Após uma semana marcada pelas atividades do Dia da Consciência Negra e pela morte bestial de João Alberto no Carrefour, é alentador conhecer a trajetória de Domitila Barros. Moradora da Linha do Tiro, na periferia do Recife, Domitila cresceu em meio ao trabalho da mãe, Roberta, à frente da ONG CAMM (Centro de Atendimento a Meninas e Meninos), que oferece atividades de lazer e educação para os jovens da comunidade. Domitila era responsável pelas aulas de leitura, dança e arte, um trabalho pelo qual foi escolhida pela ONU como um dos jovens “sonhadores do milênio”, aos 15 anos.
Formada em serviço social, com mestrado em políticas sociais pela Universidade de Berlim (Alemanha), Domitila
tornou-se também modelo e criou uma marca de moda praia e biojoias cujas peças são feitas por mães solteiras da Linha do Tiro para quem é revertido o resultado das vendas. Sua mais recente conquista foi ter sido escolhida embaixadora mundial da Symrise Cosmetics Ingredients, companhia com sede na Alemanha, que produz matérias-primas utilizadas por empresas de beleza. São produtos naturais, produzidos por pequenos produtores rurais alemães. Com essa pegada ecológica, a Symrise viu em Domitila a identidade perfeita de uma embaixadora com características de diversidade, respeito ao meio ambiente e impacto social. Com sua beleza negra, a recifense estrela a campanha com posts para 80 mil seguidores no Instagram e com a imagem estampada em todas as ações de marketing na Europa e, em breve, nos Estados Unidos, Emirados Árabes, América Latina, Ásia e África. Nesta entrevista a Cláudia Santos, a modelo de 36 anos conta a sua história, fala de temas como sustentabilidade e negritude e de seus planos futuros.
Como você saiu da Linha do Tiro para Berlim?
Uma coisa que me marcou muito no contexto da minha história de vida foi o fato de ter nascido no CAMM, na Linha do Tiro, periferia do Recife. Quando penso nos caminhos e aventuras que a vida me proporcionou, lembro que nasci em condições humildes, mas cheia de amor. Amizade, lealdade, confiança, carinho, proteção e fé são fontes de força e motivação diária. Meus pais criaram o projeto CAMM que atende as crianças da comunidade da Linha do Tiro,
além do Morro da Conceição, Alto José Bonifácio e adjacências, tudo isso antes do meu nascimento. Então, tudo o que sei e aprendi sobre a vida foi sempre dividido ali dentro, com os amigos, educadores, visitantes, professores e pesquisadores.
Ainda na infância tive a oportunidade de acompanhar meus pais em uma visita à Europa. Eles viajaram como palestrantes sobre o trabalho com as crianças em situação de risco. Com essa experiência, foi despertado em mim esse espírito aventureiro de querer sempre ir a lugares desconhecidos e conhecer culturas novas. Esse desejo me levou a Berlim aos 21 anos para fazer o meu mestrado. Na época fui descoberta por um olheiro de uma série alemã chamada GZSZ. Fui convidada para um teste e daí surgiu a primeira oportunidade de trabalhar na TV alemã. A experiência foi incrível e, por um ano, trabalhei na série de horário nobre. O trabalho me rendeu outros frutos na carreira. Meu pai sempre quis que eu me formasse no Brasil antes de embarcar para o exterior. Para eles, a educação vem em primeiro lugar. Então, a oportunidade da bolsa de estudos para o mestrado foi o que me permitiu viver em Berlim. Sair da Linha do Tiro foi muito difícil porque eu sou uma pessoa muito família e a nossa família é muito unida. Mas, como ainda vim muito jovem, acho que a adaptação foi mais fácil.
O que representou para você ser escolhida como um dos “sonhadores do milênio” pela ONU?
Foi uma surpresa incrível e uma das coisas mais importantes na minha trajetória de vida. Isso me possibilitou várias oportunidades até hoje, coisa que eu jamais teria vivido se não tivesse sido escolhida naquela época. Com as pessoas que conheci mantenho contato até hoje. Elas vivem espalhadas pelo mundo e, mesmo depois de 20 anos, a nossa conexão só cresce a cada ano. O meu sonho ganhou um empurrão de autoestima e de ideias a serem focadas num âmbito mais universal do que local a partir daquele momento. Creio que isso foi um acontecimento marcante que vou levar pra sempre no meu coração e na memória.
Como surgiu a ideia da marca She is from the Jungle? E como foi a apresentação da coleção na Semana de Moda de Berlim?
