Entrevista com Gisela Abad: “Continuamos sendo o Leão do Norte” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Entrevista com Gisela Abad: “Continuamos sendo o Leão do Norte”

Designer lança livro em que analisa como um animal que não pertence à fauna brasileira tornou-se símbolo da identidade pernambucana, como nas revoluções deflagradas no Século 19. Ao longo do tempo, ele também passou a estampar estandartes de maracatus, escudo de time de futebol e até logomarcas.

Quem nasce nesse lindo rincão/Do Norte brasileiro em geral/É hospitaleiro de coração/E tem na luta uma bravura sem igual/Eu sinto orgulho em ouvir/O coração no transporte/Repetir: Eu sou de Pernambuco/ Leão do Norte.

O trecho do frevo de bloco Eu Sou de Pernambuco, de autoria do “velho Raul Moraes” demonstra toda a potência simbólica contida na imagem do Leão do Norte para refletir a identidade dos pernambucanos. Destaque-se a “bravura sem igual”, demonstrada nos vários movimentos revolucionários. Presente nos brasões do Estado e do Recife, no escudo do Sport, nos estandartes dos maracatus, nas criações do artesão Nuca, a figura do leão, no entanto, sofreu, ao longo dos anos, mudanças, desde que passou a estampar marcas e produtos. É o que constata a designer Gisela Abad no seu livro Um Leão na Paisagem, que será lançado no sábado (31).

“É engraçado, quando o leão vira marca, parece que foi domesticado. É hilário, em algumas delas, ele parece um cãozinho”, constata a designer. Mesmo sendo “domesticado” ao figurar em embalagens de produtos ou logomarca de empresas, o Leão do Norte, segundo Gisela , permanece como representação da identidade pernambucana, denotando coragem e ousadia. “No campo político, o pernambucano continua se representando como o Leão do Norte. Como Estado, a gente ainda se coloca e diz mesmo: “Eu sou Leão do Norte!”, assegura a designer.

Como surgiu a ideia de pesquisar a simbologia do Leão do Norte?

Em 2004, a Fundação Gilberto Freyre digitalizou um acervo de marcas e rótulos registrados pela Junta Comercial de Pernambuco do ano de 1876 até 1926. A 2Abad (sua empresa de design) criou a imagem para esse projeto e foi quando eu tive contato com essas marcas fenomenais, que representam quase um marco inaugural do design pernambucano. Então, quando eu entrei no mestrado em 2008, me lembrei desse acervo e resolvi me debruçar sobre ele. Quando cataloguei, vi que a maior parte das marcas eram representadas por animais e, entre esses animais, em primeiro lugar sobressaía o elefante e, em segundo lugar, o Leão do Norte.

Eu analisei as marcas registradas, mas ao pesquisar em jornais, é possível encontrar farmácias, tinturarias, vassouras, bolachas, vários comércios e produtos que utilizam a figura do Leão do Norte e que não foram registradas. E aí me perguntei por que tanta marca de Leão do Norte, se nem é um animal da fauna brasileira? E por que o pernambucano é conhecido como Leão do Norte? Bom, sabemos que, geograficamente Pernambuco fazia parte da região Norte e depois passou a ser Nordeste.

A leitura também pode ser feita a partir do brasão de Duarte Coelho, mas outras províncias também tinham brasões e isso não as fez ser golfinho do Sudeste, por exemplo. Só o fato de estar no brasão de Duarte Coelho não é suficiente, é apenas um fator que começa no que eu chamo da paisagem semiótica. Então, que coisa tão forte é essa em termos de signo que passa a representar os pernambucanos ou Pernambuco e que salta para as marcas? E quando ela salta, como se comporta? Quando desenhamos os vetores do nosso Leão do Norte, percebemos que ele é insurreto, corajoso, bravio, ele não se curva.

E esse brasão de Duarte Coelho já existia desde que ele veio de Portugal?

Não. Ele só recebe o brasão em 1545, perto de falecer. Ele não era uma figura de nobreza, a mulher dele, dona Brites, era. Inclusive ela acabou se tornando nossa governadora porque ele voltou para Portugal e ela ficou aqui. Ela era um Leão do Norte, ficou sendo governadora por mui- to tempo com o brasão do leão. Também havia outros tipos de leão. Certamente, o leão de Judá tem um papel nessa identificação do pernambucano como Leão do Norte, mas não encontra- mos desenhos dele em lugar nenhum por causa da perseguição aos judeus.

Também havia o brasão da família de Nassau, que é o da Casa de Orange, que tem três leões. Além desses, também tem o Leão Coroado, personagem da Revolução de 1817, que tinha uma careca redondinha – como uma coroa – mas não havia ilustração, quadro ou representação dele. Não existe sequer uma descrição física do Leão Coroado, só se sabe que ele tinha essa tonsura na cabeça. Existe também o leão de São Jerônimo que, no sincretismo com a África, é Xangô, um orixá muito forte. E São Jerônimo é aquele santo, reza a lenda, que, no século 3 depois de Cristo, tirou uma farpa da pata de um leão, que ficou domesticado.

O leão também é bastante representado no Maracatu, não é?

O Maracatu, na verdade, começa como nação, depois vira uma manifestação de grupo, de dança, de festa carnavalesca, e você encontra uma quantidade enorme de maracatus representados por leões: tem Leão Mimoso, Leão Formoso e o Maracatu Leão Coroado, que é um dos mais antigos. Algo curioso que descobri recentemente é que há muitas figuras de leões na região de Carpina pois, antes de ter este nome, entre as décadas de 30 e 40 do século passado, Carpina se chamava Floresta dos Leões.

