*Por Rafael Dantas
Pedaços da antiga via férrea expostos pelo chão do Sertão, Agreste e Zona da Mata parecem, hoje, os fósseis de um passado longínquo de Pernambuco. Algumas das antigas estações viraram museus, prédios públicos, moradia ou mesmo foram destruídas pelo tempo. Quem viaja para o interior do Estado, mesmo na Região Metropolitana do Recife, consegue testemunhar os vestígios desse modal de transporte, que enfrenta grandes dificuldades para ser ressuscitado.
O desgaste e as crises do sistema ferroviário em Pernambuco são antigas, mas o abandono total mais recente tem algumas datas a serem lembradas. Em 1998, todo o sistema que estava sob a gestão da RFFSA (Rede Ferroviária Federal) foi concedido para a iniciativa privada, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso. Entre as cláusulas do contrato, assinado um ano antes, estava a de “manter a continuidade do serviço concedido”.
A malha assumida naquele ano cobria sete estados do Nordeste (Alagoas, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte). Só em Pernambuco, operavam ainda três linhas no final dos anos 90. A linha centro do Recife até Salgueiro, a linha sul, que seguia até a Zona da Mata Sul pernambucana, em Canhotinho (seguindo para Alagoas), e a linha norte, com destino a Zona da Mata Norte, em Timbaúba (seguindo para a Paraíba). Em aproximadamente dois anos, a linha mais extensa, para o Sertão, foi interrompida. Em menos de 15 anos da concessão, todos os três trechos já não tinham mais operações.
O historiador e pesquisador do Patrimônio Ferroviário de Pernambuco, André Cardoso, lembra que o sistema transportava itens como açúcar, grãos, combustíveis e gipsita, da região do Araripe, que chegava por via rodoviária até Salgueiro. A mais antiga das linhas em operação em Pernambuco era a sul, que foi a segunda a ser inaugurada no País, ainda no Século 19.
“A ferrovia sempre foi fundamental para o desenvolvimento da região, impactou muito a transformação de espaços urbanos e rurais. Ainda nos anos 1990, a ferrovia foi usada para amenizar os problemas decorrentes das secas no interior, com uso de vagões tanque que levavam água para o Agreste. Havia muitas cargas ainda sendo transportadas na época da Rede Ferroviária, mas, após a concessão, não houve uma continuidade desses serviços”, lamenta o historiador.
O engenheiro e professor aposentado da UFPE, Maurício Pina, lembra que com o desuso da via, o sistema foi atacado pelo processo de urbanização desenfreada em vários trechos. “A concessão destruiu a malha ferroviária do Nordeste. Em Pernambuco há anos não circula um trem sequer de carga. Por um tempo ainda havia o Trem do Forró, mas após um descarrilamento, nem isso mais. Casas e até praças foram construídas sobre a linha do trem, foram roubados quilômetros de trilhos”, destacou.
O engenheiro Fernando Jordão, ex-presidente do Porto de Suape e ex-superintendente da RFFSA, ressalta que Suape chegou a ser conectado por essa antiga malha, o que dava para o porto uma condição relevante de integração regional. “Era servido por uma malha que articulava vários portos. Estava conectado com Salvador, Maceió, Recife, Cabedelo e Natal. Era um porto articulado com os demais da região. Isso dá uma condição que poucos portos tinham”. Com a interrupção do serviço, hoje todo o transporte que poderia ser feito por trilhos para as regiões produtoras do interior ou para os demais portos passou a ser rodoviário.
Ele destaca que Suape foi concebido com uma visão de futuro aguçada, mesmo quando ainda não tinha o volume de movimentações atual. Fernando Jordão conta que, para se conectar à malha ferroviária da região, o porto precisava construir uma malha interna com capacidade de suportar 37 toneladas, que era o padrão. Mas vislumbrando o crescimento, optou por um trilho que suportava 45 toneladas. “Adotaram esse trilho com uma visão de futuro. O porto e a ferrovia, no passado, tinham uma sintonia perfeita.”
Se aumentarmos a lupa para a região Nordeste, quase nada permanece em operação nesse sistema que tinha, entre seus atributos, o de conexão dos portos das capitais da região. Igualmente ao que acontece em Pernambuco, muitas das estações viraram museus ou ganharam outros usos, quando não foram demolidas.
Ao olharmos os mapas da antiga malha ferroviária e da Transnordestina atual, é possível perceber que se houvesse a manutenção da operação dessas linhas antigas, restaria um trecho muito menor a ser construído. Para haver a integração da rota dos grãos da região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e dos minérios aos portos, restaria a ser construído atualmente o trecho sertanejo que conectaria Salgueiro, em Pernambuco, e Missão Velha, no interior do Ceará, a Eliseu Martins, região do Piauí, que é o ponto inicial do projeto atual.
