Durante visitas ao Quilombo Catucá e à Aldeia Multietnica Jaguarana Kaetés, alunos da rede municipal vivenciaram saberes ancestrais e refletiram sobre identidade, pertencimento e protagonismo histórico
Entre cantos que atravessam gerações e o silêncio sagrado da mata, mais de 100 estudantes da rede pública do Recife viveram uma jornada que vai além dos livros escolares. Foi no encontro com os guardiões da memória — indígenas e quilombolas — que esses alunos começaram a reescrever a história do Brasil sob uma nova luz: a da ancestralidade viva, que pulsa em cada gesto, cada palavra e cada território visitado.
Na terça (22), os passos se voltaram ao Centro Cultural Quilombo Catucá, em Camaragibe. Lá, o tempo ganhou outro ritmo. Os estudantes foram acolhidos por lideranças quilombolas e imersos em histórias de resistência e força coletiva. Entre batuques, saberes compartilhados e o contato com as tradições afro-brasileiras, descobriram que o Brasil que habitam foi erguido também por mãos negras. O Quilombo Catucá tornou-se sala de aula viva, onde o passado e o presente dialogam com dignidade e orgulho.
Na quarta (23), a trilha seguiu para a Reserva de Floresta Urbana Mata de Jaguarana, no município de Paulista. Ali, entre os 332 hectares de Mata Atlântica em regeneração, nasceu um espaço de retomada da cultura e dos saberes ancestrais: a Aldeia Multietnica Jaguarana Kaetés. Os estudantes foram recebidos por indígenas em contexto urbano que, com firmeza e ternura, ensinaram sobre espiritualidade, cosmovisão, medicina ancestral e a força da oralidade como ferramenta de preservação. A vivência foi uma aula de pertencimento, conexão com a natureza e respeito às origens dos povos que habitam este território desde muito antes da colonização.
As duas imersões fazem parte do projeto “Era Uma Vez… Brasil”, que está em sua 9ª edição e propõe uma reconstrução da narrativa histórica brasileira sob o tema: “Quem conta a nossa história? A participação indígena e afro-brasileira na formação do Brasil”. A etapa do Recife integra um processo mais amplo, que inclui a produção de histórias em quadrinhos e curtas-metragens criados pelos próprios estudantes — obras que poderão levá-los a um intercâmbio cultural em Portugal, em novembro.
Para Marici Vila, diretora executiva da Origem Produções, idealizadora do projeto, a proposta é devolver a esses jovens o direito de contar sua própria história. “A vivência no Quilombo Catucá e na Aldeia Jaguarana não é apenas uma visita: é um encontro com as raízes que sustentam o Brasil, mas que historicamente foram apagadas ou silenciadas. Queremos que esses jovens se reconheçam como narradores das suas próprias trajetórias e que percebam o quanto suas identidades estão conectadas com a construção do país”, afirma. “Quando um estudante pisa em um território ancestral e escuta uma liderança indígena ou quilombola, ele entende que a história não é algo distante. Ela está viva, presente, pulsando nele. E é essa consciência que transforma. O projeto é sobre memória, sim, mas também sobre futuro”.
Para os estudantes, os dois dias foram intensos em aprendizado e emoção. Julia Ferreira, de 14 anos, disse que nunca havia estado em um quilombo antes e saiu da experiência com um novo olhar sobre sua própria origem. “Eu sempre vi a história dos livros como algo distante, mas ouvir as histórias ali, de verdade, me fez perceber que a gente também faz parte disso tudo. Que o povo negro resistiu e resiste, e que eu carrego isso em mim. Me senti mais forte”, relata.
Já Igor Matheus, de 15 anos, se emocionou durante o ritual de abertura da Aldeia Jaguarana e destacou a importância do contato com a natureza e com os povos originários. “Foi muito forte escutar os indígenas falando sobre como eles veem o mundo, como cuidam da terra, do corpo e do espírito. Isso me fez pensar no quanto a gente se desconectou dessas coisas. Eu saí de lá querendo aprender mais, me reconectar também. Foi uma lição de respeito e humanidade”, conta.
Além do Recife, o projeto também acontece em outras 15 cidades, em 4 estados brasileiros, levando formação e inspiração para centenas de adolescentes em Salvador, Belo Jardim, Lençóis Paulista, Paranaguá e outras localidades.