“É preciso começar as mudanças para chegarmos à tarifa zero no transporte público” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“É preciso começar as mudanças para chegarmos à tarifa zero no transporte público”

Coordenador de mobilidade urbana do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) quer ampliar o debate sobre a gratuidade do transporte público, que há anos vem perdendo passageiros. Ele também analisa as experiências já existentes em cidades brasileiras e do exterior.

A gratuidade do transporte urbano público é uma pauta que aos poucos começa a ser mais debatida e a ganhar uma gama maior de defensores. Estopim que levou, em 2013, uma multidão às ruas insuflada pelo Movimento Passe Livre, numa das maiores manifestações de protesto na história recente do País, a tarifa zero já é realidade em 67 cidades brasileiras. No segundo turno das eleições no ano passado, a experiência escalou para mais de 300 cidades que adotaram a gratuidade para facilitar o acesso dos eleitores às urnas. A medida expôs o tamanho da demanda reprimida. Segundo dados da Urbana-PE, no Grande Recife, o número de passageiros nesse dia da votação aumentou 115% em relação aos domingos comuns e 59% na comparação com o primeiro turno.

Desde o fim da primeira década dos anos 2000, o transporte público tem perdido passageiros que não dispõem de recursos para pagar a passagem. Situação que se agravou com a pandemia, afetando financeiramente as empresas do setor. “O sistema baseado na tarifa está completamente falido”, sentencia Rafael Calábria, coordenador de mobilidade urbana do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor). Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele mostra a viabilidade da passagem gratuita e explica a proposta do SUM (Sistema Único de Mobilidade) feita pelo Idec, que propõe um sistema integrado em todo o País, gratuito e acessível a todos os brasileiros.

Qual é a proposta do SUM (Sistema Único de Mobilidade)?

A ideia central é que o setor de transportes passe a ser tratado como uma política pública, passe a ter um sistema de governos que apoiem os municípios na execução das políticas de mobilidade. Hoje cada cidade faz seus próprios sistemas, umas têm órgãos, outras têm autarquias, uma a secretaria executa, outra faz a concessão de um jeito, outra, de outro. Algumas, como no Recife, fazem um consórcio metropolitano. Mas falta uma estruturação do Governo Federal e dos estados para apoiar a mobilidade com mais recursos, com mais capacidade técnica, com treinamento para as equipes para termos uma melhoria na qualidade dos transportes no País.

Os municípios, muitas vezes, não têm capacidade para gerir o tanto quanto é preciso no setor com recursos. A mobilidade urbana transpassa os limites municipais. Então, é natural ela seja tratada em ambientes regionais com debates entre estados que sejam mais amplos do que é feito hoje nas cidades.

Quais os problemas que vocês detectam na mobilidade?

Para quem caminha ou anda de bicicleta existe uma falta de estrutura tremenda, as calçadas são ruins, as ciclovias são incompletas, os gestores municipais não são atualizados para debater esse tema, há uma política de corte de custos e não há investimentos nessa infraestrutura. Para o transporte coletivo também falta infraestrutura, não temos metrôs nem corredores de ônibus suficientes, os pontos (paradas) não são adequados, os terminais são antigos.

Quanto aos ônibus, geralmente, o tempo de espera é muito longo para o cidadão, existe alta lotação e são caros, porque é um sistema que depende da tarifa para se bancar. Os empresários acabam direcionando para onde é mais rentável, para avenidas mais centrais, para os horários de pico, e reduzem a frota. Com isso aumenta o tempo do intervalo de espera e a lotação. Por isso é necessário apoio técnico e financeiro para que o sistema não dependa da tarifa.

A tarifa zero no transporte público já é realidade em 67 cidades no País. Ela também está prevista no SUM?

Assim como o SUS é um sistema de saúde universal e gratuito, defendemos o mesmo para a mobilidade. Mas esse debate no setor está muito mais atrasado do que na saúde. O que defendemos é que precisam começar as mudanças para chegarmos à tarifa zero. Precisamos mudar os contratos, parar de depender da tarifa, fazer os pagamentos por quilômetro, ou por custo ou por qualidade, buscar fontes de financiamento para poder baratear a tarifa e dar uma estabilidade de receita para o sistema de modo a que a frequência possa ser boa.

Assim, vamos criando uma cultura para o governo participar mais desse sistema, para que mais cidades possam adotar a tarifa zero. Hoje ela existe exclusivamente em cidades pequenas. Como possuem um sistema mais simples, elas conseguem ter mais facilidade. Nas cidades maiores é mais complexo, elas têm um sistema também de trilhos, como metrôs e trens, há uma relação com cidades vizinhas. Existe uma rede muito mais cara e complexa. Então, a fonte de financiamento é importante para esse debate. O que é urgente é que a cidade comece a debater o tema, porque o sistema baseado na tarifa está completamente falido.

Como são as experiências nas cidades que adotaram a tarifa zero?

No Brasil, a maior parte das cidades que implantaram são pequenas e recorrem ao orçamento do município. O que alguns prefeitos alegaram é: como eles têm que pagar o vale-transporte de quem é servidor da prefeitura, eles já têm um gasto com isso, então o impacto da tarifa zero não é tão grande no orçamento.

