Entre a literatura e a música, entre João Cabral e Helô Ribeiro – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Entre a literatura e a música, entre João Cabral e Helô Ribeiro

*Por Yuri Euzébio, especial para a Algomais

Não é de hoje que a literatura e a música se cruzam nas esquinas da cultura popular. As duas manifestações, por vezes, se complementam e formam algo novo, mágico e único. Artistas consagrados da nossa Música Popular Brasileira em algum momento de suas carreiras seguiram o itinerário quebrando as fronteiras entre essas expressões, como por exemplo a poesia de Vinicius de Moraes interpretada com louvor por Ney Matogrosso e Caetano Veloso que ressignificou sua obra com poema de Augusto de Campos e Péricles Cavalcanti ou ainda Chico Buarque.

Em seu mais novo trabalho “A Paisagem Zero”, lançado pelo Selo Sesc e já disponível nas plataformas de música, a cantora, compositora e percussionista corporal Helô Ribeiro crava seu nome nessa lista seleta ao imergir nos poemas da primeira fase do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), recriando parte dessa obra menos conhecida do poeta em canções para novos ouvintes.

A relação da cantora paulista com os livros já é antiga e o novo álbum é só . “Eu sempre gostei muito de ler, sou uma leitora voraz, e fiz faculdade de Letras. Então já na faculdade tive contato com grandes obras e nesse período eu tive dois professores que são o Luiz Tatit e o Zé Miguel Wisnik, então eu fazia aula de semiótica com o Tatit e com o Wisnik fazia literatura brasileira”, recordou. “São dois grandes músicos, então ali eu já pude experimentar essa comunhão entre música e literatura porque o Tatit dava semiótica da canção, cada aula entre trazia uma música pra analisarmos aquelas letras e o Wisnik sempre relacionava suas aulas com músicas. De alguma forma sempre andou junto pra mim, a música ao lado da literatura”, garantiu. Tatit inclusive escreve sobre o álbum em texto divulgado para a imprensa.

Em uma entrevista antiga, disponível no Youtube, um sisudo João Cabral de Melo Neto revela as ideias que gostaria de passar com sua obra. “Eu gostaria de fazer uma poesia que não fosse um carro deslizando em cima de um pavimento de asfalto, aquela coisa lisa, eu gostaria de fazer uma poesia em que o leitor, que nesse caso é o carro, passasse em cima de uma rua muito mal calçada e que o carro fosse sacolejado a todo o momento”, diz um convicto poeta engenheiro. Helô propõe um olhar singular sua obra e traz para o disco uma atmosfera predominantemente urbana e pop, criando uma fusão entre o Nordeste de João Cabral e o cenário paulistano urbano do qual ela faz parte.

“O primeiro contato que eu tive com a obra do João Cabral, antes de ler os poemas dele, foi na adolescência assistindo a peça ‘Morte e Vida Severina’. Eu ainda não tinha lido o livro, era bem jovem, lembro que eu fiquei encantada e acho que ali algo já me fisgou nessa possibilidade de misturar linguagens”, falou. Até a decisão de produzir o disco, a cantora tinha apenas um contato superficial com as obras do pernambucano. “Eu li pro vestibular o “Morte e Vida Severina” e o “Cão sem Plumas”, depois na faculdade li outros poemas dele também”, disse.
O álbum A paisagem Zero abarca poemas da primeira fase do escritor, das edições de “Pedra do Sono” (1942) e “O Engenheiro” (1945) atendendo aos anseios da filha do autor. “Eu li ‘A Literatura como Turismo’ de Inês Cabral, filha dele, é um livro biográfico, mas ela fala muito do pai e logo no começo ela diz que percebeu que João Cabral era muito lido ou por quem ia prestar vestibular ou por quem fizesse faculdade de letras e depois era rapidamente esquecido”, detalha Helô. “O que aconteceu foi que só recentemente eu entrei em contato com essa parte da obra dele, que são os primeiros poemas e era uma faceta desconhecida pra mim”, completou. Essa fase inicial é considerada a mais onírica e visual da obra de João Cabral, em que é apontada forte influência surrealista e cubista.
“São visualmente poemas muito imagéticos, fortes e psicodélicos. Eu comecei a ler parecia que eu estava assistindo a um filme psicodélico”, afirmou. “E quando li esses poemas, as soluções melódicas e harmônicas vieram facilmente. Os versos foram conduzindo a composição de uma forma muito orgânica”, conta. “Eu não sei explicar muito bem o porquê, mas tudo o que eu criei de melodia e harmonia em cima dos poemas já me parecia que tava proposta ali pelos versos, era quase como se eu tivesse desvelando ali um segredo que estivesse oculto”, revela Helô, que além da carreira solo é integrante do grupo Barbatuques desde sua criação, em 1995, e do projeto Sons e Furyas – com o qual também desenvolve um trabalho aproximando música e literatura com o escritor André Sant’Anna e a compositora Vanessa Bumagny.

“João Cabral é muito conhecido por ser o poeta que não gosta de música, então teoricamente tinha tudo pra dar errado, mas o Chico Buarque já tinha aberto esse caminho magistralmente, então eu falo que cometi essa heresia de musica um poeta que não gostava de música, mas esse caminho já tinha sido muito bem aberto por Chico com ‘Morte e Vida Severina”, falou. Helô Ribeiro canta em todas as faixas, além de tocar flauta transversal, na companhia dos músicos Dustan Gallas (guitarras e teclados), Thomas Harres e Samuel Fraga (baterias), Cuca Ferreira, Amilcar Rodrigues e Douglas Antunes (metais) e Zé Nigro (baixo), que também assina a produção de “A Paisagem Zero”. Participações especiais de Maurício Pereira, Alzira E, Barbatuques e Bruno Buarque.

Misturando os versos do poeta pernambucano a temperatura urbana de São Paulo, Helô Ribeiro reinventa e atualiza os versos e as imagens que compõe a obra de João Cabral reverenciando assim seu legado ao mesmo tempo que demonstra a força e a perenidade da produção do poeta. “Eu fiz de um jeito que é verdadeiro pra mim, eu sou paulista, urbana que vivo hoje no século XXI e tenho minhas influências musicais, então eu ouvi muito quando era mais nova: Rita Lee, Beatles, Mutantes, Secos e Molhados, Neil Young, Tropicália, Chico Buarque e tudo isso que eu ouvi e perpassa a minha história vem a tona na hora de compor e isso é o que me interessa, fundir as linguagens. O legal é justamente pegar o João Cabral, um grande poeta da nossa literatura, pernambucano e juntar com a minha história de compositora paulista que vive nessa urbe louca e ver no que vai dar, é isso que me instiga”, revela.
Se os poemas já ganham significados diversos em declamações diferentes, haja a vista a febre dos atuais Slams e sua poesia falada/ritmada. Sua musicalização consegue ir um passo à frente: Helô se apropria da obra para vertê-la em canções que transformam o cenário cabralino, apresentando-o (ou reapresentando-o) a novos (e antigos) ouvintes.

Mesmo não gostando muito um, enigmático, João Cabral certa fez disse, a propósito de seu discurso de agradecimento pelo Prêmio Neustadt: “O negócio é que a música é muito”. Quando se mistura com a literatura então, chega a ser imensa.

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