Ernani Martins: “Possivelmente teremos um apagão de professores” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Ernani Martins: “Possivelmente teremos um apagão de professores”

Pró-reitor de graduação da UPE, Ernani Martins, alerta que escolas enfrentam escassez de docentes em algumas disciplinas e que essa situação tende a se agravar em todas as áreas do conhecimento. Ele propõe a adoção de políticas públicas de valorização de professores para solucionar o problema.

Um estudo recente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) revela que muitos estudantes em 2023 estão finalizando o ano letivo sem terem aulas de física ou sociologia com professores habilitados para ministrar essas disciplinas. Em Pernambuco, apenas 32,4% das docências em física no ensino médio são ministradas por licenciados na matéria. A escassez de docentes pode se agravar. O Instituto Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de Sao Paulo), projeta que em 2040 o Brasil poderá enfrentar um apagão de professores na educação básica.

Para Ernani Martins, pró-reitor de graduação da UPE (Universidade de Pernambuco), a solução é implantar políticas públicas de valorização do professor, não apenas em termos salariais mas, também, com a oferta de melhores condições de trabalho. Ele é um conhecedor do assunto. Além de ter atuação na formação de professores na universidade, fez licenciatura em matemática. Nesta entrevista a Cláudia Santos, Martins afirma que a consulta pública do Novo Ensino Médio é um alvissareiro começo para se debater a questão. Mas adverte que se a solução não for encontrada rapidamente, as consequências serão graves. “Teremos uma estagnação no País porque a educação é a mola propulsora para que a gente avance no PIB e no IDH”, adverte.

Há uma projeção do Instituto Semesp de que em 2040 o Brasil poderá enfrentar um apagão de professores na educação básica. O senhor concorda com essa estimativa e quais as suas causas?

Não tenho dados concretos, mas é possível que entre os anos 2030 e 2040 tenhamos esse quadro de uma maneira mais exacerbada. Já temos um apagão em algumas áreas do conhecimento, como matemática e ciências da natureza (que envolvem física, química e biologia). Até na construção do cenário atual de novos currículos como a inserção, por exemplo, do pensamento computacional na educação básica, não temos um contingente de docentes com esse tipo de formação para atuar. Possivelmente teremos um apagão de professores em todas as áreas do conhecimento.

Isso se deve muito a uma construção social do que é ser um professor porque temos essa cultura, que precisa ser desmistificada, da docência como algo feito apenas por amor, apenas pela vocação, e esquecemos de olhar para o lado profissional. Não estou dizendo que não é necessário ter vocação ou amor – condições que devem estar presentes qualquer outra profissão – mas também deve ser ressaltada a valorização desse profissional como em qualquer outra área.

Ao longo do tempo, temos passado por um processo de desvalorização profissional muito forte a respeito do papel do professor que é dicotômico porque, à medida que a educação vai se democratizando no País (a educação não era direito de todos até a Constituição de 1988), paralelamente, a gente vai tendo a desvalorização da figura do professor em todas as áreas do conhecimento.

Partimos do Século 19 para o Século 20, de um olhar que tínhamos sobre como o aluno aprende, para passar do Século 20 para o 21, sobre como é que a gente ensina. Por isso, o Brasil passa a construir políticas públicas para formação inicial e continuada de professores. Investiu-se muito, por exemplo, nas políticas públicas de acesso dos estudantes à educação, na valorização da escola. Mas esse processo não foi acompanhado da valorização do professor que deveria vir em paralelo.

Os jovens que hoje terminam o ensino médio têm a vivência de um longo período de suas vidas convivendo na instituição escola, por isso, conhecem a rotina de um professor. Isso não os motiva a serem professores. Um estudo do Global Teacher de 2018 fez uma consulta em 35 países sobre se haveria interesse da população jovem em ser professor. O Brasil foi o país que ficou na última posição, devido à desvalorização profissional, que envolve vários aspectos desde o financeiro à condição de trabalho.

É importante ressaltar que a atuação do docente tem impacto não somente dentro mas, também, fora da sala de aula, tem impacto no desempenho dos estudantes, na qualidade da escola, no progresso do País como um todo porque ele forma o cidadão que vai atuar em diversas instâncias.

Como deveria ser o processo de valorização do professor?

A valorização do professor passa por diversos fatores, não é somente o financeiro, embora seja óbvio que é o primordial. Temos no Brasil, professores com jornada dupla, às vezes até tripla, sem um salário digno. Temos o sucateamento de escolas, a falta de condição de trabalho, isso também pesa nessa questão da valorização profissional. Não adianta ter um bom salário e não ter recurso didático adequado, não ter uma formação continuada necessária. Do ponto de vista do desenvolvimento profissional o professor precisa continuamente de estudo e atualização principalmente com o avanço dos meios de comunicação e tecnologia. A velocidade de informação é muito rápida e a gente precisa de investimento nessa área.

