"A questão financeira é um dos fatores que impossibilita as mulheres de quebrarem o ciclo da violência" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"A questão financeira é um dos fatores que impossibilita as mulheres de quebrarem o ciclo da violência"

Revista algomais

Titular da Secretaria da Mulher, da Prefeitura do Recife, Glauce Medeiros fala dos programas que contribuem para a população feminina gerar sua própria renda, que tem beneficiado vítimas de violência doméstica. A iniciativa tem colecionado prêmios, o mais recente, Chamada de Boas Práticas para Políticas Locais de Gênero, foi entregue na 29ª Cúpula de Mercocidades, na Argentina.

E m 2020, o recém-eleito prefeito João Campos anunciou um secretariado com paridade de gênero. As fotografias do primeiro escalão da gestão, tradicionalmente masculinas, ganharam uma nova face naquele ano. A escolhida para a função de Secretária da Mulher foi a socióloga Glauce Medeiros. Feminista, vinda dos movimentos sociais, e pesquisadora de gênero, ela já estava como interina após a saída de Cida Pedrosa da pasta para a disputa eleitoral naquele ano.

Quatro anos depois, além de avançar no trabalho mais típico desses órgãos, que é a prevenção e o enfrentamento à violência contra as mulheres, a secretaria registrou experiências exitosas no campo da promoção da autonomia financeira, especialmente no apoio ao empreendedorismo feminino. Motivações para isso não faltaram. No ano da pandemia, nada menos que 99,5% das baixas de carteira assinada foram de mulheres. Além disso, a percepção de quem está no atendimento direto à violência doméstica e sexista aponta que um dos fatores que mantém as mulheres convivendo com os agressores é a falta de renda.

Os projetos ganharam reconhecimento nacional e internacional e culminaram na instalação do Centro de Promoção dos Direitos da Mulher Marta Almeida, que não é focado em vítimas de violência, mas é aberto a todas as recifenses que pretendem se capacitar para o mercado de trabalho, seja para disputar vagas ou para montar seus negócios.

A maioria das ações que acompanhamos das Secretarias da Mulher distribuídas pelo País focam apenas no enfrentamento à violência. O Centro Marta Almeida, que foi inaugurado neste semestre, faz uma atuação no fortalecimento econômico das mulheres. Por que vocês fizeram essa virada de chave?

Esse é o primeiro equipamento municipal de políticas para mulher da gestão da Secretaria da Mulher que atua no fortalecimento sociopolítico, e que contribui para a promoção da autonomia financeira das mulheres. A iniciativa apoia as empreendedoras e aquelas que buscam vagas de trabalho, com objetivo de criar oportunidades para que elas se empoderem do ponto vista político, social e econômico. O Centro Marta Almeida é para todas as recifenses, não apenas as mulheres em situação de violência.

Na gestão de Cida Pedrosa (atual vereadora do Recife) foi idealizado esse espaço de formação e qualificação. Contudo também é uma política de prevenção e enfrentamento visto que a questão financeira é, muitas vezes, um dos fatores que impossibilita as mulheres de quebrarem o ciclo da violência. Não é que a mulher quando tem recursos não fique em situação de violência. Essa situação acontece independentemente de raça ou classe. Mas aquelas que não têm autonomia financeira tendem a sofrer mais violências e enfrentam mais barreiras no processo de saída.

A violência doméstica e a psicológica são muito cruéis, retiram a identidade de sujeito político e de cidadã das mulheres. É fundamental fortalecer a mulher para que se entenda como cidadã, se previna da violência doméstica ou que possa dar os passos para sair desse ciclo.

Uma pesquisa recente do DataSenado revelou que 85% das mulheres negras sem renda convivem com agressores. Essa percepção da relevância do fortalecimento econômico das mulheres é recente?

Essa é uma bandeira histórica do movimento de mulheres. Há bastante tempo lutamos pela inserção delas no mercado de trabalho e igualdade salarial, a promoção da autonomia financeira contribui diretamente com o fortalecimento da cidadania e com o seu empoderamento. E não é que os governos não tinham essa percepção da importância da autonomia financeira, mas é que os equipamentos em geral são voltados à questão do atendimento à mulher em situação de violência. E a gente precisava ter um outro espaço para dar conta dessa outra dimensão da vida e também fortalecer essas mulheres que sofrem violências.