A conexão entre essa história e o atual projeto da Transnordestina é que a empresa que assumiu a antiga malha ferroviária, a CFN, que hoje tem o nome de FTL (Ferrovia Transnordestina Logística), é controlada pela Companhia Siderúrgica Nacional. Esse é o mesmo grupo que lidera a TLSA (Transnordestina Logística SA), concessionária que assinou em dezembro um aditivo que retirou a linha Salgueiro-Suape da concessão.
MEMÓRIAS DA FERROVIA
Regivaldo Nascimento, 58 anos, é maquinista no Metrô do Recife e é conhecido na via pelo apelido de Jacaré. No início dos anos 80, enquanto estudava na escola técnica, fez um estágio na Rede Ferroviária Federal e, anos depois, em 1987, passou para o quadro da empresa. Seus primeiros passos na ferrovia foram na manutenção dos trens e do sistema mas, posteriormente, passou a operar locomotivas. Mesmo já tendo passado para o quadro do Metrô, ele fez viagens, cedido para a RFFSA, conduzindo as composições para destinos como Ribeirão, Arcoverde e até Salgueiro.
“A gente transportava muito açúcar, álcool, pegando carga das usinas e levando para o cais dos portos. Tinha muito milho, de Belo Jardim. Gesso que pegávamos em Salgueiro. Quando a gente chegava nessas cidades era uma festa. Ninguém imaginaria que iria acabar”, recorda o maquinista. Já nos anos 1990, ele lembra de chegar a transportar até 22 vagões em uma única viagem, até a cidade de Arcoverde. Uma de suas memórias foi o desafio de subir o trecho da Serra das Russas em uma noite de chuvas, em que a locomotiva patinava (deslizava sobre os trilhos). Para chegar em Gravatá, os maquinistas tiveram que dividir o comboio em duas viagens e jogar areia nos trilhos para ter mais aderência.
Mesmo com as dificuldades e longas viagens, que chegavam a ser de 12 horas no trecho mais longo, ele lamenta o encerramento das operações. “Desde o momento em que entrei, já havia o comentário que a rede iria parar, mas a gente duvidava por ser um serviço essencial e importante para a população. Eram viagens maravilhosas e baratas. Foram muitas aventuras. Era sofrido, mas é um serviço que não poderia ter parado”, lamenta Regivaldo.
O trecho de Gravatá, inclusive, é alvo de um projeto de recuperação para uso turístico da ONG Amigos do Trem. Apaixonados pela ferrovia, um grupo de voluntários, com frequência, faz parte do percurso das antigas vias para documentar os patrimônios e até limpar os trechos.
“Houve um desinteresse muito grande em ter circulação de trens aqui e, no mínimo, ter um veículos percorrendo todas essas linhas para fazer a vistoria dos trechos. Se tivesse esse trabalho com veículos de pequeno porte não haveria as ocupações nas linhas e reduziria muito o roubo de trilhos”, afirma o voluntário Mateus Melo. Ele afirma que além da limpeza e manutenção de parte do patrimônio restante, os voluntários promovem ações de educação com a população vizinha às antigas estações. Só nesse trecho da Serra das Russas, por exemplo, há 14 túneis e 6 pontes no trajeto. Mateus afirma que em muitos trechos nem é possível mais ver os trilhos.
Ele lamenta que o descontrole urbano tenha avançado sobre muitas áreas do dessa antiga malha ferroviária. “Fico bem preocupado pela descaracterização desses lugares. Reparei que entre 2001 e 2016 houve uma degradação mais lenta, mas de 2015 para cá, ela foi muito mais forte. Está desaparecendo. Minha maior preocupação hoje é registrar em fotos e vídeos os últimos suspiros desses lugares. Em alguns anos não haverá vestígios de que passou um trem por ali”, conta Mateus.
UMA FERROVIA PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Olhando para o passado da ferrovia, o engenheiro Fernando Jordão avalia que houve um grande erro do Governo Federal na fiscalização do contrato. Olhando para o futuro, ele considera que é preciso pensar a Transnordestina com um papel de integração regional, articulando-a com os demais estados. Ele avalia que a alternativa da autorização ferroviária, em que a Bemisa seria a responsável por uma via direta para as minas, não atenderia de forma satisfatória a vocação de Suape, que é de integração regional.
