Do Colapso à Reconstrução: O Que Fazer Diante Do Colapso Da Segurança Pública? - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
Do colapso à reconstrução: o que fazer diante do colapso da segurança pública?

Rafael Dantas

Raul Jungmann explica, no Pernambuco em Perspectiva, por que o Brasil precisa de um Sistema Nacional de Segurança Pública antes que o crime organizado vença.

*Por Rafael Dantas | Fotos: Tom Cabral

O Brasil corre o risco de se tornar um narcoestado. Ou seja, o poder do tráfico ilegal de drogas está avançando em território nacional no domínio de instituições legítimas do País, como no poder político, empresarial e em instâncias jurídicas. O alerta foi feito pelo ex-ministro da Segurança Pública e da Defesa, Raul Jungmann, e pelo consultor Francisco Cunha, durante o encontro Pernambuco em Perspectiva - Estratégia de Longo Prazo, nesta semana. O projeto é uma realização da Revista Algomais e da Rede Gestão, com patrocínio do Banco do Nordeste do Brasil e do Governo Federal. Para conter a escalada da violência e enfrentar o domínio das facções, ele defende que todos os esforços devem partir da criação de um verdadeiro Sistema Nacional de Segurança Pública (Susp).

Enquanto o crime organizado está distribuído em praticamente todo o território brasileiro e com atuação até em outros países, o combate ao tráfico está fragmentado nos sistemas estaduais de segurança pública. Jungmann explicitou na sua apresentação que, constitucionalmente, não há coordenação central da segurança pública no Brasil. Ela é de responsabilidade estadual, sem articulação nacional nem vinculação orçamentária. O papel dos municípios também não é mencionado nesse esforço de combate à violência."O nosso sistema de segurança pública, que não é um sistema, é funcional à criminalidade, à violência e à insegurança do nosso País", criticou Raul Jungmann. 

Associado a isso, o crescimento acelerado do encarceramento tem retroalimentado o tráfico. Com a superlotação do sistema prisional e nenhuma expectativa de regeneração dessa população, é criado um ambiente propício à entrada de uma massa cada vez maior de brasileiros a serviço das facções. “Nós tiramos bandido da rua e o que é que acontece? O que acontece é que nós estamos engordando os exércitos do crime organizado, que nos violenta, sequestra e mata”, relatou.

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A quantidade de indivíduos privados de liberdade no Brasil em 2024, segundo dados da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), é de aproximadamente 885 mil pessoas. Dez anos antes, esse número era de 622 mil. Trata-se da terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, que têm muito mais habitantes. Caso o ritmo de crescimento anual de 8,3% se mantenha, o País pode dobrar esse total até 2033.

Grafico Seguranca Publica

FORÇA ECONÔMICA DAS FACÇÕES

Um estudo realizado pelo think tank Esfera Brasil estima que as facções criminosas podem movimentar até R$ 335 bilhões por ano apenas com o tráfico de cocaína no Brasil. O montante representa cerca de 4% do PIB (Produto Interno Bruto) do País, evidenciando o poder econômico paralelo que sustenta o crime organizado. Além do tráfico de cocaína, as facções têm ampliado sua atuação para setores legais da economia brasileira. Essas organizações criminosas estão infiltradas em atividades como mineração, comércio de combustíveis, transporte público e mercado imobiliário, utilizando esses setores tanto para lavar dinheiro quanto para ocultar produtos de crimes. Ao todo, o estudo identificou 21 atividades com fluxos ilícitos em operação no Brasil, muitas delas com ramificações internacionais.

“A degradação da segurança pública e o avanço do crime são fatores de grande impacto na realidade brasileira e estadual”, afirmou o consultor Francisco Cunha.  Ele mencionou, a partir de pesquisas e do noticiário, que as facções já controlam, por exemplo, mais de mil postos de gasolina no País. Um problema que tem chegado também ao Estado. “Segundo o presidente do sindicato dos postos de gasolina em Pernambuco, 30 postos já foram identificados como de propriedade do PCC”.

Francisco Cunha palestra raul

Francisco Cunha alertou para a infiltração das facções não só no tráfico de drogas, mas em setores legais também. “A degradação da segurança pública e o avanço do crime são fatores de grande impacto na realidade brasileira e estadual”, afirmou.

Essa influência financeira obtida a partir do tráfico e das atividades ilícitas permite às facções ampliar sua penetração em setores legais da economia, garantir a fidelidade de membros e aliados, e corromper agentes públicos. A combinação de recursos e controle fortalece o poder dessas organizações, dificultando ainda mais o enfrentamento da criminalidade no Brasil.

RESISTÊNCIAS AO SUSP

Apesar do risco que isso representa ao País, um fato dado nos diferentes grupos políticos que estiveram no Governo Federal é de que há o distanciamento – ou até a repulsa – ao envolvimento com essa pauta. Jungmann declarou no evento que governos de direita, centro e esquerda se esquivaram de puxar a bandeira do Susp.

Diferentemente da Reforma Tributária, uma pauta complexa que avançou no Congresso Nacional graças à articulação conjunta dos estados, a agenda da segurança pública carece desse mesmo alinhamento de unidade política. O contexto de polarização vivido no Brasil contribui para esse desajuste. 

“Há uma resistência pelo polo político. Nós temos eleição em 2026. Um governador de oposição, por exemplo, pode achar que isso pode ser uma vitória do governo central e não beneficia os projetos dele [e ser contrário ao SUSP]. Temos visto isso. A segunda resistência parte dos governadores e dos comandos policiais. Por quê? Porque temem a perda de poder”, sentenciou Jungmann.

