Frei Caneca: um herói esquecido pelo Brasil - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Frei Caneca: um herói esquecido pelo Brasil

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Aos 200 anos de sua morte, o mártir permanece pouco lembrado no País e mesmo em Pernambuco, apesar da sua importância para a independência do Brasil

*Por Rafael Dantas

Agenda TGI

Há 200 anos, o Frei Caneca vivia seus últimos dias. Preso na capital pernambucana, o religioso e líder revolucionário, que participou dos dois maiores movimentos políticos da história de Pernambuco, seria executado pelos seus feitos e por suas ideias no dia 13 de janeiro de 1825. O grande pensador da Confederação do Equador e sobrevivente da Revolução Pernambucana de 1817 foi fuzilado, mas sua mensagem permaneceria viva. Ainda que até hoje não tenha o reconhecimento merecido, nem em Pernambuco, nem no Brasil.

Mais que uma liderança política local, Frei Caneca é um dos grandes revolucionários do País. As repetidas amputações do território Pernambucano, que perdeu muito da sua extensão para a Bahia e para Alagoas, foram represálias aos movimentos da então província que balançaram o Reinado de Dom João VI em 1817 e o Império de Dom Pedro I em 1824.

As rupturas com o poder central e a conclamação de outras províncias para a construção de um País com um sistema de governo mais sofisticado indicam a força desses movimentos. Mesmo com poucos meses de resistência, ambas as revoluções vividas por Frei Caneca foram marcadas por batalhas, com muitos mortos, articulações políticas intensas e mensagens em prol de uma ordem política muito avançada para a época.

Execução de Frei Caneca, obra de Murillo La Greca

É por esses e outros motivos que muitos historiadores comparam a dimensão dada no País a Frei Caneca e a Tiradentes. Ambos terminaram mortos com as revoluções com as quais se envolveram. Mas enquanto o mineiro Joaquim José da Silva Xavier virou um mito nacional, com uma praça monumental em sua homenagem em Ouro Preto e registros fartos nos livros didáticos, as reverências ao pernambucano Joaquim da Silva Rabelo são muito mais tímidas, mesmo no Estado de Pernambuco.

Vindo de uma família humilde, que morava num local periférico do Recife na época, Frei Caneca era um intelectual. Com os ideais que aprendeu nos livros que teve acesso em seus estudos, com especial atenção ao período do Seminário de Olinda, o religioso contestou Dom Pedro I

UM LÍDER POLÍTICO INTELECTUAL

Frei Caneca não foi o presidente da Confederação do Equador, mas de longe é o mais reconhecido. Vindo de uma família humilde, que morava num local considerado periférico do Recife na época, ele era um intelectual. Com os ideais que aprendeu nos livros que teve acesso em seus estudos, com especial atenção ao período do Seminário de Olinda, o religioso contestou Dom Pedro I.

“Mesmo jamais tendo saído da sua província natal, exceto pela temporada na Bahia, ele se tornou um dos homens mais cultos e um dos maiores pensadores políticos do País, além de notável poeta. Juntando-se a isso muita coragem, energia, carisma e capacidade de comunicação, afora um grande amor pelo povo brasileiro, reuniram-se nele os ingredientes para formar um líder político como jamais se vira antes por aqui”, escreveu sobre Frei Caneca em seu livro Pernambuco - Histórias e Personagens do jornalista Paulo Santos de Oliveira.

Os principais embates que levaram a Confederação do Equador em 1824 eram relacionados ao autoritarismo de Pedro I. A centralização do poder nacional, ainda hoje questionada, estava no foco do problema naquele ano. Dom Pedro I havia indicado para governar Pernambuco Francisco Paes Barreto. Porém, os pernambucanos escolheram Manoel de Carvalho. Um ano antes, o monarca havia ainda dissolvido a Assembleia Constituinte e criado ele mesmo um projeto de constituição, também rejeitado por suas ideias centralistas e autoritárias.

“A gente pode considerar o Caneca como um ideólogo. Parte das questões relacionadas com a ideologia do movimento de 1824 era sobre os enfrentamentos de entendimento do que seria pátria, cidadão e república. Ele fala muito sobre a federação. Ação política em direção à concentração de poderes na mão do Executivo – no caso, o imperador – fez com que o Frei Caneca rechaçasse todo esse modelo que considerava já ultrapassado diante dos novos momentos que se viviam, já depois da Revolução Francesa e de muitas revoluções liberais”, afirmou o historiador e professor da Unicap Flávio Cabral.

ENFRENTAMENTO AO AUTORITARISMO

Havia um conjunto de pensamentos defendidos por Frei Caneca que representava um verdadeiro terremoto no sistema escravista, centralizador e com forte influência lusitana do Brasil da época. E diante de um líder autoritário, como Dom Pedro I, ter um habilidoso intelectual em Pernambuco era um problema.