Nessa perspectiva, uma alternativa que contemplasse só Pernambuco, em meio à atual discussão sobre viabilidade econômica da malha, não seria o melhor para o Estado também. “Primeiro é importante a manutenção da concessão. Segundo é saber se a empresa tem condições de operar. O caminho da autorização pode inviabilizar o sistema portuário do Nordeste e inviabilizar Suape, que não teria a articulação com os demais portos. Uma linha que não faça a articulação com os demais portos não interessa a Suape”, avalia Fernando Jordão. “São, portanto, dois problemas. Não faria isso por autorização. Segundo, em sendo concessão, vamos ver se a empresa tem condições de operar”.
O engenheiro corrobora o pensamento de que sem uma ferrovia, apesar de todos os atrativos naturais, o desenvolvimento Suape fica condenado pela ausência da infraestrutura. “Suape é um porto exemplar, que inspirou a primeira lei de modernização dos portos do Brasil. Mas está sem futuro sem a estrutura de uma ferrovia. Há 10 anos carregamos 25 toneladas em cima de caminhão. Essa situação teve um começo, deu um nó no meio, mas pode ser desmanchado esse nó”.
Apesar de considerar desafiante, o engenheiro afirma estar confiante na atuação do Governo do Estado para reverter o cenário atual.
Conforme destacado na entrevista da edição anterior da Algomais, pelo ex-secretário de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, Bruno Schwambach, a alternativa da autorização junto à Bemisa surgiu diante do desinteresse apresentado pelo concessionário, que culminou na retirada de Pernambuco do empreendimento, e da negativa do Governo Federal, na gestão Bolsonaro, de investir na infraestrutura da região, priorizando projetos da iniciativa privada.
Com a transição no Governo Federal, há uma mudança no tabuleiro desse xadrez da concessão. No mês passado, quando o deputado Carlos Veras e os senadores Humberto Costa e Teresa Leitão visitaram Renan Filho, os parlamentares comemoraram o compromisso que o ministro assumiu de iniciar os estudos de viabilidade do empreendimento até Suape.
No dia seguinte ao anúncio, a redação da Algomais solicitou uma explicação sobre qual seria o estudo e os prazos. Em resposta, a assessoria de comunicação informou que: “O Ministério dos Transportes pretende fazer um estudo de alternativas de ações, a partir de iniciativas públicas ou privadas, que possam viabilizar o empreendimento, incluindo a realização de um estudo de viabilidade técnica, econômica e ambiental no momento oportuno. Inicialmente, os estudos serão feitos pelo Ministério e suas vinculadas, entre elas, a Infra S.A.” O ministério informou também que até o momento já foram executados 38% das obras no trecho Salgueiro-Suape.
Alguns passos podem ter sido dados nesse período, já que houve uma nova sinalização publicada no jornal O Estado de São Paulo nesta semana, em que o ministro dos Transportes, Renan Filho, ressaltou o interesse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo desagradando a CSN, de viabilizar a linha para Suape. “A solução pode ser privada ou com recursos públicos. O ramal custa aproximadamente R$ 4 bilhões”, afirmou o ministro ao jornal. A decisão política, nesse caso, é fundamental para encontrar alternativas para o prosseguimento das obras em Pernambuco.
Enquanto segue ainda uma indefinição sobre o futuro da linha Salgueiro-Suape, o ramal cearense segue numa batalha pelo financiamento da linha Salgueiro-Pecém. De acordo com informações publicadas pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, o novo modelo de financiamento para o ramal cearense é de uso de recursos do FDNE (Fundo de Desenvolvimento do Nordeste) e da recompra de cotas do Finor (Fundo de Investimento do Nordeste). A empresa já tem também aprovado um financiamento de R$ 1 bilhão (R$ 234 milhões do Finor e R$ 811 milhões do FDNE), que estava suspenso pelo Tribunal de Contas da União desde 2017.
Maurício Pina avalia que a resolução desse impasse na linha pernambucana passa pelo caminho político, destacando que o interesse num sistema de integração é de todos os estados. “A ferrovia interessa ao Piauí, ao Ceará, a Pernambuco e ao desenvolvimento de toda região. Se não houver harmonia, perderemos a batalha. A Transnordestina é um dos projetos mais importantes para Pernambuco. Se não resolver esse problema, Suape perderá muito de sua importância”.
Os traumas do passado deixaram cicatrizes bem visíveis no território pernambucano, pelos trilhos e estações onde hoje só se guardam lembranças dos seus dias áureos. Identificar os erros desse processo iniciado nos anos 90 e também da concessão de 2006 que, quase 17 anos depois, não foi concluída, é fundamental para não projetar um futuro de novas frustrações e prejuízos para a combalida economia nordestina, ainda tão carente de infraestrutura.
*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)