Por Tiago Portella
Nos últimos anos, tenho visto um movimento curioso, e perigoso, no empreendedorismo brasileiro: a corrida pela digitalização a qualquer custo. Muita gente acredita que tecnologia é sinônimo de modernização automática. Não é. E aprendi isso dentro da minha própria história.
Venho de uma empresa familiar construída pelo meu pai, Jorge, com o que hoje considero o maior ativo que um negócio pode ter: relacionamento humano genuíno. Antes de dashboards, CRMs e automação, o que movia a JA Portella era a confiança construída olho no olho, no corredor do supermercado, no balcão do atacado, nos anos de estrada onde reputação valia mais do que qualquer métrica.
Quando decidi deixar a carreira corporativa para me juntar a ele, eu tinha uma convicção — precisávamos modernizar a operação. Mas também carregava um medo: como profissionalizar sem apagar a essência?
Digitalizar, sim. Desumanizar, jamais.
A tecnologia que aproxima pode ser a mesma que afasta
A transição não foi sobre comprar sistemas, mas sobre mudar mentalidades. Implementamos automação de pedidos, indicadores de desempenho, reorganização comercial, definição clara de metas e um modelo de gestão orientado por dados. Crescemos. Escalamos. Nos tornamos mais competitivos no setor alimentício, que é um dos mais desafiadores do país.
Mas no meio desse processo, ficou evidente uma verdade que muita gente ignora:
tecnologia não substitui relacionamento; ela só amplifica o que já existe.
Se o negócio tem vínculos fracos, a digitalização só evidencia isso.
Se o negócio tem vínculos fortes, a tecnologia potencializa.
O que fizemos foi garantir que cada melhoria tecnológica estivesse ali para dar velocidade, precisão e controle, sem bloquear o que sempre sustentou nossa operação: a proximidade com o cliente. Em vez de trocar o “bom dia” por um chatbot, usamos o chatbot para que o bom dia chegasse mais rápido. Parece simples, mas essa é a fronteira que muitos negócios têm atravessado sem perceber.
Profissionalizar sem romper: um desafio silencioso nas empresas familiares
Outro risco comum é acreditar que profissionalização exige ruptura. Não exige.
Eu e meu pai sempre dividimos responsabilidades com clareza: ele segue como referência comercial e institucional; eu assumi gestão, tecnologia e estratégia. Isso reduziu conflitos e criou um ambiente favorável à inovação.
E é aqui que mora outro ponto crucial da digitalização:
não basta instalar sistemas; é preciso alinhar expectativas, papéis e decisões.
Processos só funcionam quando as pessoas sabem para onde estão indo.
Empresas familiares quebram não por falta de tecnologia, mas por falta de comunicação.
A armadilha de confundir modernização com descarte
Digitalizar não significa apagar a história.
Digitalizar não significa automatizar o que deveria ser humano.
E, principalmente, digitalizar não significa trocar relacionamento por escala.
A verdadeira modernização acontece quando tradição e inovação caminham juntas.
O velho e o novo não são inimigos — são complementares.
Na JA Portella, manter o vínculo humano foi escolha estratégica. A tecnologia entrou para dar inteligência ao processo; o coração continuou sendo o contato direto. E é justamente isso que tem nos diferenciado em um mercado onde tudo está ficando igual, acelerado e impessoal.
A digitalização será o maior divisor de águas do empreendedorismo brasileiro — para o bem ou para o mal
Tenho acompanhado de perto o varejo, a indústria e as tendências nos principais eventos do setor, como ABAD e APAS. Todos dizem a mesma coisa: quem não digitalizar, fica para trás.
Eu acrescento: quem digitalizar errado, fica para trás do mesmo jeito.
Estamos entrando em uma fase sobre quem consegue usar dados sem perder sensibilidade; quem consegue escalar sem perder voz; quem consegue operar com precisão sem perder o toque pessoal.
A pergunta não é mais se você deve digitalizar. A pergunta é: você conseguirá digitalizar sem desumanizar?
Se eu pudesse resumir tudo em uma única frase, seria esta: "A tecnologia pode guiar o processo, mas é o relacionamento que sustenta o negócio."
A trajetória da minha família é prova disso. E acredito que esse será o caminho mais saudável , e mais competitivo , para o futuro das empresas brasileiras.
*Tiago Portella é administrador e sócio da JA Portella
Publicado por Rafael Dantas