O exemplo mais relevante e organizado fora do Brasil, eu diria, é o francês, porque eles modificaram o vale-transporte. Em vez de a empresa pagar o valor para o funcionário que usa ônibus e/ou o metrô, a empresa recolhe o valor que vai para um fundo federal que barateia todo o transporte no país. Mas há ainda uma parte que é usada do orçamento.

Defendemos aqui no Brasil essa possibilidade de mudança do vale-transporte. Há um debate bem avançado disso. Existem fontes que já foram debatidas como a CID da gasolina, em que se cobraria dos usuários de carros, que é uma política positiva já que os automóveis é que geram trânsito, eles são da política universal e é bem mais caro ter acesso ao carro. Têm sido debatidas outras fontes, como instituir uma taxa ambiental pela diminuição da emissão que o transporte coletivo como um todo gera. Algumas cidades têm taxas de polo gerador de tráfego, pagas por empreendimentos, como shopping center, que geram muita demanda de deslocamento. Eventualmente, essas fontes também abrangem multas de trânsito ou de empresas operadoras de ônibus.

O importante é ter uma gama de fontes para não sobretaxar nenhum setor, para não ficar muito cara a gasolina ou cobrar muito de algum empreendimento. O importante também é a participação do Governo Federal já que ele tem capacidade financeira maior. Um exemplo concreto que está se debatendo é a instalação de um programa do Governo Federal para custear ônibus elétricos para as cidades. O governo faria a compra e cederia os ônibus, o que seria um apoio financeiro porque, ao invés de alocar dinheiro, que tem toda uma questão de transparência, já estaria dando o serviço pago, frota nova e não poluente, gerando vários impactos na cidade.

Há várias possibilidades. O que falta ao setor é ter uma ambição política de fazer esse debate porque ele fica muito fechado em questões técnicas, não é muito aberto ao diálogo nem com os usuários. Mas temos visto muitos prefeitos, muitos gestores, já atentando para esse tema e temos esperança de que nos próximos anos esse debate vai avançar em todo o Brasil.

As empesas são reticentes à tarifa zero?

Afinal, elas vão receber o valor de qualquer forma, seja do usuário ou do governo. Há uma questão cultural mais forte nas empresas. O setor está há quase 100 anos funcionando na base da tarifa. Aí se criou toda uma cultura. Temos provocado um debate com eles dizendo: “abandona esse conceito, vamos fazer um conceito mais novo baseado nos custos reais, garantindo frequência e vocês vão receber de outra forma, mas vão receber os valores que cubram os custos de vocês, não é para ser voluntário, não é para fazer nada sem receber recursos”.

Acontece que na tarifa eles conseguiam manejar melhor a lucratividade, ao reduzir viagens e aumentar a lotação. Alguns empresários já estão vendo que esse modelo acabou, não dá mais, fica muito caro no Brasil hoje. Alguns empresários entendem a necessidade de mudar o modelo. Claro que a gente defende que essa transição não seja só na forma de pagar, mas que avance com transparência, com gestões melhores, com participação popular, para que mude o cenário, que não seja só um remendo financeiro, que seja uma mudança de padrão para a gente avançar em qualidade.

Quais os benefícios proporcionados pela tarifa zero?

Como resultado mais direto, ela aumenta muito o uso do transporte público. A pessoa tem acesso livre à cidade, ao lazer, de visitar familiares, trabalhar, procurar emprego. Agora é interessante apontar que as cidades europeias têm adotado a tarifa zero sem ter a desigualdade social que o Brasil tem. Visitamos Dunquerque, na França. A primeira intenção da prefeitura ao implantar a tarifa zero foi reaquecer economicamente o comércio do centro da cidade, ao estimular a circulação de pessoas. Também visava à pauta ambiental: reduzir o uso de carros e de poluentes.

Já as cidades do Brasil têm verificado uma elevação da arrecadação do ISS, porque o aumento da circulação de pessoas no centro provoca esse impacto. Um ponto muito interessante a se destacar é o relato de Mariana, cidade histórica mineira que é um município muito amplo em extensão e tem bairros afastados, mais rurais. Os moradores do campo passaram a ir até o centro da cidade para vender a produção da sua horta porque agora o transporte é gratuito. Então dá oportunidade de trabalho, para as pessoas empreenderem. No Brasil não temos muitos dados, mas há relatos de impactos no consumo das famílias.

Por que a tarifa é tão cara? A pandemia agravou a situação com a redução de passageiros?

A crise era anterior à pandemia. O Brasil tem uma população de renda muito baixa que depende do transporte, e mesmo que o transporte demore, que esteja chovendo, a pessoa tem que ir ao trabalho e ela vai ficar no ponto esperando. Isso é chamado de demanda cativa. E isso fazia a conta fechar ao longo dos anos. Mas um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que depois que a tarifa passou a ser R$ 2,50, no final da primeira década dos anos 2000, ela começou a gerar um impacto negativo na renda das famílias e o sistema passou a perder passageiro. Aquela demanda cativa não existindo mais começou a quebrar esse modelo ao aumentar mais a tarifa, gerando um círculo vicioso de piora. E aí, a pandemia quebrou de vez esse modelo. Hoje, com a falência do modelo e com as soluções internacionais se multiplicando – como a tarifa zero em Dunquerque, na França, em Kansas (EUA), a gestão de ônibus elétricos no Chile – o setor está vendo que vai ter que mudar. Esperamos que nos próximos anos tenhamos uma nova realidade no transporte no Brasil.

