Por Joca Souza Leão
A gente tava indo almoçar com amigos em Aldeia. Roberta viu uns meninos assando castanha de caju na beira da estrada. Deu desejo. “Há mil anos que não como castanha assada assim. Para numa dessas barracas.” Seguimos por uns três quilômetros, parando e perguntando. Nada. “Volta pra onde estavam aqueles meninos.” Voltei. “Tem castanha?” “Tá no fogo. Se quiserem esperar…”
Enquanto um dos meninos revolvia as castanhas no braseiro e retirava as assadas com um pegador de metal, o outro as quebrava com um martelo e espalhava sobre uma folha de bananeira para esfriarem. “Sentem” – propôs a dona da barraca, indicando dois caixotes. (Assei muita castanha quando era menino, mas não lembrava mais quanto tempo levava pra assar.) Sentamos.
Ela se apresentou: “Eu me chamo Hercília.” “A senhora é daqui mesmo, dona Hercília?” E ela nos contou a seguinte história, interrompida de vez em quando para atender os fregueses:
“Sou natural de Vicência. Cheguei ao Recife menina pra trabalhar em casa de família. Não tinha salário. Trabalhava das seis da manhã às sete da noite. Dormia num quarto que chamavam de ‘quarto de empregada’, que ficava no fundo de um grande quintal. De noite, tudo escuro, eu morria de medo. Mas foi lá que aprendi a ler. Quando eu botava a filha da patroa pra dormir, ela ia me mostrando o que tinha aprendido na escola. Aí, eu levava a cartilha dela pro meu quarto e ficava soletrando e copiando, sem nem saber direito os nomes das letras. Um dia, a patroa me perguntou: ‘Hercília, sabia que Jandira já aprendeu a ler?’ ‘E eu também’ – respondi.’ Vocês acreditam numa coisa dessas? Aprendi a ler com uma menina que também não sabia ler.”
“Trabalhei pra muita gente rica. Cozinhei pra muitos convidados: de príncipe a presidente. Mas nunca deixei de estudar. Fiz até o primeiro científico. E só não fiz faculdade (eu queria ser enfermeira formada) porque engravidei.”
“Minha última patroa, dona Laura, quando me apresentava a um convidado era como ‘minha secretária’. Era minha secretária pra lá, minha secretária pra cá… Trabalhei 12 anos pra ela. Um dia, tomei coragem: ‘Dona Laura, tô pensando em me aposentar. A senhora diz a todo mundo qu’eu sou sua secretária, mas meu salário e anotação na carteira são de doméstica.’ Ela olhou pra mim, balançou a cabeça, suspirou… e não disse nada. No dia seguinte, pediu minha carteira. ‘Vai me mandar embora’ – pensei. Mas, que nada! Devolveu a carteira assinada: secretária da firma de seu Hélcio, um dos muitos amigos de cama e mesa de dona Laura.”
“Dois anos depois, me aposentei. E comprei um sitiozinho aqui perto. Planto de tudo. E tudo orgânico. Toda quarta-feira, dona Laura manda o motorista. E a mala do carro sai lá do sítio abarrotada de tudo quanto é fruta, verdura, hortaliça… Nos fins de semana, venho me distrair com os netos aqui, na beira da estrada. O apurado é todo deles.”
No nosso almoço com os amigos, castanha de caju salgadinha como tira-gosto. E com o licor, a história de dona Hercília.
P.S. Se alguém se refere à empregada doméstica como secretária, achando que está lhe dispensando alguma deferência, saiba que deferência mesmo será no dia em que assinar a carteira dela como secretária. E pagar o salário correspondente. Le reste c’est de la démagogie.