Segundo a OMS, ela se tornou uma epidemia global, provocada pelo modo de vida contemporânea que afeta de adolescentes a idosos e pode atingir não só a mente, como também influenciar no surgimento de doenças cardiovasculares, diabetes, entre outras. Esta é a primeira reportagem da série Epidemias Contemporâneas.
*Por Rafael Dantas

A solidão foi classificada desde 2023 pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma epidemia global. No Brasil, apesar de toda a imagem de um País alegre e dançante, 38% das pessoas entrevistadas pela pesquisa Gallup-Meta State of Social Connections afirmam sentir-se solitárias com frequência e 5% disseram estar completamente isoladas socialmente. Sejam jovens ou idosos, o avanço desse tipo de sentimento tem múltiplas raízes contemporâneas e traz prejuízos reais para o organismo e o bem-estar de pessoas de todo o mundo.
Rayssa Figueiredo, 33 anos, convive há quase 10 anos com o sentimento de solidão. Moradora da cidade de Olinda, a publicitária é casada e tem uma filha. Por muito tempo frequentou igrejas. Mas mesmo com a família e com o convívio em comunidades religiosas, ela luta contra essa sensação que começou com um momento de luto e de várias transições na vida.

“A solidão começou no período da morte do meu pai, que coincide com o fim da faculdade, mudança de cidade e tomada da responsabilidade da casa”, explica. As dores desse sentimento mexem com seu estado emocional. “Hoje isso afeta meu humor de forma sufocante. O silêncio da solidão, mesmo que rodeada de pessoas, é constrangedor”.
Apesar dessa dor ainda permanecer no seu cotidiano, ela já foi pior. Rayssa revela que houve uma época em que o silêncio era um gatilho para crises suicidas. Ela procurou ajuda com terapia, quando percebeu que se aproximaria uma nova tentativa de suicídio. “A solidão é a minha pedra amarrada na perna. Tem dias que consigo desamarrar a corda e deixar a pedra na cama, em outros momentos ela me afunda em um poço de melancolia”
Além do acompanhamento profissional, ela afirma procurar não ficar sozinha fisicamente. E segue enfrentando dia a dia esse sentimento, buscando manter o contato com outras pessoas, mesmo que o ciclo se repita.

Amaury Cantilino ressalta os impactos das grandes cidades, que impõem rotinas exaustivas, deslocamentos longos, jornadas competitivas e uma vida vivida em função do trabalho. “Nessa lógica, perdemos a convivência mais cotidiana com a família, com os vizinhos, com os amigos de infância.”
RAÍZES DA SOLIDÃO
A luta de Rayssa é vivida também por várias pessoas e já é considerada um desafio para a saúde pública. A própria OMS criou uma Comissão Internacional para Conexão Social para enfrentar essa nova pandemia. Após todos os traumas da Covid-19, o termo parece ser um exagero. Mas, segundo o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, não é.
“Podemos falar em uma verdadeira epidemia da solidão. O termo pode parecer exagerado à primeira vista, mas reflete um fenômeno crescente e silencioso que tem se espalhado em diferentes faixas etárias e classes sociais. Apesar dos avanços tecnológicos, do aumento da expectativa de vida e de vivermos em sociedades mais conectadas do que nunca, nunca estivemos tão sozinhos”, revelou o psiquiatra.
As transições acentuadas no estilo de vida contemporâneo estariam relacionadas ao avanço da solidão. A migração de muitas pessoas para os grandes centros urbanos, distantes das suas famílias de origem, seria uma das razões apontadas pelo médico. Além da desconexão com os laços de parentescos, a própria dinâmica das metrópoles obriga a uma rotina com menor interação social e humanizada.
“As grandes cidades oferecem muitas oportunidades, mas também impõem rotinas exaustivas, deslocamentos longos, jornadas competitivas e, frequentemente, uma vida vivida em função do trabalho. Nessa lógica, perdemos a convivência mais cotidiana com a família, com os vizinhos, com os amigos de infância. A informalidade das relações – aquele café sem pressa, a conversa na calçada ou o papo que surge do nada – foi sendo substituída por encontros marcados com antecedência e agendas lotadas. Estamos cercados de conhecidos, mas com cada vez menos amigos”, explicou Cantilino.

