Sob pressão social, econômica e digital, a ansiedade atinge níveis alarmantes no Brasil, afetando crianças, jovens e adultos – e já figura entre as principais causas de afastamento do trabalho.
*Por Rafael Dantas
A ansiedade acompanha Demétrius Bernardo, 25 anos, desde a infância, quando ainda jogava futebol, sonhando em ser profissional. Ele sentia o coração acelerar antes da partida começar. Pensava nas jogadas, onde o esporte poderia levá-lo… Mas esse sentimento de antecipação, de querer prever o que ainda nem havia acontecido, se intensificou na vida adulta. Diante das responsabilidades familiares, profissionais e financeiras, o peso da busca por aprovação e reconhecimento em uma sociedade que exige “ser e ter” o adoeceu. “A ansiedade muitas vezes vem dessa cobrança de mostrar para o mundo que você é alguém”, relata o jovem. “Se você não for bom em algo, as pessoas não vão ver utilidade em você.”
Os impactos da ansiedade se manifestam de forma concreta em sua rotina. Ele relata episódios de falta de ar, tremedeira, nervosismo e dificuldades de sono, além da sobrecarga emocional, após a perda da mãe, que aumentou as responsabilidades e a sensação de solidão. Morador da periferia do Recife, o jovem trabalha fazendo entregas de bicicleta por aplicativo. Luta para conquistar uma vaga na área de vigilância.
“Eu cresci sem ter nada, vendo meus amigos conquistarem coisas, e isso sempre me fez querer ser ou ter alguma coisa. Hoje eu me sinto uma pessoa esquecida porque não tive direção nem orientação para lidar com a vida e as redes sociais”, relata o jovem.
A vulnerabilidade social, as inúmeras comparações de quem vive imerso nas redes sociais e a ausência de qualquer assistência psicológica inserem Demétrius no cenário dos milhões de brasileiros que sofrem com ansiedade. Para completar, ele admite que chegou a se viciar em jogos de apostas online, as bets. O hobby que surgiu como uma válvula de escape, paradoxalmente, amplia o ciclo de tensão e preocupação com dinheiro.
AS RAÍZES DA EPIDEMIA DA ANSIEDADE
Os dados nacionais demonstram o tamanho da epidemia da ansiedade que toma o País. Segundo a pesquisa Covitel 2024 (realizada pela Vital Strategies, Universidade Federal de Pelotas, Umane e Associação Brasileira de Saúde Coletiva), cerca de 56 milhões de brasileiros apresentam algum nível de transtorno de ansiedade. Esse número representa 26,8% da população.
Nem toda a ansiedade é negativa, mas ela preocupa quando se torna constante e em níveis que atrapalham as rotinas dos indivíduos ou geram sofrimentos. “A ansiedade, em uma medida, é saudável porque nos mobiliza. Mas ela passa a ser prejudicial quando nos paralisa ou compromete a vida cotidiana. Um bom parâmetro é perguntar: em que intensidade e com que frequência estou ansioso? Se a ansiedade vira regra geral e me incapacita, é sinal de que preciso buscar ajuda”, explica a psicóloga Alexsandra Lins, da Afya Jaboatão dos Guararapes.
O livro A Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt, apontou que a explosão dos transtornos de ansiedade entre crianças e adolescentes está diretamente ligada à “Grande Reconfiguração” provocada pelos smartphones e redes sociais a partir de 2010. Haidt mostra que a infância baseada no brincar e na convivência presencial foi substituída por uma vida mediada pelas telas, marcada pela hiperconectividade, pelas comparações sociais incessantes e pela lógica dos algoritmos que exploram vulnerabilidades psicológicas para maximizar engajamento e lucro.
Embora as novas tecnologias estejam como um grande impulsionador desse mal, o uso indiscriminado da internet e das redes sociais não é o único vilão que tem adoecido multidões. “É preciso adotar uma perspectiva ampliada, que vai além da questão tecnológica”, analisa o psicanalista e neuropsicopedagogo Marcos Lima. Para ele, além da dependência digital e da hiperconectividade, fatores como o enfraquecimento das relações afetivas, as pressões sociais por desempenho, a busca por pertencimento e as incertezas em relação ao futuro ajudam a explicar o avanço dos transtornos de ansiedade.
“A ansiedade pode ser entendida como uma expressão de conflitos internos que são ligados a um desejo de aceitação social e a um medo de rejeição. Isso pode repercutir nas dinâmicas sociais, intensificando a angústia diante da sensação de exclusão”, explica o psicanalista. Sejam aspectos econômicos, sociais, de gênero ou etário, a percepção de isolamento ou segregação é apontada como um fator relevante de aumento da ansiedade.