Eu não tenho dúvida de que com esse trabalho vamos chegar também a várias mulheres que sofrem violência. Muitas que têm receio em acessar a rede, no Clarice Lispector (o Centro de Referência da Prefeitura do Recife que atende mulheres em situação de violência de gênero), já chegaram no Centro Marta Almeida e participaram de formações. Aqui elas perceberam que não estão sozinhas, que existe uma rede de apoio e juntas somos mais fortes, mesmo. Já ouvimos: “melhorei minha autoestima e agora sei que tenho valor.”

Centro Marta Almeida. Foto: Edson Holanda

Como tem sido a procura das mulheres por essas oportunidades de formação no Centro Marta Almeida?

A gente divulga a abertura dos cursos, tem um processo de inscrição, fazemos as formações de cidadania, direitos das mulheres e humanos. Todo curso tem na carga horária de uma aula de fortalecimento, uma oficina bem lúdica, e buscamos a conexão com as oportunidades.

A procura tem sido muito alta e com uma boa distribuição por RPA (Região Político Administrativa). Mesmo com poucos meses de inauguração e com restrições de divulgação, devido ao período eleitoral, 701 mulheres já foram matriculadas no centro e 457 delas se formaram em uma ou mais de uma capacitação.

Qual o perfil dessas mulheres e de onde elas estão vindo?

A gente tinha um receio de que a mulher que mora na periferia não conseguiria chegar aqui na unidade, que ocupa dois imóveis restaurados da Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife. Mas a experiência tem mostrado que nesse bairro tão central da cidade elas conseguem chegar.

Das mulheres que chegam ao Centro Marta Almeida, 74% são pretas ou pardas. A maioria recebe até um salário mínimo, se somar com o público que tem renda de até dois salários mínimos, chegamos a quase 90%. Essa é a população que a gente tem focado.

Que tipo de formação está sendo oferecida no Centro Marta Almeida?

O Centro Marta Almeida tem um foco importante na formação e qualificação profissional. Nosso objetivo é capacitar as mulheres para que possam alcançar autonomia financeira, oferecendo cursos que atendam às demandas do mercado. Oferecemos oficinas de empreendedorismo e cursos voltados para áreas técnicas. Além disso, damos suporte para que as mulheres possam acessar o microcrédito e começar ou fortalecer seus próprios negócios.

Formações na área gastronômica. Foto: Wagner Gomes

Qual foi o caminho das políticas de gênero de empreendedorismo antes de chegar à inauguração deste novo espaço?

Há um tempo a gente queria desenvolver esse apoio às mulheres empreendedoras de baixa renda. No começo da gestão, João Campos participou do Desafio Internacional de Prefeitos, que é feito pela Bloomberg Philanthropies. O prefeito decidiu inscrever o projeto Tá com Elas - o Crédito é da Mulher, desenvolvido pela Secretaria da Mulher.

No início, a gente pensava em construir uma incubadora de negócio para mulheres, só que precisávamos dar alguns passos antes. Trabalhamos numa perspectiva de criar um projeto que pudesse apoiar empreendedoras de baixa renda, na sua grande maioria mulheres que foram empreender por sobrevivência. É a velha viração, as mulheres vão se virar tanto para completar renda, como também para sustentar a família.

O que sensibilizou a Bloomberg para premiar o projeto recifense?

Quando a gente fez a inscrição desse programa, o Caged de 2020 soltou um dado de que em Pernambuco, das carteiras de trabalho que tinham dado baixa naquele período da pandemia, 99,5% eram de mulheres.

Muitas dessas, que empreendem para sobreviver, começam vendendo um picolé, resolvem fazer um picolé gourmet, uma empada. Só que elas não têm suporte para empreender e a grande maioria não teve a oportunidade de compreender quais são as necessidades de um empreendimento, como cuidar da contabilidade, do comercial, da parte jurídica, precisam ter capital de giro… Não sabem que é preciso separar o negócio da sua vida pessoal. A maioria vende de manhã para comer de noite. Algumas dessas mulheres estão empreendendo por necessidade e estão em busca de um emprego, mas há nesse conjunto de lutadoras um potencial muito grande e nós queremos estimulá-las a desenvolver suas potencialidades.

