Cultura bem temperada

Cultura bem temperada

Raul Lody

Farinha sempre farinha

Entre as muitas formas de se comer mandioca, há um caso exemplar e verdadeiramente nacional que se dá com a farinha, a farinha de mandioca. Pode-se dizer que o brasileiro é um “comedor de farinha”, um grande apreciador da farinha de mandioca, e com esse ingrediente ele cria e retoma as memórias milenares das civilizações americanas; e faz cardápios que nos identificam e nos singularizam como povo.

Pode-se adicionar farinha de mandioca em quase tudo: nas frutas, nas leguminosas, nos molhos; na pimenta amassada, no ovo, nos peixes; nas aves, nas carnes; no mel, melado; no leite, no açúcar; ou simplesmente pura; saborosamente pura. Farinha para se sentir o “bouquet”, a textura; a qualidade que caracteriza a sua procedência, o lugar, “terroir”, que determina a técnica e o estilo.

A farinha acompanha o brasileiro no seu cotidiano, e também no tempo da festa. Farofas especiais, feitas com ingredientes também especiais, e por isso sendo chamada por muita gente de “farofa-rica”; e aonde também se aproveitam os “miúdos” da galinha, que será assada; assim são ampliados os sabores, juntamente com ovos, manteiga, cebola entre tantas outras possibilidades de ingredientes.

Também, vê-se o uso da farinha de mandioca como recheio para peixes inteiros, e assados. Muitos são recheados com a farofa de ovos, e com outros temperos. Geralmente essas farofas fazem parte da categoria “molhada”, quando a farinha de mandioca absorve bem seus complementos, e ganha um valor tão significativo quanto o do “prato principal”.

Um dos usos consagrados da farinha de mandioca é o para cobrir a comida no prato. A farinha é colocada generosamente sobre o feijão, o arroz, o macarrão. Há uma fantástica liberdade no uso da farinha, e isso compõe as nossas “identidades” gastronômicas. Muito comum, ainda, é o emprego da farinha de mandioca como uma verdadeira “liga” entre tudo que está no prato. Se a comida é mole, uma quiabada, por exemplo, a farinha dá uma consistência especial, pois quando é bem misturada ao prato ela acrescenta novos e especiais sabores.

Exemplo sobre a etnografia da “liga”: no prato está o feijão, o arroz, o macarrão – espaguete –, e um pedaço de carne guisada. Então, inicia-se o ritual. Após o reconhecimento da comida com uma faca, o macarrão é picadinho e começa a se revolver tudo até que chega o momento especial de se colocar a farinha de mandioca. Nesse momento de culminância existem alguns princípios. A farinha pode ser pulverizada sobre tudo em várias camadas até se conseguir a textura desejada; ou então a farinha é colocada em grandes quantidades, e com o uso do garfo vai-se amassando geral.

Também para a clássica receita do arroz com feijão há essa orientação na formulação do prato, isso passa a ser quase uma regra que é seguida por milhares de brasileiros. Primeiro coloca-se no prato o feijão, nesse caso geralmente o feijão preto; depois farinha, a gosto, é colocada sobre o feijão; e, assim, juntos são amassados, revolvidos, e conforme o desejo do criador da refeição, sobre essa “massa” de feijão e farinha, o arroz.

Essas experiências gastronômicas marcam exemplos da boa comida, sem os rótulos exógenos de ser “alta” ou “baixa” gastronomia, que são conceitos estranhos para o meu entendimento sobre o que é uma boa comida.

 

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