Essa disputa pelo poder é um fator importante que dificulta o avanço da unificação do sistema de segurança no Brasil. Porém, ele considera ser possível construir no debate público no Congresso Nacional uma solução mediada, que minimize os receios existentes hoje dos governadores e dos comandantes das forças policiais.

A falta de um debate mais profundo sobre essa pauta, no entanto, impossibilita que sejam construídos consensos para a aprovação do Susp na Constituição. "Esse é um tema interdito. É um tema que vocês não vão ouvir falar sobre ele porque esse é um tema maldito. E ele é o coração das trevas daquilo que nós vivemos”, afirmou Jungmann.

CAMINHO PARA APROVAÇÃO DO SUSP E EFEITOS ESPERADOS

A constitucionalização do Susp precisa da aprovação via Proposta de Emenda à Constituição, com definição clara de competências e a garantia de financiamento estável, nos moldes do SUS. Essa seria a "alavanca" para reestruturar o enfrentamento ao crime organizado no País. Durante o debate, foi sugerida uma mobilização da sociedade civil para alertar a classe política da urgência da pauta.

Jungmann considera que, em consequência da aprovação do Susp, deveria ser aprovado também um financiamento vinculado por percentual da receita bruta da União. Um modelo  semelhante ao da saúde e da educação, com previsão de uma fração obrigatória do orçamento federal destinada à segurança pública, com base em critérios técnicos e redistributivos.

Mais que apenas orçamento, essa mudança levaria a uma posição de coordenação federal da agenda da segurança pública, mas com respeito à autonomia dos estados. Esse trabalho conjunto, somando os esforços dos diferentes entes da federação e não de forma fragmentada, deve levar ao fortalecimento da inteligência e combate à infiltração do crime organizado no Estado.

SUPERAÇÃO DA DESCONTINUIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Durante o evento, duas declarações escancaram como a alternância de poder dentro desse ambiente de polarização prejudica as políticas públicas de segurança. O ex-secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, Pedro Eurico, que estava no auditório, mencionou que durante a gestão de Raul Jungmann, o então ministro garantiu recursos para a construção de três unidades do presídio de Itaquitinga. Porém, com a ascensão de Sérgio Moro, já no Governo Bolsonaro, o recurso foi enviado para o Paraná, o estado de origem do atual senador.  

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Pedro Eurico defendeu que a segurança pública seja uma política de estado para que não sofra com as mudanças de mandatos. Disse que na gestão de Jungmann, no ministério, obteve verba para construção de presídio em Pernambuco e, com a ascensão de Sérgio Moro, o recurso foi enviado ao Paraná.

“Raul iria passar para o Governo de Pernambuco R$ 60 milhões para a gente concluir as unidades [do Presídio de Itaquitinga]. O que aconteceu? Assume o ministério o ministro Sérgio Moro e ele manda me chamar porque o dinheiro já tinha saído da conta de Pernambuco e ido para a do Paraná. E aí eu fiz um acordo. Eu disse: "Vamos dividir o dinheiro do meio, você faz o seu presídio lá e eu termino o daqui”. E não conseguimos. Então, esse é o exemplo do que é ausência de continuidade em políticas públicas.”, afirmou Pedro Eurico.

Ao comentar o assunto, Raul Jungmann explicitou outro caso. Ele confessou ter amargura por ter deixado no Ministério da Segurança Pública recursos destinados para a construção de quatro unidades do Compaz (Centros Comunitários da Paz). Porém, o ex-ministro afirmou que foi construído apenas um equipamento, por questões burocráticas.  Ambas as declarações expõem a necessidade da construção de um sistema que esteja acima dos desejos partidários e do gestor que estiver à frente naquele momento no poder.

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COMPAZ PAULO FREIRE. Foto: Wesley D'almeida/PCR

INTEGRAÇÃO COM OS MUNICÍPIOS

Além dos caminhos e dos efeitos esperados da nacionalização das ações de segurança pública, o ex-secretário de Segurança Cidadã do Recife, Murilo Cavalcanti, ressaltou também o papel dos municípios nessa agenda pública. Ele lembrou a experiência de Medellín, na Colômbia, como um exemplo da adoção do urbanismo social, impulsionado pelo poder municipal, para reverter os indicadores de violência.

“A gente entra e sai de qualquer favela de Medellín e o risco de se sofrer alguma violência é muito perto de zero. Essa que foi a cidade mais violenta do mundo, chegou a taxa de homicídio de 381 para 100 mil habitantes, fechou o ano passado com 11 para 100 mil habitantes. Neste ano, está com menos de 10. Isso mostra que é possível. Faço um apelo, porque eu estou estudando esse tema há quase 20 anos, para que a gente possa se mobilizar. Não podemos aceitar isso de maneira nenhuma”, afirmou Murilo Cavalcanti. “A gente precisa colocar isso na agenda do dia para o Brasil não virar a Colômbia dos anos 80 e 90”.

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Fazendo uma comparação com a interlocução municipal e federal, Murilo Cavalcanti informou que a atual prefeita da Cidade do México, Clara Brugada, se reúne todas as segunda-feiras com a presidente da República do México, Claudia Sheinbaum, para tratar da segurança pública. “A gente aqui [no Brasil] não vê, de maneira nenhuma, essa integração entre município, estado e União”, criticou Murilo Cavalcanti.

A criação de um Sistema Nacional de Segurança Pública não é apenas uma reforma institucional – é uma resposta urgente à escalada do crime organizado e ao risco de erosão das estruturas democráticas. Enquanto o poder das facções cresce com base em articulação, capilaridade e recursos bilionários, o Estado permanece fragmentado, sem estratégia unificada. Superar resistências políticas, integrar municípios e federalizar o combate à violência são medidas indispensáveis para impedir que o Brasil siga o caminho de outros países que sucumbiram ao narcopoder.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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