De 600 cidades no mundo, ficamos entre os 50 melhores e a Bloomberg financiou a prototipagem do projeto. Já tínhamos a ideia desse projeto, mas testamos antes de implementar. A premiação foi em 2022, começamos a implementação em 2023 e hoje essa política tem três braços. O Tá com Elas Sede, Tá com Elas Promorar e Tá com Elas na Primeira Infância.

Como essa política está funcionando?

Realizamos as inscrições e logo iniciamos as mentorias. Observamos se essa mulher prefere essa mentoria online ou presencial. Então, depende do que ficar mais confortável para ela e não é a gente que decide. O projeto segue a jornada de divulgação, inscrição, mentoria, as pílulas digitais e a rede de empreendedores.

Estamos iniciando o Tá Com Elas na Primeira Infância, que é financiado por uma emenda parlamentar de Renildo Calheiros. A gente identificou que muitas mulheres não tinham como ter acesso a essa iniciativa por terem filhos pequenos, então a gente fez uma outra coisa: investimos na equipe que vai para fazer mentoria, disponibilizando uma pessoa para ficar com a criança.

Nossa perspectiva é de oferecer uma mentoria customizada. Se a mulher trabalha com alimentação, com bolo, o exemplo não pode ser de moda ou de corte e costura. A mentoria é voltada para aquele negócio, para aquela mulher, a partir de um convênio com a Fejepe (Federação de Empresas Juniores de Pernambuco). A gente repassa o valor e a Fejepe paga a bolsa das mentoras.

As mentoras passam por um processo de formação antes de realizar os atendimentos. Trata-se de uma formação humanizada, a gente quer que a mentoria seja realmente diferenciada, que as mentoras sejam ponto de apoio e de incentivo, que possam observar as mulheres que estão sendo atendidas e contribuam para o fortalecimento do negócio, mas também da cidadania de cada uma delas.

Preparamos as mentoras para identificar se há situação de violência e, se houver, elas fazem os encaminhamentos necessários para nossa rede de enfrentamento. Quando a gente começou a prototipar o projeto, eu lembro que numa reunião falei que queria que a gente pudesse observar essa questão da mulher em situação de violência. No final, mais de 70% das que foram atendidas estavam ou estiveram nessa situação. Isso sem ter nenhuma relação com a nossa rede de prevenção e enfrentamento.

Nessa construção, a gente viu que elas não têm muito tempo para fazer formação. Não dá para elas chegarem aqui e marcar uma aula de 45 minutos. Essa mulher acorda, lava, passa, cozinha, cuida da criança, leva ao médico e, no meio disso, faz alguma coisa para ter um dinheiro. Um bolo, um doce, uma costura, um artesanato… Então, a gente desenvolveu pílulas digitais, com linguagem simples. Elas passaram a receber vídeos de até cinco minutos com a informação precisa sobre determinadas coisas e as mentoras fazem o acompanhamento para alguma necessidade de sanar melhor as dúvidas.

Vocês incentivam a bancarização dessas empreendedoras?

As pílulas digitais atuam nas diversas frentes, como precificação, apresentação do produto, fluxo de caixa. A bancarização também faz parte do processo de formalização. Isso é muito importante porque a maioria dessas mulheres tem numa conta só, a movimentação do negócio e da casa. Muitas delas trabalham, mas o marido chega e se apropria dos recursos, típico da violência patrimonial, e coloca o negócio em risco.

A gente está monitorando a taxa de bancarização, hoje 30% delas já se bancarizaram, o restante ainda não e isso apresenta outros problemas. A grande maioria delas é atendida por bancos virtuais. Uma parte delas está inadimplente e não consegue abrir uma conta para separar, é um processo.

Uma das coisas que a gente busca é fazê-las entender que se tem um negócio, as contas precisam estar separadas, os recursos não devem se misturar. “Ah, ela tem que ter MEI para participar”? Não, mas a gente vai trabalhar com ela para ela entender como é a legalidade desse negócio, para ele poder ir para frente.

No final, criamos uma rede de mulheres empreendedoras, a ideia nossa é conseguir fazer essa rede localizada nas RPAs, porque aí elas estarão se apoiando, já que uma trabalha com festa, outra decoração, outra faz bolo de aniversário.

Comunidade Tá com Elas durante o Rec 'n' Play 2024

Essas redes de empreendedoras já estão funcionando?