As relações foram ficando cada vez mais profissionais ou mediadas por ferramentas digitais. Conhecer pessoas virou uma experiência de criar um networking. A conversa, a afetividade e o tempo juntos se transformou em uma troca de mensagens de texto ou o envio de emojis numa rede social. Um contexto mais distante que conduz a uma sensação de não pertencimento dos grupos sociais e, também, de não ter alguém por perto para compartilhar o cotidiano.
Vários institutos de pesquisa apontam o Brasil nos primeiros lugares no ranking do uso das redes sociais. Porém, os milhares de amigos no Facebook, seguidores no Instagram ou conexões no Linkedin não se refletem em relacionamentos. O próprio WhatsApp, que é uma ferramenta muito relevante para aproximar as famílias e amigos distantes, com as chamadas de vídeo e a facilidade no compartilhamento de mensagens, acaba contribuindo também para o isolamento. Um estudo publicado em 2024 pela We Are Social e da Meltwater revelou que os brasileiros passam 9 horas e 13 minutos por dia na internet.
EFEITOS NOCIVOS PARA A SAÚDE (NÃO APENAS MENTAL)
A solidão é uma experiência comum e pode até ser positiva em certos momentos, mas merece atenção quando começa a provocar sofrimento e comprometer a qualidade de vida, alerta o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo. “A solidão faz parte da vida de todo mundo em algum momento e às vezes é até bom para o nosso autoconhecimento estar só. Mas ela passa a ser um problema quando se torna constante e começa a afetar o bem-estar. Se uma pessoa se sente sozinha com frequência, mesmo estando cercado de outras pessoas, está sempre triste, desanimada e perde interesse em coisas que antes eram prazerosas, pode ser um sinal de que algo não vai bem”.

Além do sofrimento das pessoas que se sentem sozinhas, os efeitos na saúde são múltiplos e já comprovados cientificamente. “Diversos estudos mostram que essas pessoas têm mais risco de desenvolver depressão e ansiedade. Ela desorganiza o sono, afeta o apetite, aumenta o cortisol (o hormônio relacionado ao estresse) e dificulta o enfrentamento de desafios do cotidiano”, explicou Amaury Cantilino.
Porém, além desses impactos na saúde mental, o médico conta que a solidão está associada também ao aumento do risco de doenças cardiovasculares, queda da imunidade e até mesmo a maior mortalidade. Os estudos liderados pela psicóloga e pesquisadora Julianne Holt-Lunstad, associada à Brigham Young University, por exemplo, afirmam que o adoecimento relacionado ao sentir-se só pode ser tão prejudicial quanto fumar 15 cigarros por dia. Os danos são bem superiores que o consumo excessivo de álcool ou mesmo a obesidade.

Ao avaliar dados de milhares de pessoas no mundo, o estudo liderado por Julianne descobriu ao longo dos anos que “as pessoas que são mais conectadas socialmente tinham 50% maior probabilidade de estarem vivas. Em outras palavras, ter mais e melhores relacionamentos previa viver mais”, explicou a psicóloga Holt-Lunstad. “Minha pesquisa sugere que uma das melhores coisas que você pode fazer pela sua saúde é nutrir os seus relacionamentos", aconselhou a psicóloga durante uma palestra realizada pela TEDx. Segundo a pesquisa, a extensão em que estamos conectados socialmente influencia fortemente no risco de termos de sofrer ataques cardíacos, derrames, diabetes tipo 2 e até demência ou Doença de Alzheimer.
Quando observados pelo lado oposto, os vínculos sociais fortes influenciam a saúde por múltiplos caminhos: reduzem o estresse, favorecem comportamentos saudáveis, promovem bem-estar psicológico e afetam diretamente mecanismos fisiológicos como o sistema imunológico e processos inflamatórios. Dessa forma, a solidão crônica deixou de ser vista apenas como um sofrimento emocional e passou a ser reconhecida como um fator que adoece e encurta vidas. Por isso, enfrentar o isolamento social deve se tornar uma prioridade nas políticas de saúde pública.

Estudos liderados por Julianne Holt-Lunstad, associada à Brigham Young University, afirmam que o adoecimento relacionado ao sentir-se só pode ser tão prejudicial quanto fumar 15 cigarros por dia. Os danos são bem superiores que o consumo excessivo de álcool ou mesmo a obesidade.
EFEITOS NOCIVOS PARA TODAS AS IDADES
A solidão afeta pessoas de todas as idades, gêneros e classes sociais, segundo o presidente da ABP. De acordo com a OMS, 1 em cada 4 idosos está vivenciando isolamento social e entre 5% e 15% dos adolescentes reconhecem o mesmo sentimento. “Os idosos, por exemplo, sofrem com a perda de familiares e entes queridos, a aposentadoria também pode contribuir para este sentimento já que eles não têm uma rotina mais ativa. Já os adolescentes, estão vivendo a era das conexões virtuais, com pouco contato real. Além disso, eles estão em fase de construção da identidade e são impactados pelas redes sociais que podem aumentar a sensação de exclusão. Algumas categorias profissionais também não oferecem uma rotina de convívio social regular. Todos esses grupos merecem atenção, cada um com suas particularidades”, explica Antônio Geraldo.
Em ambos os grupos etários destacados, há fenômenos da contemporaneidade que acentuam essa epidemia. Por um lado, o mergulho nas redes sociais contribui para o isolamento dos mais jovens em relação à falta de profundidade dos vínculos interpessoais. Por outro, o aumento da expectativa de vida amplia a parcela da população mais idosa, que convive com muitos fatores de isolamento.
“A solidão no processo de envelhecimento vai além da ausência de uma companhia, de estar junto. É a falta de vínculos, de escuta, de troca, de abraço, do bom dia, da xícara de café com bolo quentinho, que ainda podemos sentir o cheiro. Combater esse sentimento passa por incluir a pessoa idosa nas relações familiares, no grupo social, por querer estar junto, por querer ouvir suas histórias ricas de um tempo que fica em nossa imaginação”, afirmou a psicóloga e especialista em gerontologia Elizete Maciel.