Embora seja lembrado principalmente por 1824, Caneca já estava presente em 1817. O professor Flávio Cabral rejeita a ideia de que ele era apenas um mero estagiário nesse primeiro movimento, mas destaca uma atuação forte do jovem no primeiro levante contra a Coroa Portuguesa. “Eu encontrei uma documentação que afirmava que Frei Caneca distribuiu panfletos na hora da bênção da bandeira de Pernambuco, onde hoje é a Praça da República. Ele saiu pelo meio do povo entregando panfletos, falando sobre a nação, glorificando a pátria naquele momento histórico. Por sua atuação, ele foi preso após a revolução na Bahia e só foi sair em 1821 da cadeia”, afirmou o pesquisador, que lembrou ainda que o líder escreveu um Plano de Educação para Pernambuco durante o Governo de Gervásio Pires. “Era fabuloso! Na época, a educação no País não existia, mas ele chega a apresentar à Junta de Governo um plano interessantíssimo”.

"Frei Caneca, na hora da bênção da bandeira de Pernambuco, saiu pelo meio do povo entregando panfletos, falando sobre a nação. Por sua atuação, foi preso na Bahia após a revolução e só foi sair em 1821 da cadeia" (Flávio Cabral)

O próprio fato de ser um religioso enfrentando a maior autoridade do País por si já era um fato político revolucionário para o pesquisador Carlos André Silva de Moura, que é historiador e professor da Universidade de Pernambuco. “Todos os ideais do Frei Caneca foram revolucionários. Desde ser um padre que questionou o status quo daquele período à possibilidade de rompimento com o governo central. Imagine um padre, que tem toda uma tradição, uma necessidade de uma hierarquia, questionar o governo central! Isso no Século 19 era algo muito difícil”, salientou.

"Todos os ideais do Frei Caneca foram revolucionários. Imagine um padre, que tem toda uma tradição, uma necessidade de hierarquia, questionar o governo central! Isso no Século 19 era algo muito difícil." (Carlos André Silva de Moura)

Unir carisma, força política e intelectualidade não é uma tarefa fácil sequer no Século 21. Mas Frei Caneca conseguiu unir essas habilidades em pleno Século 19 – sendo religioso e político – com outra característica muito valorizada atualmente: a capacidade de comunicação.

UM COMUNICADOR ACIMA DA MÉDIA

Como religioso, Frei Caneca era um orador, que mesmo muito jovem foi professor de uma disciplina de retórica. Ele tinha ainda uma didática e uma poética impressionantes em seus textos. Para que sua voz não ecoasse apenas nos templos e espaços religiosos, lançou um jornal. Com o Typhis Pernambucano, ele deixava para a posteridade seu pensamento dos assuntos contemporâneos.

Frei Caneca tinha um texto afiado, como um bom político. Tinha poética, como um escritor de excelência. Além disso, era didático, como um bom professor ou pregador. Foi nas páginas do seu jornal histórico que ele conclamou o povo pernambucano a se rebelar contra o imperador:

"Eia, pernambucanos! A nau da pátria está em perigo, cada um a seu posto, unamo-nos com as províncias limítrofes. Escolhamos piloto que mareie a nau ameaçada de iminente e desfechada tempestade, elejamos um governo supremo, que nos conduza à salvação e à glória. Debaixo de um tal governo enérgico e patriota, não devemos desesperar; debaixo dos seus auspícios, vencermos, e se esperamos pelo defensor que nos abandona, morrermos todos", afirmou Caneca, no Typhis Pernambucano.

O defensor que abandonou foi Dom Pedro I, que recolheu sua frota ao Rio de Janeiro diante da informação de que receberia um ataque de Portugal. O movimento deixou o Recife desprotegido. O referido ataque nunca aconteceu, mas expôs a falta de zelo do imperador pela província. Frei Caneca não deixou passar e pouco tempo depois a rebelião foi debelada.

No livro Obras Políticas e Litterárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, publicado em 1875, o organizador Antônio Joaquim de Mello chega a afirmar que o religioso não foi um “literato e sábio ocioso; escreveu muitas obras”. Ele exulta a produção do revolucionário, descrevendo que todo o conjunto de textos recolhidos e entregues ao público era uma evidência “mais que suficiente para comprovar as luzes de que ele dispunha, e o fogo que lhe abrasava incessante o heroico peito no amor da liberdade e ilustre da província, em que nasceu, e que ele tão estremecidamente amava”.

UM LÍDER QUE PEGOU EM ARMAS, FOI EXECUTADO, MAS NÃO SILENCIADO

A Confederação do Equador foi muito breve. Nos primeiros dias da revolução, as províncias da Paraíba e do Rio Grande do Norte aderiram aos confederados rapidamente, sendo seguidos também pelo Ceará. Ela se inicia oficialmente em 2 de julho de 1824 e é debelada em 29 de novembro de 2024.