A rede por enquanto é uma só. As redes locais a gente ainda não conseguiu fazer funcionar. O que a gente tem lutado mais é para elas entenderem que podem se organizar enquanto cidadãs empreendedoras, sem a prefeitura. Mas isso é um processo que ainda está em construção. Ao todo, 507 mulheres já foram mentoradas.

No dia 8 de março, nós junto com a Emprel, liberamos um crédito de R$ 500. Parece ser pouco, mas uma das empreendedoras vende cachorro-quente e estava com uma carroça parada porque não tinha dinheiro para consertar a roda. Outra que vende empada estava sem gás e usou o dinheiro para isso. Então, o que para gente é pouco, para elas, às vezes, ajuda a colocar o negócio para funcionar melhor.

Os setores econômicos em que atuam essas mulheres com as quais fazemos a mentoria são da economia criativa, de alimentação e bebidas, serviço, confecção e outros. A grande parte é de alimentação e moda. Tanto o Centro Marta Almeida, como o projeto Tá Com Elas são ligados à gerência geral de Desenvolvimento Sustentável e Inovação para Igualdade de Gênero. Nessas iniciativas a gente trabalha com mulheres, independentemente se elas estão em situação de violência ou não.

Temos no Recife um forte polo tecnológico, o Porto Digital. Um dos desafios relacionados à mão de obra no setor é justamente incluir mais mulheres na área. Vocês têm inserido essa pauta na agenda?

A Prefeitura do Recife tem o Tech Divas, que é uma política desenvolvida pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Foi pensada para a inserção da mulher na tecnologia. Isso é fundamental porque na universidade e faculdades vemos as mulheres não concluírem seus cursos nessa área, seja a graduação, o mestrado e o doutorado devido à desigualdade de gênero. Ou quando se formam, não conseguem se inserir no mercado de trabalho porque não conseguem fazer networking, porque essas mulheres saem da aula direto para cuidar do filho, da mãe, enfim… As brechas de gênero impedem as mulheres de desenvolverem suas potencialidades nas várias dimensões da vida.

Nosso papel na gestão é de fortalecer e, principalmente, construir políticas que sejam estruturadoras e duradouras. Não basta um projeto que começa aqui e acaba ali. Esse trabalho acaba de ser reconhecido nacionalmente como uma das boas práticas para os municípios avançarem em igualdade de gênero, raça e etnia no Brasil pelo Programa + Iguais. O Recife foi uma das seis cidades no Brasil selecionadas neste programa, que é promovido pelo Instituto Alziras e pela Frente Nacional de Prefeitos e Prefeitas.

A paridade de gênero das secretarias do Recife, muito divulgada no começo da gestão de João Campos, contribuiu para o avanço das pautas voltadas para a população feminina? Ter pelo menos 50% de mulheres no primeiro escalão fez diferença?

Posse do Secretariado do Recife. Foto: Rodolfo Loepert

Contribui em tudo. Essa representação paritária não é só no secretariado, é também em outros níveis de gestão. Quando fazemos uma reunião com o corpo gerencial de uma secretaria, naturalmente, antes teríamos poucas mulheres em posição de comando. Hoje, aumentou a quantidade nesses espaços. Mesmo quando essas mulheres não estão próximas às agendas de gênero, no processo de construção de ações, quando os debates chegam no cotidiano das lutas da mulher, todas se identificam e obviamente a sensibilidade é bem maior.

Os espaços para atender às mulheres vítimas de violência no Recife cresceram 600%, implementamos o prontuário eletrônico no atendimento à mulher em situação de violência e dobramos o efetivo da Brigada Maria da Penha (grupo de guardas municipais especializado no atendimento humanizado às mulheres em situação de violência).

Fora a ampliação de toda a estrutura, tivemos contratações por meio de seleção simplificada e realizamos o primeiro concurso público específico para Secretaria da Mulher do Brasil. Isso é muito significativo, porque você não está apenas fazendo essas formações como ações pontuais, mas com o concurso está sendo garantido que esse serviço não vai ser interrompido. Com isso temos um processo de fortalecimento do sistema de garantia de direitos. Para mim é uma honra, enquanto feminista, ser secretária de um prefeito que teve esse compromisso e que buscou fazer diferente, gerar mais oportunidades para quem mais precisa.

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