Como é que um professor vai investir na sua formação com jornada dupla ou tripla? Muitas vezes essa realidade é observada pelos que podem até ter interesse em ser professor mas dizem: “eu vou precisar ter uma jornada exaustiva para ter minimamente um salário adequado para sobreviver, então talvez seja mais interessante eu investir numa carreira em outra área do conhecimento”.

A soma de todos esses fatores faz com que não haja interesse dos jovens em ser professor. Os estudantes na faixa de 16 a 17 anos, que entram na universidade ou que estão fazendo a escolha pela carreira profissional não fazem a opção pela licenciatura, a não ser aqueles que queiram realmente isso. Temos um perfil na licenciatura de alunos um pouquinho mais velhos, são estudantes numa faixa etária dos 19 anos em diante, ou seja, eles tiveram tempo para pensar, amadurecer um pouco essa ideia e fazer a escolha pela licenciatura. Algumas vezes, por falta de oportunidade de escolher outra carreira.

O senhor disse que já enfrentamos um apagão de professores. Um estudo recente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) comprova a sua observação ao revelar que muitos estudantes em 2023 estão finalizando o ano letivo sem terem aulas de física ou sociologia com professores habilitados para ministrar essas disciplinas. Em Pernambuco, apenas 32,4% das docências em física no ensino médio são ministradas por licenciados na matéria. Quais as consequências, por exemplo, de um professor de história ensinar sociologia ou professor de matemática ensinar física?

Isso é bem complicado. Costumo usar metáforas e fazer paralelos em outras áreas de formação. Qualquer médico quando se forma é um médico generalista e aí ele vai se especializar numa área de interesse, como ginecologia, ortopedia etc. Estamos pegando professores com especialidades em determinada área e colocando-os para atuar numa outra área. Não é que eles não possam atuar, até porque eles têm atuado e muito do que a gente tem de resultado está com base nisso. Mas a maneira como eu formo um professor de matemática, por exemplo, não é a mesma de formar um professor de física porque eu estou lidando com saberes diferentes, com características da ciência que são diferentes.

Óbvio que temos uma formação geral, estudamos didática de uma maneira geral, assim como legislação e psicologia. Mas o saber mais técnico e específico da área é aquele que instrumentaliza, que diz como é que a gente lida, principalmente com o processo que é chamado de transposição didática, que estuda como é que eu transformo o saber científico ou o saber do senso comum do dia a dia em um saber da escola. Para isso, precisamos ter um domínio desse processo de transposição.

Numa formação em física e química, por exemplo, pela própria característica dessas ciências, que exige uma dedicação num curso muito pesado, de quatro a cinco anos, o estudante, muitas vezes, pensa: “poxa, vou ter uma dedicação de forma quase que semelhante que na engenharia, só que terei uma valorização social e profissional muito melhor se eu for engenheiro”. Assim, ele abdica daquilo para que tem aptidão e vontade e vai ser engenheiro porque o reconhecimento profissional vai ser mais rápido, ele vai trabalhar numa jornada menor para ter um salário equivalente.

É muito comum estudantes de física ou de química, que são áreas que formam poucos professores, migrarem para outros cursos em função disso. Eles são profissionais escassos no mercado de trabalho. Na iniciativa privada, certamente eles recebem salários melhores e mais atrativos em razão dessa escassez.

Um professor de matemática tem um outro olhar para a física. Talvez muito mais calcado na matemática do que na própria forma de explicar os fenômenos físicos, não é?

Exatamente. Por isso, me referi à transposição de dados e a instrumentalização porque você lida com o saber diferente. Eu sou formado em matemática e no curso de matemática a gente estuda algumas disciplinas de física, mas com aplicação matemática, não com o olhar da física enquanto ciência. Quais são as disciplinas mais afetadas pela falta de professores? A área de ciências da natureza. Mas também está tendo escassez de professor na área de ciências humanas (filosofia, sociologia, até de geografia). Acho que é um avanço bem importante essa consulta pública do currículo do ensino médio porque isso vai fazer com que se repense e se reorganize o currículo, o que também passa pela questão da escolha da profissão.

Quando você melhora a visão da sociedade a respeito do ensino como profissão, você consegue por exemplo, selecionar quem são os melhores candidatos num concurso para professor (boa parte da carreira docente está na esfera pública). Também seleciona melhor os candidatos que vão apoiar os professores de toda a rede no desenvolvimento contínuo de formação, no desenvolvimento da profissão e aí esses professores, partindo da formação inicial e continuada, conseguem manter, conservar, reconhecer a sala de aula, o espaço de educação como algo necessário para a sociedade. E isso faz com que a sociedade continue melhorando a visão que ela tem do ensino. Então, se a gente parar e olhar para qualquer país, não só desenvolvido mas em desenvolvimento também, que tem um olhar mais dedicado para a política pública nessa direção, pode ver que ele está num patamar à frente do Brasil a respeito da valorização profissional e, por consequência, na educação como um todo.