O medo do futuro, seja real ou irreal, foi intensificado também pelo que está sendo chamado de ecoansiedade, que é a ansiedade climática. Trata-se de um sentimento de angústia e preocupação com as consequências das mudanças climáticas, como incêndios florestais, enchentes e ondas de calor extremo. No Recife, por exemplo, em que 44% do território está sob alto risco de inundações, segundo estudo do IRRD (Instituto para Redução de Riscos e Desastres), esse problema é relatado especialmente nas populações que vivem em comunidades vizinhas aos principais rios.
EFEITOS NO ORGANISMO DA ANSIEDADE
O psicanalista Amaury Cantilino compara a ansiedade a uma maratona soturna, em que o corpo corre o tempo todo sem linha de chegada. “Esse estado contínuo desgasta a atenção, reduz a clareza mental e afeta a memória. No organismo, altera o equilíbrio hormonal, leva a dores musculares persistentes, distúrbios digestivos, alterações de pele e queda na qualidade do sono, contribuindo ainda para problemas como hipertensão, gastrite, dores crônicas, enfraquecimento da imunidade e até mudanças hormonais”.
Quando esse problema se torna crônico, ele prejudica a concentração, a memória e mesmo a capacidade de tomar decisões. “Pode aumentar a irritabilidade, a sensação de cansaço constante e favorecer o aparecimento de outros transtornos, como a depressão”, explica o psiquiatra.
Além desse problema crônico, que não abandona a pessoa, há ainda as crises de ansiedade, também conhecidas como ataques de pânico. Cantilino explica que elas são uma reação súbita e intensa. “É como se o corpo tivesse recebido um alarme falso de perigo extremo. Aciona-se um sistema antigo do corpo chamado ‘resposta de luta ou fuga’, que prepara o organismo para reagir a ameaças. Esse mecanismo envolve a liberação de hormônios como adrenalina e cortisol, que alteram temporariamente o funcionamento de praticamente todos os órgãos”.
De forma prática, essa crise, em segundos, coloca o corpo em “modo de emergência”. O psiquiatra informa que o coração dispara, a respiração acelera, surgem tontura, tremores, suor frio e até a sensação de que algo terrível está para acontecer. “É um incêndio emocional aceso sem chama visível. Embora a crise passe, ela é um sinal de que o sistema de alerta interno está hipersensível e merece atenção profissional”.
Essas patologias têm explodido nos afastamentos de trabalho no CID F41 (Classificação Internacional de Doenças que reúne os transtornos ansiosos, como pânico, ansiedade generalizada e formas mistas de ansiedade e depressão). De acordo com os dados do Ministério da Previdência Social, 141,4 mil pessoas foram afastadas do trabalho em 2024. No ano anterior foram 80,2 mil pessoas e em 2022 foram 53,9 mil. Números que revelam o agravamento do cenário.
HÁ GRUPOS DE RISCO PARA A ANSIEDADE PATOLÓGICA?
Em uma sociedade em que muitas relações antes sólidas, como as familiares e as profissionais, desmancham no ar com muita velocidade, o número de perfis de pessoas que estão mais vulneráveis à ansiedade é grande. Embora esse mal atinja diferentes faixas etárias e indivíduos com motivações distintas, há alguns perfis para se ter maior atenção.
“As mulheres são um grupo de risco, porque acumulam múltiplas funções, sofrem pressões estéticas, desigualdades de gênero e ainda enfrentam impactos hormonais”, destacou Alexsandra Lins. “Profissionais de alta exigência também, como médicos, professores, executivos, trabalhadores da tecnologia, que vivem jornadas exaustivas e competição acirrada, o que favorece ansiedade e burnout.”
A psicóloga elencou ainda jovens pressionados por performance acadêmica, crianças com excesso de estímulos digitais e idosos à margem da convivência também estão mais expostos à ansiedade. O caso de Demétrius Bernardo, por exemplo, estaria classificado em outro grupo de risco, o de pessoas em vulnerabilidade social, que muitas vezes sequer são lembrados pelas políticas públicas de saúde mental.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Cactus em parceria com a Atlas Intel apontou que 56% dos brasileiros com a saúde mental fragilizada não recorrem a serviços de apoio especializados. O mesmo estudo indicou que a situação financeira (82%) é o principal motivo relatado para a ansiedade.
PRESENTE TAMBÉM NAS CRIANÇAS
A ansiedade infantil exacerbada é um sinal de alerta na sociedade atual. Grande parte desse quadro está ligada à vida acelerada que muitas crianças levam. Sandra Kattah, neuropsipedagoga e especialista em educação infantil na Escola Vila Aprendiz, observa que “as crianças são frutos da vivência familiar, e hoje existe uma sede muito grande de acelerar a vida delas com agendas lotadas e excesso de estímulos.” Desde muito cedo, meninos e meninas enfrentam pressões para aprender idiomas, participar de atividades extracurriculares e atingir metas acadêmicas, muitas vezes sem tempo para simplesmente brincar e ser criança.
