com 50,32% da sua população com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 497 mensais. Embora esse seja um problema histórico, ele foi muito agravado pela pandemia. Em 2019, último ano antes da chegada da crise sanitária, o Estado estava em 11º lugar nesse mesmo ranking, com 42,19% da população abaixo da linha da pobreza.

Mesmo com algumas atividades econômicas de ponta e com fortes investimentos na indústria do futuro, o Estado segue com uma das taxas de desemprego mais elevadas do País. Segundo a última Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (relativa ao segundo trimestre de 2022), Pernambuco tinha 13,6% de desempregados. Esse percentual colocava o Estado em segundo lugar no País em população desempregada. Apenas a Bahia vive uma situação pior.

Outra revelação preocupante sobre o cenário de desemprego a ser enfrentado, segundo a pesquisa SIS (Síntese de Indicadores Sociais) do IBGE, é que Pernambuco é um dos Estados do País onde os trabalhadores demoram mais tempo para conseguir um novo trabalho. No estudo, que analisou os dados de 2021, indicou que 40,9% dos desempregados no Estado demoravam mais de dois anos para retomar a vida profissional. Só o Rio de Janeiro tem um desempenho pior nesse indicador.

Para o cientista político Túlio Velho Barreto, da Fundação Joaquim Nabuco, muitas das prioridades de Raquel Lyra na sua gestão são as mesmas de outras eleições, porque as necessidades e as carências da maioria da população não têm mudado significativamente. “O foco deve ser social, sem perder de vista as questões econômicas, que repercutem na empregabilidade, por exemplo. São prioridades sempre inadiáveis na área da saúde e da educação, e no tratamento dispensado aos profissionais que atuam nesses setores, na defesa social, e este é um ponto importante diante do comportamento de policiais militares nos últimos anos e da forma como muitos têm se armado a partir da política beligerante no período Bolsonaro”.

Entre os nós a serem desatados por Raquel Lyra numa agenda social mais ampla, o cientista político destaca ainda a superação do enorme déficit de moradia no Estado, além de ter o desafio de não criminalizar os movimentos sociais, como o MTST, e fomentar a atividade cultural. “Na área da cultura é preciso lembrar que esse foi um segmento particularmente atingido com a pandemia e o isolamento social, portanto são necessárias a manutenção e ampliação de editais e recursos para atender às demandas de artistas e técnicos do setor. São também imprescindíveis efetivas políticas voltadas às mulheres, às juventudes, ao segmento LGBTQIA+, sempre colocados em segundo plano pelos governantes, quando não garantem condições para que se viva bem o presente, muito menos para que se tenha um futuro melhor, bem como ações que combatam as diversas formas de intolerância e discriminação, com políticas afirmativas”.

MEIO AMBIENTE

Se a agenda ambiental está no centro das discussões no globo e no País, em Pernambuco não é diferente. Com os riscos da elevação do nível do mar na região litorânea, o processo de agravamento climático no semiárido e os episódios mais recorrentes de chuvas torrenciais, provocando cheias e deslizamentos de terra, a prevenção aos efeitos das mudanças climáticas se tornou algo do presente e não mais do futuro.

Por outro lado, quando a economia do futuro se volta para atividades produtivas também sustentáveis, o Estado tem oportunidades importantes no horizonte. “O Brasil precisa desenvolver um modelo econômico adequado a cada um dos seus biomas. Na Caatinga é fundamental criar um crédito de carbono que além de simplesmente quantificar o carbono, agregue valores de inclusão social, redução de desigualdades, justiça climática, proteção da biodiversidade e contenção da desertificação. O semiárido nordestino é uma das regiões mais impactadas pelo aquecimento global e abriga mais de 28 milhões de pessoas que não foram responsáveis pelas altas emissões de gases de efeito estufa”, alertou Sérgio Xavier, ex-secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, articulador do CBC (Centro Brasil no Clima) e desenvolvedor do Projeto HidroSinergia – Lab de Economia Regenerativa do Rio São Francisco.

Xavier ressalta que além das possibilidades de uso sustentável da Caatinga viva, de pé, com redes de bioindústrias e bases de agroecologia familiar, o semiárido tem um potencial energético gigantesco. “Com políticas públicas comprometidas com a capacitação inclusiva, empregos planejados e modelos cooperativos de produção de energia renovável é possível criar um novo desenvolvimento regional sintonizado com a economia do descarbono e a redução acelerada da pobreza. Os Projetos HidroSinergia e Nordeste Potência são iniciativas com esses propósitos e que estão mobilizando governos e lideranças na defesa do Rio São Francisco, da Caatinga e das comunidades locais”.