Por que o Leão do Norte virou rótulo? Como se deu esse processo dele enquanto marca?

Fala-se muito da união dos brasileiros com portugueses, mas há alguns pontos históricos em que essa relação desanda e, no Século 19, foi bem grave, porque enfrentávamos um grande declínio econômico, já existia a separação entre Brasil e Portugal e não nos sentíamos confortáveis com os portugueses tomando conta do nosso mercado. Assim, a denominação de Leão do Norte era usada para o filho da terra ou para a própria terra, Pernambuco.

Então, ao colocar o nome Leão do Norte numa padaria, o proprietário está dizendo: sou pernambucano, sou da terra. Aí, começam a surgir as marcas como bolachinhas Leão do Norte, refinaria de açúcar Leão do Norte etc. Alguns comerciantes e industriais procuravam contornar a hostilidade adotando nomes para seus negócios, que refletiam identidades regionais ou nacionais, como é o caso do Leão do Norte. Nem todas as marcas Leões do Norte eram portuguesas, certamente só as primeiras, depois tivemos uma enorme onda de Leões do Norte, porque, no design, quando uma solução dá certo, outras seguem o mesmo caminho, por isso há tantas marcas com a mesma cara. É engraçado, quando o leão vira marca, parece que foi domesticado. É hilário, em algumas delas, ele parece um cãozinho.

Na Bahia, existe o licor de jurubeba Leão do Norte, que dizem ser afrodisíaco e bebida para “cabra macho”. O que você acha dessa associação do Leão do Norte com esse estereótipo masculino?

Ser Leão do Norte não é necessariamente algo masculino, não é sobre gênero. Eu, por exemplo, sou Leão do Norte, mas não sou um “cabra macho”. A pessoa pode trazer desse signo a coragem, a ousadia, o que é bacana. Não é necessário assumir uma “brabeza” que, no meu ponto de vista, essa “brabeza” pode ser pouco inteligente.

O Leão do Norte também é símbolo do Sport Clube do Recife. O Sport sempre foi representado por um leão?

No início, não. O primeiro brasão do Sport não tinha nenhum leão, tinha todos os esportes que o clube abraçava. A paisagem cultural para que o pegasse o leão como símbolo foi bem construída, entre os anos de 1929 e 1930. Nessa época, o Sport foi disputar um campeonato em Belém do Pará, cuja taça se chamava Leão do Norte. O Sport ganhou, o time de lá não se conformou, pegou a taça, invadiu o navio onde estavam os jogadores pernambucanos. Foi uma confusão danada. A partir de então, o Sport se apoderou exatamente do signo de Pernambuco, o Leão do Norte. Mas o torcedor do Sport não costuma dizer “Eu sou Leão do Norte”, ele diz apenas que “é Leão”.

O Leão do Norte é um símbolo pernambucano, mas no Pará, havia um campeonato com este nome?

Sim. Na virada do Século 19 para o Século 20, quando a indústria açucareira começa a declinar, de acordo com Gilberto Freyre, Pernambuco perdeu sua maior riqueza, que eram as cabeças pensantes. Os intelectuais foram para o Rio de Janeiro, que era a capital intelectual do País, e os comerciantes foram para São Luís, Belém e Manaus, na época do ciclo da borracha. Essas três capitais eram lugares altamente sofisticados, a moda francesa chegava lá primeiro, havia teatros, o dinheiro corria solto. O mundo inteiro estava interessado na borracha do Brasil, e os pernambucanos empreendedores foram embora. Os Leões do Norte foram para lá, por isso, no Pará, havia um campeonato com esse nome.

O Leão do Norte também é representado em músicas, como a de Lenine e de Raul Moraes, por exemplo. Visualmente, quais as características desse leão?

Como representá-lo por meio da imagem? Se pararmos para pensar, não existe uma imagem do Leão do Norte. Isso porque esse leão é um leão conceitual, não temos como representá-lo. Se eu te pedir para desenhar um Leão do Norte, o teu vai ser diferente do meu. O Leão do Norte não existe visualmente falando. Ele existe entre nós, sem precisar ser verbalizado o tempo todo. A simbologia do Leão do Norte ficou adormecida depois que deixamos de fazer parte do Norte e passamos a ser Nordeste. Então, os músicos, como Lenine e Raul Moraes, trouxeram de volta essa ideia de que somos Leões do Norte. Se você fizer uma pesquisa nos jornais, vai perceber que, historicamente, nem todos os Leões do Norte são relativos ao campo esportivo, ao mascote do Sport. No campo político, o pernambucano continua se representando como o Leão do Norte. Como Estado, a gente ainda se coloca e diz mesmo: “eu sou Leão do Norte!”

E no artesanato pernambucano, há o leão de Nuca, que é também muito icônico.

Sim e não é à toa. Não é gratuito que o pernambucano se encanta com o leão de Nuca. A gente gosta muito do boizinho de Vitalino, mas não como o leão de Nuca. O Vitalino tem um outro valor como artista, mas o de Nuca entra numa coisa do emocional das pessoas que o boizinho de Vitalino não entra. Os pernambucanos têm uma paixão pelo leão de Nuca porque continuamos sendo Leão do Norte.

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