Você sabe de quanto foi a redução do percentual de passageiros?

Variou muito de cidade para cidade. Tem um dado da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo) de que antes da pandemia eles já tinham perdido de um terço a metade dos passageiros (de 30% a 50%). Ao considerar os passageiros de março de 2020, quando começou a pandemia, em algumas cidades caiu mais de 50%, às vezes mais de 70%. Foi um ano de uma queda mais abrupta. Agora está se recuperando mas existem cidades que não recuperaram toda a demanda de passageiros.

A pandemia foi um momento bem caótico mas outros países fizeram um programa de apoio no começo da crise. Lembro que a pandemia começou em março de 2020 e, três meses depois, a Alemanha já tinha soltado o segundo pacote de apoio financeiro, com uma pauta ambiental, cobrando diminuição de poluentes. Veja que é um projeto que tem uma ambição e não visa apenas jogar dinheiro. No Brasil, em 2022, Bolsonaro fez a PEC Kamicase que jogou dinheiro sem regra nenhuma. O Brasil demorou três anos para fazer um projeto e ainda por cima foi muito pior do que o de outros países que fizeram no primeiro semestre da pandemia.

Então, agora é um bom momento para essa mudança, não?

Temos visto algumas mudanças. O Ministério das Cidades está atento ao tema, buscando programas, frota de ônibus elétrica, outros caminhos para melhorar a bilhetagem eletrônica, dar mais transparência ao sistema. Há debate sobre uma nova legislação para o setor. A ideia do SUM que propomos é que a sociedade civil paute o debate, mostre o que seria o cenário ideal. Talvez a gente não consiga agora mostrar o cenário ideal, tem toda a questão do Congresso que é complexa, mas a gente está tentando puxar essa discussão, mostrar que existem caminhos. Tentamos fazer um debate mais independente, estudar boas práticas internacionais, o que as cidades estão fazendo de certo e de errado, enfim, a ideia do SUM é qualificar essa discussão.

O que vocês já conseguiram e quais os próximos passos?

O SUM está formando uma coalisão de organizações, porque o setor, como eu falei, é muito ruim de debate, os grupos às vezes são pequenos, são de cidades. No Recife, por exemplo, tem a Ameciclo e alguns grupos locais. A ideia é juntar esses grupos, dar uma força nacional para esse tema e avançar no debate. Nos próximos meses queremos levar o debate para o Congresso, falar com senadores, deputados, mostrar a situação na visão dos usuários, dos cidadãos e dialogando com o Ministério das Cidades em dois pontos: o mais urgente é começar alguns programas de apoio, como eu falei dos ônibus elétricos, e caminhar para legislação mais definitiva, que dê mais regras, mais ferramentas para os prefeitos e governadores avançarem na gestão dos transportes.

Se tiver algum grupo da sua cidade que queira debater mobilidade, temos a Coalizão Mobilidade Triplo Zero: zero tarifa, zero emissões de poluentes e zero mortes no trânsito. É uma rede de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores que se formou com o objetivo de superar a crise da mobilidade no Brasil e lutar para que ela seja um meio de garantir mais democracia e acesso a direitos sociais. Temos o site mobilidadetriplozero.org onde a pessoa pode se inscrever para a gente chamar para as próximas reuniões. Estamos tentando muito promover esse debate, chamando mais gente, levantando a voz dos usuários que são milhões de pessoas que usam transportes, bicicletas e caminham pelo País para tentar pressionar pela melhoria desses serviços nas cidades.

Já existem projetos tramitando na Câmara ou no Congresso de tarifa zero?

Começaram a surgir alguns. Aquele movimento das eleições em que o STF defendeu a adoção da gratuidade do transporte público pelas cidades foi uma experiência muito interessante. Mapeamos umas 300 cidades que adotaram a tarifa zero nas eleições. Hoje várias capitais estudam a medida como Cuiabá, Fortaleza, Palmas e São Paulo.

Surgiram alguns projetos no Congresso, como o das eleições que não foi definitivo, foi um projeto junto com a sociedade civil, e agora a [Luiza] Erundina e o [Jilmar]Tatto estão atentos à pauta e têm projetos nesse tema. A Erundina recorreu à Constituição (que garante que o transporte é um direito social). Ela defende o Sistema Único de Mobilidade com taxações do uso do carro. O Tatto propôs agora a mudança do vale transporte (o empregador faria o repasse do valor do vale para que o município crie um fundo para financiar a gratuidade).

Agora há o projeto dos veículos elétricos. Com a experiência de uma mobilidade diferente nas eleições, o que temos visto é que o debate do tema, que sempre foi muito tímido, agora está avançando e estão testando práticas novas no País.

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