Se no panorama nacional, a Amazônia tem conseguido maior atenção e investimentos das grandes organizações internacionais, a Caatinga tem o desafio de encontrar o seu caminho para avançar nesses modelos de desenvolvimento sustentável. “Atualmente a Caatinga vem sofrendo muito com o desmatamento, a prática ilegal tem beneficiado as indústrias dos setores de cera e de gesso. Enquanto a atenção do mundo aponta apenas a Amazônia por ser o maior bioma do planeta, outros biomas relevantes têm sofrido com o desmatamento ilegal provocado pela indústria predatória em número comparativo ao da Amazônia.”, afirma Tatiane Simão, fundadora e CEO da empresa Somos Todos Amazonas.

Ela defende que a academia deve ser a grande aliada para evitar esse desmatamento. “Hoje não existe solução gerada para alimentar essas indústrias, a integração e o compartilhamento de novos e antigos saberes é a chave para sanar as problemáticas, e, por conseguinte, melhorar o ambiente de negócios e as relações com investidores mundiais, ponto a se destacar para a reestruturação da nossa economia. A participação de todos os biomas nesse ciclo de desenvolvimento é fundamental para o fortalecimento das políticas de conservação como para a transição para a economia baseada no uso dos ativos integrados ao conhecimento da academia”.

O fomento, portanto, das pesquisas nas universidades para encontrar novas soluções de desenvolvimento no bioma que toma uma parcela significativa do território pernambucano é um dos desafios de Pernambuco e dos demais Estados da região.

No Painel Anual da Agenda TGI, Francisco Cunha ressaltou também a capacidade de geração de energias renováveis no Estado, principalmente eólica e solar. As oportunidades nesse campo são bem distribuídas no Estado. Enquanto as plantas de hidrogênio verde têm Suape como destino, as usinas solares e eólicas já têm investimentos em desenvolvimento na Zona da Mata, Agreste e Sertão.

Ainda na questão ambiental, Túlio Velho Barreto alerta para a necessidade de dialogar com os segmentos da sociedade civil organizada sobre os malefícios trazidos pelo modelo adotado na construção e implantação de Suape e na discussão sobre as iniciativas em torno da instalação de uma usina nuclear no Estado. Em um campo mais socioambiental, o pesquisador da Fundaj propõe uma atenção especial à agricultura familiar.

CENÁRIO POLÍTICO COM INCERTEZAS

Túlio Velho Barreto também avalia que os principais desafios políticos da governadora Raquel Lyra estão relacionados ao fato de não ser uma aliada do presidente Lula, e isso em um Estado que deu uma acachapante vitória ao petista e seus aliados. Ele lembra, porém, que em seus outros mandatos, o presidente não teve gestões de retaliações a adversários, como nos quatro anos em que Pernambuco foi governado por opositores (2003-2006).

Raquel Lyra, porém, não tem se posicionado como uma opositora do Governo Federal, mas como independente. No primeiro turno das eleições de 2022, a governadora apoiou Simone Tebet (PMDB), hoje aliada de Lula. No segundo turno, Lyra ficou neutra. “É fato que Pernambuco beneficiou-se bem mais quando Eduardo Campos (PSB) foi governador tendo Lula como aliado em Brasília (2007-2010). Portanto, diante da escassez local e nacional de recursos, uma governadora não aliada do Governo Federal poderá ter mais dificuldades de tocar a sua gestão. Destacar isso é importante porque sabemos que a economia influencia na política e, por assim dizer, no humor dos atores políticos e nos agentes econômicos, sejam locais ou nacionais. E isso é um dificultador ou facilitador para quem está à frente da gestão pública, sobretudo nos Estados, em um arranjo federativo em que o poder federal pode mais”, afirma Túlio Velho Barreto.

Apesar do desalinhamento, o presidente eleito reiterou em várias oportunidades que manterá uma relação pacífica e de diálogo com os governadores. Em uma entrevista durante a COP 27 (Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas), no Egito, o governador do Tocantins, Wanderlei Barbosa (Republicanos), que foi apoiador de Bolsonaro, afirmou que o presidente Lula pediu aos governadores três projetos estratégicos de cada Estado para que fossem analisados e apoiados no que fosse possível.

Existem muitos desafios e expectativas acerca da gestão de Raquel Lyra no Palácio do Campo das Princesas, especialmente após a pandemia. As agendas que a governadora irá priorizar e os instrumentos adotados para alcançar os diversos saltos que o Estado precisa devem ser conhecidas nos seus primeiros dias de gestão.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)

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