Os 125 anos de Gilberto Freyre: como suas ideias sobre identidade, cultura e mestiçagem permanecem atuais
No ano em que se comemoram os 125 anos de nascimento de Gilberto Freyre, seu legado segue vivo e provoca debates sobre identidade, cultura e sociedade. Autor de obras fundamentais para a compreensão do Brasil, Freyre antecipou questões que hoje ganham ainda mais relevância, como a mestiçagem, a interdisciplinaridade na produção acadêmica e a fluidez das relações raciais e sociais no país. Para discutir a atualidade de suas ideias e os desafios de sua interpretação no presente, conversamos com a historiadora Mary Del Priore, especialista na história da vida privada e da cultura no Brasil.
Na entrevista, Del Priore destaca a visão inovadora de Freyre, que rompeu com paradigmas acadêmicos de sua época ao unir história, antropologia e literatura na análise da sociedade brasileira. Além disso, comenta como o sociólogo antecipou fenômenos globais, como a diversidade resultante das migrações e os desafios da identidade nacional em um mundo cada vez mais interconectado.
Quais os temas que Gilberto Freyre escreveu e discutiu na sua época que a Sra considera mais vanguardistas e permanecem atuais?
Autor da obra fundamental sobre a cultura brasileira, GF antecipou um tema de grande relevância atual: a mestiçagem, agora visível em todo o mundo. A globalização, o capitalismo e as migrações Sul-Norte transformaram os países que, no século XVI, colonizaram o Oriente e as Américas. Embora hoje tentem fechar fronteiras e erguer muros, é tarde demais: as novas gerações de imigrantes estão mestiçando a Europa e a América do Norte. Essa diversidade é evidente nos esportes, na mídia, nas Forças Armadas, nas artes, na política e nas Academias. Há “morenos”, café-créme, mixed-blood, mestizos, misticci, mischling. Eles consomem alimentos estrangeiros, dançam ritmos variados, vestem-se e se penteiam inspirados pelo Outro, adotam costumes e crenças antes desconhecidos por seus avós. Essa miscigenação, pioneiramente descrita por GF, é hoje chamada de globalização.
No entanto, os wokistas veem a mestiçagem como “estupro”, ignorando deliberadamente os estudos de milhares de historiadores que, como mostrou GF, confirmam a importância da mestiçagem, evidente desde 1872, quando o primeiro censo do Império registrou mais pardos (mestiços) do que brancos. As mestiçagens biológicas e culturais são fatos históricos indiscutíveis e continuam a moldar o mundo, não podendo ser ignoradas.
Acerca da forma dos seus textos e dos espaços que ele ocupou no debate público, a Sra observa que houve inovação também por parte de Gilberto Freyre?
Imenso estilista da palavra, introdutor de poesia e humor em seus textos, GF é autor de um livro irresistível não apenas pela riqueza de informações e documentos, mas também pela beleza de sua escrita. Já em 1933, ele antecipou abordagens que só se tornaram populares a partir dos anos 1980: a antropologia histórica e a história da vida privada. Ao aproximar a antropologia social e cultural da história, da literatura e das artes, inaugurou uma nova categoria de saber.
GF foi um pioneiro da interdisciplinaridade entre nós, privilegiando estudos sobre temas como família, casamento, culinária, moradia, sexualidade, crenças, entre outros. Contudo, a atual formação monodisciplinar de muitos cientistas sociais não permite apreciar seu pioneirismo em focar a intimidade e o cotidiano como espaços de contradições e permanências na vida de um povo.
Em pleno 2025, a Sra destacaria alguma ou algumas reflexões propostas por Gilberto Freyre que não são ainda bem conhecidas ou discutidas pela sociedade? Que aspectos da obra dele merecem uma maior atenção na sociedade contemporânea?
Gilberto Freyre destacou temas que merecem atenção, entre eles o despotismo e o mandonismo ainda presentes. No entanto, considero fundamentais seus estudos sobre o pardo e o mestiço, que desconstroem a falácia de que o Brasil é negro e branco, como nos EUA. De acordo com o último Censo do IBGE de 2022, os pardos representam 45,3% da população. Gilberto Freyre pioneiramente narrou a história da mobilidade social deste povo “junto e misturado”.
A consolidação do modelo binário que separa “brancos” e “negros” ocorreu nos anos 1990, quando pesquisadores do IPEA, adotaram essa categorização. Em vez de utilizarem a nomenclatura "não brancos", eles optaram por agrupar pretos e pardos sob o termo "negros", em consonância com as demandas do Movimento Negro. O resultado foi o aumento do número de “negros” no censo de 2000. A decisão foi absurda, pois o Brasil nunca foi uma nação birracial como os Estados Unidos, onde uma gota de sangue negro define a identidade racial da pessoa. O convívio fluido e sem barreiras descrito por Gilberto Freyre foi substituído por uma cultura de ódio e desconfiança, alimentada por interpretações apressadas e radicais de movimentos contemporâneos.