Foi bem espontânea. Eu estava trabalhando como modelo na época e tinha acesso aos bastidores, o que me deu um
entendimento e interesse de moda mais detalhado e do que significa essa indústria. Foi quando percebi que a indústria de moda polui mais que aviões e navios. É a segunda maior consumidora de água no mundo, como apontam os especialistas e os sindicatos do setor. A maioria dos itens de vestuário de grandes marcas tem produtos químicos perigosos, além da geração de lixo, etc. Pensei o seguinte: por que não juntar o prazer pelo trabalho como modelo à criação de uma marca com uma proposta mais ambiental, social e empoderada? Comecei, então, com a produção de 20 biquínis feitos manualmente por amigas na comunidade da Linha do Tiro. Trouxe as peças para a Europa e as clientes enlouqueceram. Vendi tudo rapidinho! Primeiro, vendi às amigas e depois pela internet. Depois do sucesso com os biquínis, surgiu a ideia das biojoias. Tudo sempre pensando na questão ambiental.
Como é feita a comercialização das peças?
As peças são feitas por mães solteiras da comunidade da Linha do Tiro. Essa foi uma maneira encontrada para gerar
renda para essas mulheres, muitas vezes abandonadas pelos companheiros e que sustentam a casa sozinhas. Os produtos são comercializados pela internet e também em lojas de biojoias em Báli, na Indonésia, locais com os quais criei parceria para essas vendas. Tínhamos, até o inicio do ano, três lojas físicas parceiras em Berlim e uma em Los Angeles, porém fecharam as portas durante a pandemia.
Somos uma marca de empreendedorismo social, o que significa que o nosso intuito é avançar com as causas sociais e ambientais. Essa iniciativa é sem fins lucrativos, embora a grana seja dividida para as mulheres e para a compra de novos produtos. Mais do que obter lucro, nosso objetivo é gerar transformação nas comunidades com as quais trabalhamos. O faturamento adquirido também é investido em ações que possam aumentar o impacto e promover temas, como o próprio empreendedorismo feminino. Com a iniciativa, muitas mulheres já trabalham
produzindo outras peças e fazendo costuras para marcas e lojas do Recife e região. A ideia acabou gerando uma profissão para essas mulheres.
Qual tem sido o resultado desse projeto para a comunidade?
Dez por cento do nosso retorno é doado para o CAMM para manter o funcionamento do projeto que ajuda a comunidade. Sem doações, o projeto não tem como abrir as portas para as crianças do espaço que há mais
de 36 anos oferece atividades de pré-escola, alimentação, atividades didáticas, lúdicas e ambientais. Creio que a
missão de continuar apoiando o CAMM é o foco. Este ano, com as queimadas no Tocantins, decidimos estender o legado e demos início à produção com um grupo de mulheres de Palmas. A intenção é assegurar a renda delas nesta fase tão crítica, já que elas forneceram o capim dourado para a produção das nossas joias. O governo do Tocantins decretou risco de desastre ambiental por causa de incêndios florestais em várias regiões do estado. Ao todo, 11
municípios foram colocados na lista, entre eles Palmas. Por isso, o projeto ganhou esse braço lá também.
Você é um mulher negra, vinda de uma comunidade pobre do Recife e que tem essa trajetória de vida. Qual a importância que isso representa para a identidade de outras garotas negras e/ou residentes em comunidades vulneráveis?
É uma honra representar a beleza negra enfatizando aspectos globais, mas com nosso tempero e diversidade brasileira. Espero que a minha história possa incentivar a realização de sonhos de outras pessoas. Sabe aqueles sonhos reais que temos e não conseguimos nem dormir pensando na realização deles? É isso que quero que aconteça com outras mulheres, com outras pessoas. Valorizo a beleza negra e a represento com muito amor. Dar corpo e rosto a esses temas e conceitos éticos e étnicos de beleza, de empreendedorismo, de mulher, é um privilégio. Acho importantíssimo o debate sobre conceitos e estereótipos de beleza, de representações. Mulheres negras atuando ativamente nas capas de revistas e campanhas internacionais com conteúdo global de consciência própria, ambiental e social é espetacular, motivador. Espero oferecer um impacto na vida de qualquer outra mulher ou menina que esteja lendo essa entrevista, e que seja um impacto positivo, de luta, de fé, de sonho, de realização.
Acredito ser possível criar a própria realidade. Mais importante de onde você saiu é aonde você quer chegar ou já chegou. Todos nascemos iguais e morreremos iguais. O que acontece no meio tempo é um milagre. A negritude precisa ser cada vez mais mencionada, normalizada e menos marginalizada. Sonho que muitas meninas negras tenham acesso a oportunidades, que sejam a diferença, que façam a diferença.
LEIA A ENTREVISTA COMPLETA NA EDIÇÃO 176.4 DA REVISTA ALGOMAIS