Os sinais da ansiedade podem se manifestar de diversas formas, incluindo inquietação, tiques e comportamentos repetitivos, como roer unhas. Segundo Sandra, “o excesso de telas prejudica até a estrutura do cérebro; já temos comprovação científica de afinamento do córtex em crianças com uso exagerado.” A fascinação pelas telas, com estímulos visuais e sonoros intensos, pode substituir experiências simples, mas fundamentais, como ouvir histórias, brincar com objetos ou contemplar a natureza, limitando o desenvolvimento emocional e cognitivo.
Quando se analisam as crianças e adolescentes dos 10 aos 14 anos, dados da Rede de Atenção Psicossocial do SUS, em 2023, revelaram que a taxa dessa população com transtornos de ansiedade foi de 125,8 para cada 100 mil. Esse indicador é maior do que nos adultos acima dos 20 anos, que têm taxa de 112,5 a cada 100 mil. O quadro mais crítico, no entanto, é na adolescência (15 aos 19 anos), com 157 a cada 100 mil.
ENFRENTAMENTO DA ANSIEDADE PATOLÓGICA
No plano individual, o psicanalista Amaury Cantilino orienta que o enfrentamento dessa patologia começa pelo autoconhecimento, como “perceber gatilhos, reconhecer limites e adotar hábitos que favoreçam o equilíbrio, como sono de qualidade, atividade física regular, momentos de lazer e técnicas de respiração ou meditação”. Ele explica que a psicoterapia oferece ferramentas para lidar melhor com pensamentos e emoções, bem como indica quando o tratamento precisa ser medicamentoso para reequilibrar a química cerebral.
No caminho para compreender melhor a si mesmo e lidar de forma mais saudável com a ansiedade, o psicanalista Marcos Lima recomenda um mergulho na subjetividade e na própria história de vida. Esse processo inclui identificar os significados individuais de cada sintoma, reestruturar pensamentos disfuncionais e experimentar novas maneiras de enfrentar os desafios do dia a dia.
O cuidado com as redes sociais e a consciência de que os padrões exibidos nelas também precisam ser abandonados estão entre as recomendações do psicanalista. “Não é possível viver como padrão estrutural que não é real das redes sociais e dos digitais influencers”, alerta. Além de zelar pela vida online, ele enfatiza a importância de fortalecer a aceitação dos dias mais turbulentos como parte natural da existência. “É essencial também entender que não se trata de eliminar sentimentos difíceis, mas de aprender a conviver com eles. Aceitar perdas irreparáveis, dias difíceis e contextos adversos faz parte da vida”, sugere o psicanalista.
Em relação ao público infantil, Sandra Kattah defende que é preciso resgatar momentos de brincadeira e espaço livre, permitindo que a criança se conheça e desenvolva controle sobre suas emoções. “O tédio é necessário: é no espaço livre que a criança cria e desenvolve sua imaginação”, reforça Sandra. Atividades concretas, como observar nuvens ou construir brinquedos improvisados, ajudam a criança a compreender o mundo e a si mesma, fortalecendo habilidades criativas, motoras e cognitivas, além de preparar o equilíbrio emocional para a vida adulta.
A presença dos pais e a definição de rotinas também são determinantes. Sandra destaca que “rotina é estruturante: preparar a criança para dormir com histórias, reduzir as luzes da casa e respeitar horários fortalece o equilíbrio emocional.” Momentos de atenção plena, mesmo que curtos, fortalecem vínculos e oferecem segurança, enquanto o respeito à infância e à sua naturalidade contribui para a formação de adultos mais confiantes e equilibrados.
Mas, além das ferramentas individuais, seja para adultos ou crianças, há ações coletivas que são necessárias para enfrentar essa epidemia. “É essencial garantir que a saúde mental seja prioridade nas políticas públicas, ampliando o acesso a serviços especializados, como ambulatórios de psiquiatria, e promovendo campanhas que reduzam o estigma de buscar ajuda. Também é papel das instituições criar ambientes que favoreçam o bem-estar emocional, com espaços de escuta e prevenção”.
A ansiedade, assim como a solidão e o excesso de cansaço, são sintomas não apenas das nossas individualidades, mas de um adoecimento social. O mundo digital, a concorrência global, a busca pela alta produtividade são alguns fatores que contribuíram em maior ou menor grau para fragilizar relacionamentos e até diminuir a nossa humanidade. O enfrentamento dessas epidemias demanda reflexões sobre muitos valores construídos – e desconstruídos – nas últimas décadas e de decisões coletivas para reverter as tendências que pioraram a nossa qualidade de vida.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)
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