A repressão foi dura, com ataques pelo mar e por terra. Além de enfrentar as forças imperiais, os revolucionários lutavam também contra lideranças conservadoras locais do interior, alinhadas a Dom Pedro I. Com o endurecimento dos ataques, o presidente Manoel de Carvalho asilou-se numa nau inglesa. Frei Caneca partiu à frente de uma coluna militar em direção ao Ceará, pelo Sertão nordestino.

Após ser rendido e trazido ao Recife, Caneca foi preso no Forte das Cinco Pontas. Foram tristes os seus últimos dias. Mas a historiografia revela um líder resiliente e de semblante sereno diante dos tiranos que leram sua sentença. Em um de seus poemas, já prevendo seus dias finais, Caneca chega a escrever que:

Quem passa a vida que eu passo,

Não deve a morte temer

Com a morte não se assusta

Quem está sempre a morrer

Forte das Cinco Pontas

Após ser sumariamente julgado, o religioso seguia do Pátio do Terço até o local no Largo das Cinco Pontas onde seria executado. Com a negação de três carrascos de cumprirem a ordem de enforcamento, por empatia ao religioso, ele foi fuzilado.

Apesar da brutalidade da morte do líder, sua voz não foi silenciada. “Nos anos subsequentes, a documentação enviada para o Rio de Janeiro dizia que não se apagaram por completo aquelas ideias. Isso é muito interessante. Não pense que com o silêncio de matar houve um silenciamento. Era um rancor mesmo, porque o povo estava insatisfeito com o governo do imperador”, destacou Flávio Cabral.

A ESPERA DE UM RECONHECIMENTO NECESSÁRIO

Frei Caneca é o nome de várias ruas pelo País e até de shopping center. Na ocasião do bicentenário da Confederação do Equador seu nome foi relembrado, em vários eventos e publicações. Porém, para um líder cujo pensamento teve importância nacional, falta maior atenção e investimento na preservação da sua memória.

A comparação com Tiradentes nesse debate é inevitável. É impossível chegar em Ouro Preto e não ouvir sobre a história da Inconfidência Mineira. A praça central da cidade leva o seu nome, a casa onde aconteceram as reuniões do movimento é alvo de visitações turísticas. A imagem do seu sacrifício foi imortalizada quase como um “Cristo”, que foi esquartejado. Essa memória mineira que move parte do turismo histórico do estado, é praticamente inexistente em Pernambuco.

O busto de Frei Caneca está instalado nas proximidades do Forte das Cinco Pontas. Completamente esvaziado pelas próprias dinâmicas do Centro do Recife. Flávio Cabral menciona, inclusive, que o local exato do seu fuzilamento não seria ali, mas numa região um pouco mais próxima da Avenida Dantas Barreto.

A diferença de reconhecimento – ou o quase apagamento de Frei Caneca – se deu, segundo Carlos André Silva de Moura, porque por muito tempo a historiografia do Brasil era focada no eixo Sul e Sudeste. Porém, isso tem se modificado nas últimas décadas, com novas pesquisas dos Programas de Pós-Graduação do Nordeste e do Norte, que têm dado visibilidade a outros personagens históricos.

“Se a gente fizer uma comparação, por exemplo, entre Frei Caneca e Tiradentes, notamos que eles têm uma visibilidade muito diferente. Existe uma produção e um reconhecimento mais intenso, inclusive midiático, em torno de Tiradentes, porque durante a transição da República, ele foi escolhido para um herói nacional”, afirmou o professor da UPE.

Carlos André defende que a visibilidade de personagens históricos, como Frei Caneca, precisa ser reforçada, inclusive no próprio ensino de história e nos livros do ensino básico, que seguem focados no eixo Sul e Sudeste e esquecem da historiografia do Norte e Nordeste. O pesquisador provoca a reflexão para que a memória desse líder extrapole as datas comemorativas e os monumentos pouco conhecidos pela população. “Vários ideais dele ainda hoje tem validade, como a democracia, a justiça social, a igualdade, o combate à exploração e a escravidão. Ele foi um visionário para o Século 19, tocando em pontos que no Brasil ainda estavam muito reduzidos”.

Após ser sumariamente julgado, o religioso seria executado. Com a negação de três carrascos de cumprirem a ordem de enforcamento, por empatia ao religioso, ele foi fuzilado. Anos depois, suas ideias permaneciam entre o povo que estava insatisfeito com o governo do imperador.

O mesmo pensamento é compartilhado pelo professor Flávio Cabral, que considera que “Pernambuco ainda não observou a beleza que foi o trabalho e o pensamento desse homem”.

Muitos lugares dessa trajetória de Frei Caneca estão preservados, como o Forte das Cinco Pontas, o Pátio do Terço, o Convento do Carmo e o Seminário de Olinda. Os escritos do líder revolucionário, seja em jornais, livros ou sermões, são bastante acessíveis e já com vastas pesquisas acadêmicas. Na terra com a diversidade cultural como Pernambuco, do cinema à música e às diversas manifestações de artes plásticas, ainda está faltando o encaixe das peças para valorizar a memória do religioso que foi um herói do Brasil.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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