“A solidão no envelhecimento vai além da ausência de uma companhia. É a falta de vínculos, de escuta, de troca, de abraço, do bom dia, da xícara de café com bolo”, explica Elizete Maciel, que recomenda incluir a pessoa idosa, nas relações familiares, no grupo social e ouvir suas histórias.
Ela explica que esse sentimento nem sempre é visto como um problema. Isso porque para parte dessa população estar sozinha pode significar a liberdade de poder fazer o que gosta, encontrar novos caminhos ou mesmo a possibilidade de participar de atividades e grupos do seu interesse.
Porém, a psicóloga ressalta que experiências típicas como ter a casa cheia ou promover aquele almoço aos domingos vão deixando de ser algo habitual para a terceira idade. “Os espaços se tornam vazios e o sentimento de solidão vai chegando, as mudanças diárias, o ritmo e o círculo familiar e social, afetam profundamente a população idosa. Muitas dessas pessoas passam a conviver com perdas frequentes, começando pela aposentadoria, amigos, cônjuge ou da sua própria autonomia – o que pode gerar um afastamento gradual da vida social”, declarou Elizete.
Seja pelo crescimento dos filhos, pelos problemas de saúde ou pelas limitações de mobilidade, há nesse processo uma gradual escassez dos momentos de interação.
UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA

Em virtude dos efeitos no organismo e os sofrimentos que a epidemia da solidão provoca na população, seu enfrentamento é uma urgência nas políticas de saúde pública. Cantilino avalia que o setor tem um papel essencial e muitas vezes negligenciado. “Isso começa por ampliar o acesso aos serviços de saúde mental nos postos de saúde e fortalecer os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), que são fundamentais no acolhimento de quem sofre emocionalmente”.
Apostar na capacitação dos profissionais da atenção primária é outra recomendação para o fortalecimento das políticas de saúde pública. Esse investimento é necessário para que o sistema consiga reconhecer precocemente os sinais de sofrimento psíquico e encaminhar os casos de forma adequada.
A promoção ativa do encontro entre as pessoas, utilizando inclusive os próprios espaços públicos, é o que Cantilino e Elizete Maciel consideram o aspecto mais transformador. Entre as estratégias estão o estímulo aos grupos de convivência para idosos, a promoção de oficinas culturais, atividades em escolas e praças.
“São ações que fortalecem os laços sociais e criam senso de conexão. A vocação original da cidade sempre foi o agrupamento humano, o convívio, o compartilhar da vida em comunidade. Quando o tecido social urbano se rompe, perdemos a vizinhança, o tempo para conversar ou simplesmente a sensação de que pertencemos a um lugar, adoecemos coletivamente. Portanto, fomentar políticas públicas que resgatem essa dimensão social da cidade é, também, cuidar da saúde mental da população. Reconectar pessoas é uma forma concreta de promover saúde”, explica Amaury Cantilino.
A psicóloga sugere ainda uma atenção à conexão desses idosos com oportunidades de uso das novas ferramentas digitais e o investimento no cuidado integral com a terceira idade. “É preciso manter a pessoa idosa engajada, estimulada, acolhida, promovendo ações para aprendizagem de tecnologia e de estimulação cognitiva, além dos cuidados com a saúde emocional e física. A longevidade é poder envelhecer com dignidade, é poder ir e vir, é a garantia de uma vivência compartilhada entre a sociedade, a família e os espaços coletivos que podem gerar novos caminhos de uma relação de amizade, de afeto e de amor”, declarou Elizete.
Mais do que um sentimento individual, a solidão se revela hoje como um desafio coletivo, com impactos profundos na vida em sociedade. Reconhecer sua gravidade e promover vínculos reais entre as pessoas, seja em casa, nas cidades ou nos serviços públicos, é um passo essencial para construir um futuro com mais conexão e bem-estar.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)