O senhor mencionou essa consulta pública. Quais as outras soluções para resolver o problema? Já existem iniciativas concretas nessa direção?

Temos que repensar as diretrizes de formação inicial dos professores. E para isso acho que um ponto importante foi escutar os professores a respeito do que é necessário para eles. Muitas vezes a gente institui políticas públicas num olhar muito técnico ou muito teórico e não escuta quem está na profissão. Essa retomada de diálogo para entender quais são as nuances, quais são as dificuldades, é necessária. Isso ajuda a nós, que formamos professores, a entender como que está se dando esse processo, do ponto de vista de uma formação colaborativa, para repensarmos as diretrizes curriculares da formação de professores.

Elas têm que estar atreladas ao currículo da escola, ao que as universidades e faculdades constroem em termos de conhecimento científico e ao que os professores efetivamente desenvolvem em sala de aula. Por exemplo, tivemos as DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais) de 2015, depois teve uma de 2019 que não condizia com a realidade do que de fato a escola está vivenciando.

Quando começamos a vivenciar as DCNs, veio esse outro documento contrário, que teve toda uma mobilização nacional e a gente conseguiu suspender essa diretriz. Voltamos, então, para as DCNs de 2015 para começarmos a ter um desenvolvimento e uma construção de algo que requer tempo. Esse também é um outro ponto: investimento em educação não tem um retorno rápido. A Coreia do Sul teve um investimento maciço em educação durante 25 anos para conseguir chegar aonde ela está hoje.

Acho que a escuta dos professores, o repensar a formação docente, ter políticas que estão se constituindo do Século 20 para o Século 21, que olham para essa questão, são pontos fundamentais que passam por diversos aspectos e todos dizem respeito à valorização profissional, muito fortemente na questão salarial, mas também nas condições de trabalho. Tivemos essa experiência na pandemia. Falava-se muito a respeito da inserção de tecnologias digitais na escola, protelava-se muito isso e veio a pandemia e disse: “ou vocês fazem ou vocês não sobrevivem”. Vimos a capacidade dos professores de se reinventarem, mas não foi bem-feito, a gente deve ter resultados das consequências disso muito em breve. Isso também é complicado.

O Brasil nas últimas décadas perdeu a capacidade de planejar o seu desenvolvimento de longo prazo e se concentrou nos planos de governo a cada quatro anos. Isso também não dificulta ao País criar essa visão de que o resultado do investimento em educação leva tempo?

Exato. A educação não é uma coisa imediata. O investimento do professor é realizado numa formação inicial e há uma formação continuada. Esse professor precisa continuamente de uma política pública de formação para que, de fato, tenhamos um impacto na educação. E você não vai conseguir isso em quatro anos, mas em 10, 15 anos.

Temos a nível nacional, políticas públicas que são interessantes, independentemente de governo, que continuaram aos trancos e barrancos, como o Pibid (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), a residência pedagógica, que fomentam os estudantes de licenciatura. Eles recebem bolsa para atividades pedagógicas na escola, com acompanhamento de professor da universidade, para que eles desenvolvam inovação pedagógica. Isso é uma maneira bem interessante porque eles aprendem na prática o que eles teorizam, com ideias inovadoras e escutando os estudantes e os professores.

Esse é um exemplo de políticas que precisam ser ampliadas. Se todo estudante de licenciatura tivesse essa garantia, tenho certeza que isso faria muito jovem pensar em ser professor, porque ele já está vendo a possibilidade de fazer algo diferente e está tendo a possibilidade financeira. Esse é outro ponto: boa parte dos jovens que escolhem licenciatura são de classe média ou classe baixa e, muitas vezes, têm dificuldade de se manter na universidade.

O acesso ao ensino superior democratizou e isso é bom e importante, mas também precisamos de políticas de permanência dos alunos nas universidades e faculdades, como também para que eles possam investir, inovar, pensar em alternativas para o setor educacional.

Quais as consequências caso o apagão de professores aconteça?

Se não houver um investimento rápido, urgente e contínuo nas políticas públicas de formação de professores, teremos uma estagnação no País porque a educação é a mola propulsora para que a gente avance no PIB, no IDH. Como é que o País vai funcionar sem conseguir formar outras profissões? Sem conseguir formar cidadão? A educação é chave para o desenvolvimento da nação e a gente não está atrelando isso à questão da valorização do professor, está atrelando somente à política pública da aprendizagem e não do ensino. Precisamos olhar nessa direção.

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